1 | Canivete na pista

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
4 min readNov 30, 2015

--

GABRIEL OLHAVA A ESTRADA. Não a paisagem, como faziam Vera e as crianças, a caminho do Clube Campestre, perto de Belo Horizonte. O que lhe interessava era a estrada em si: suas curvas, sua inclinação, seu traçado. Não por segurança ou cuidado. Aos 32 anos, Gabriel não tinha medo de meter o Pontiac verde num buraco, atropelar o guard rail ou bater em outro veículo. O carro era bom, com oito cilindros e ótimo desempenho, e a estrada, novíssima. Eram as técnicas empregadas na pavimentação do trecho que ele, curioso, buscava decifrar.

De tempos em tempos, fazia algum comentário:

— Aderência boa. Aqui eles capricharam.

Viajar com Gabriel era assim. Quando percebia alguma falha ou sentia o volante trepidar, reclamava. O tom de voz mudava conforme a autoria do serviço. Se notasse algum defeito numa obra da concorrência, sorria satisfeito. Era um sinal de que o trabalho não estava à altura da qualidade de sua equipe. Se fosse uma obra da sua empresa, aí eram outros quinhentos.

Vera, um ano mais nova do que o marido, já estava acostumada com esse hábito de investigar a estrada. Naquele 1958, os dois somavam nove anos de casados, e a construtora já havia concluído a primeira década de atividade. Percorrendo a então recém-inaugurada BR-3, estrada que ligava a capital mineira ao Rio de Janeiro e que anos mais tarde seria chamada de BR-040, Gabriel sabia exatamente onde começava e onde terminava cada trecho contratado pelo Departamento de Estradas e Rodagem, o DER. Sabia também qual firma havia construído e pavimentado cada pedaço. Principalmente, gostava de investigar os métodos utilizados e os resultados alcançados pelas empresas concorrentes. Estava sempre interessado em aprender.

Aquele trecho, por exemplo, logo depois da Serra do Curral, junto à saída para Nova Lima, parecia excepcional.

— Foram muito felizes — Gabriel pensou alto.

No banco de trás, acomodavam-se os filhos: Marília, com 8 anos, Flávio, com 7, Laura, com 5, e Heloísa, com apenas 1. Os quatro não estavam nem aí para a qualidade da estrada e a aderência do asfalto. Só queriam chegar depressa ao clube, onde passariam o dia entre as montanhas, da piscina para as quadras, do restaurante para as cachoeiras, como faziam um domingo por mês. Concentradas em seus próprios planos, as crianças não entenderam quando o pai, sem abrir a boca, estacionou no acostamento e desceu do carro, tirando um canivete do bolso.

Marília desceu em seguida, curiosa para ver de perto o que o pai iria fazer.

— Espera aí — Gabriel orientou. — Fica perto do carro. Aqui é perigoso.

Marília ficou apreensiva. Dentro do Pontiac, Flávio e Laura grudaram os olhos na janela para não perder nada. Gabriel se acocorou no asfalto e, com o canivete, começou a cortar um pedaço do pavimento. O asfalto era novo, o que facilitava a operação.

Como o trecho era plano e ficava num descampado, seria fácil para ele notar a tempo a aproximação de outro veículo. Marília viu quando seu pai retirou do chão um bloquinho, com uns três centímetros de lado e uns dez centímetros de profundidade.

— Papai, estragou a estrada? — Marília quis saber.

Gabriel explicou que um buraquinho tão pequeno não faria diferença. E que cortara aquele pedacinho somente para checar como os concorrentes tinham feito a estrutura e quais os materiais utilizados. Uma de suas dúvidas, por exemplo, era se a base havia sido feita com cascalho de boa qualidade ou se fora preciso usar cimento na composição.

Essas especificações eram de conhecimento público, listadas na concorrência, mas Gabriel gostava de conferir se a espessura de cada camada condizia com o previsto e como os materiais se comportavam.

Terminado o serviço, o espião voltou para o carro e pôs-se a analisar a amostra, a caminho do clube.

— É normal — disse para Vera, justificando o próprio gesto. — Um agricultor também se preocupa em saber como o vizinho está arando a terra, qual distância deixa entre as mudas, como dispor a lavoura em relação ao sol.

Todos quiseram tocar naquele retalho, é claro, e passavam o bloco de mão em mão. Engraçado ver uma estrada por dentro. O miolo do asfalto poroso, com cascalhos colados uns aos outros, e uma camada mais dura em cima, que parecia feita com uma substância viscosa. Exposto ao sol, o fragmento esquentava as mãos das crianças e tinha um cheiro diferente. Será que um pedaço de meteoro seria parecido com isso? E um cometa?

Para o resto da vida, Gabriel combinaria perfil empreendedor e personalidade científica. Sua ética era a dos bons investigadores: pesquisar soluções e encontrar respostas, fazendo inevitavelmente mais e mais perguntas. Embora disciplinado e cauteloso, nunca renunciaria aos rompantes de iniciativa e criatividade, ávido por inventar e produzir. Sempre fora assim, desde o dia em que, ainda estudante, propôs sociedade ao irmão e a um colega de sala para fundarem a Andrade Gutierrez.

--

--

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi