A doce introspecção de Sueli Costa

Considerações sobre o (injustamente) pouco conhecido álbum de estreia da artista

Julli Rodrigues
Ouvindo Coisas
5 min readJun 27, 2017

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Lançado pela EMI-Odeon em 1975, o auto-intitulado disco de estreia da compositora Sueli Costa é, com o perdão do clichê, uma daquelas joias raras da Música Popular Brasileira. Trata-se de um álbum que você não descobre facilmente: ele não costuma figurar em listas de “melhores discos da MPB”, não é parte das discotecas obrigatórias para se compreender a “linha evolutiva da música popular brasileira”, mas proporciona uma experiência de escuta memorável.

É um álbum tão “desconhecido” que até a forma como eu cheguei até ele foi inusitada. Tudo começou quando escutei “Demoníaca” (Sueli Costa/Vitor Martins) na voz de Marya Bravo, no disco “Comportamento Geral: Canções da Resistência”. A força da música me provocou a curiosidade de ir atrás de gravações anteriores: a mais famosa, por Maria Bethânia, e o registro de sua compositora. Foi essa última que me atingiu em cheio e me levou a buscar o álbum do qual ela faz parte — que, por sorte, está disponível no Spotify em ótima qualidade.

Muitas das faixas do álbum foram interpretadas e/ou gravadas, à época, por outros cantores. Além da já citada “Demoníaca”, Bethânia incluiu em seus shows músicas como “Encouraçado” e “Coração Ateu”, que acabaram registradas em disco ao vivo. “Encouraçado”, inclusive, foi inscrita no V Festival Internacional da Canção da TV Globo, em 1970. Defendida pelo cantor Fábio, a canção acabou ficando em terceiro lugar.

Com arranjos de Paulo Moura e Wagner Tiso, “Sueli Costa” é um disco que poderia ser definido em apenas uma palavra: introspecção. A atmosfera das músicas evoca um cenário escuro e aconchegante, um misto de “poeira e solidão” — título de uma das faixas — com sonho e devaneio. É o clima típico de quando você está deitado no quarto, pensando na vida em meio aos cobertores, levantando ocasionalmente pra olhar a janela. A noite cai e você não se importa em acender as luzes, porque o escuro possibilita que você olhe para dentro de si mesmo. As interpretações de Sueli, cantora de voz aveludada e imponente, contribuem bastante para criar esse clima, que é a mais completa tradução do espírito das composições.

“Música é minha maneira de dizer às pessoas o que eu penso, sinto e vejo. Meus temas somos [sic] eu mesma, a vida, o amor que faz parte da gente, sem essa de dor de cotovelo ou alguma transa especial. Apenas gente, vida e mundo”.
Sueli Costa — Outubro de 1975 — Revista Pop

É um disco que registra impressões sobre o mundo, mas também fala de amor e de angústia. Em alguns momentos, chega a machucar, abrangendo todo um espectro de dores. “Coração Ateu” tem grande potencial para embalar fossas homéricas pós-fim de relacionamento. Já “Poeira e Solidão” traz ares de angústia existencial e lembra aquela sensação de choro travado na garganta, que dilacera sem dó nem piedade, mas se mantém retido. “Nunca” é a única faixa não-autoral do disco: trata-se de uma composição de Lupicínio Rodrigues que sofreu leves adaptações na gravação de Sueli. É a trilha perfeita para outra fase do fim de relacionamento, o momento em que você já está superando a pessoa, já não sente raiva, cultiva lembranças, mas não quer voltar.

O momento mais leve e solar do disco é “Vamos Dançar” (Sueli Costa/João Medeiros Filho), um bolero cuja letra sintetiza, em poucos versos, uma declaração de amor sem muitas firulas, mas com muita sinceridade. Acho interessante observar que a ideia de estar dentro do quarto olhando a janela aparece claramente aqui, indicando que a ação descrita na letra se desenrola num ambiente interno.

“Vamos dançar
Ou ficar abraçados, sei lá
Venha ver na janela
Que lua tão bela
Esse instante parado no ar
Feito de sonho, magia
A verdade se tem na poesia
Essa vida da gente
Me faz tão contente
Sou mais nosso amor”

E é dessa janela metafórica que surgem as observações dos eus líricos das outras canções de Sueli presentes no disco. Compostas em parceria com vários letristas, todas elas sugerem reflexões sobre o mundo lá fora e/ou elucubrações sobre si mesmo, misturando realismo e fantasia. “Retrato”, poema de Cecília Meireles musicado por Sueli, e “Dentro de Mim Mora um Anjo”, com letra de Cacaso, traduzem a porção puramente realista e introspectiva. Parcerias de Sueli com Tite de Lemos, “Encouraçado”, “Aldebarã” e “Noturno nº 0” já usam de imagens mais literárias.

E, num contexto de ditadura militar, “Demoníaca” se torna uma das mais inteligentes leituras daquele momento histórico. Surge a figura do delator, o infiltrado, aquele que estava pronto pra te dedurar pro regime. Você é constantemente vigiado e não pode descansar nem quando está dormindo, pois na próxima esquina a morte poderá lhe beijar. Tensão e medo sintetizados numa metáfora certeira.

“Sueli Costa” não é um álbum para escutar em todos os momentos do dia-a-dia. Os desavisados podem reagir mal ao clima introspectivo e interpretá-lo como um disco triste, de fossa, sombrio. No final das contas, ele combina com situações parecidas com as descritas acima: momentos de reflexão, contemplação, de olhar para fora pela janela ou olhar para dentro de si, mas nunca estar no meio da ação. A música de Sueli Costa é séria, até um tanto fechada, mas há muita sinceridade em seu trabalho. Isso certamente tocará aqueles que são sensíveis a todas as nuances da vida e não buscam na música apenas um alívio, mas também um desafio.

Entrevista à Revista Pop, 1975

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