Família reunida em 1940. Eram assim, cercado de filhos, os almoços preferidos de Laura Salles Botelho de Andrade, mãe de Gabriel. Da esquerda para a direita, Gabriel, aos 15 anos, seu irmão Maurício, a cunhada Hilda, seus pais Donato de Andrade — de luto pela morte da mãe— e Laura e o irmão Roberto, ainda solteiro

2 | Mineiro e Soberano

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
21 min readDec 2, 2015

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AOS 20 ANOS, Gabriel era um estudante tímido, que preferia ficar calado a maior parte do tempo. À mesa, durante as refeições, ouvia bem mais do que falava. Principalmente quando os irmãos José Maurício e Roberto apareciam para almoçar. Filho caçula, Gabriel era 13 anos mais novo que Maurício e 12 mais moço que Roberto. Admirava o irmãos e aprendia com eles, principalmente com Roberto, também engenheiro, formado mais de uma década antes na mesma faculdade em que cursava o terceiro ano. Faltavam dois para a formatura.

Naquela manhã de 1946, Roberto tinha ficado para almoçar, para alegria de sua mãe, Laura, que adorava os assuntos do filho do meio, homem brilhante, por dentro de tudo. Casado com Sonia e pai de um menino de 1 ano, Sérgio, ele administrava a fábrica de laticínios da família e estava frequentemente por perto, mas nem sempre almoçavam juntos. Ainda mais agora, que Maurício só queria saber de fazer campanha e raramente aparecia. A eleição se aproximava — a primeira desde o fim do Estado Novo — e o filho mais velho de Laura e Donato concorria a uma vaga na Assembleia Estadual pelo PSD, partido do ex-prefeito Juscelino Kubitschek.

Antes mesmo que o almoço fosse servido, Roberto, que acabara de completar 32 anos, engatou uma conversa séria, recheada de cifras e nomes de ministros. Repercutindo um artigo publicado no jornal, discorria sobre a criação, em maio, do Departamento de Estradas de Rodagem mineiro, e especulava sobre o orçamento do novo órgão. Desde o início do ano, os jornais debatiam o montante de recursos que seria destinado ao DER-MG e discutia-se muito sobre quais os investimentos prioritários.

Gabriel Donato de Andrade aos 18 anos, calouro do curso de Engenharia da Universidade de Minas Gerais, futura UFMG, em janeiro de 1944. O transporte rodoviário começava a virar prioridade dos governos

A novidade vinha na esteira da criação do Fundo Rodoviário Nacional e da transformação do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) em uma autarquia, com orçamento e estrutura administrativa adequada. As mudanças eram o resultado de um decreto-lei, promulgado em dezembro do ano anterior, conhecido como lei Joppert, nome do então ministro de Viação e Obras Públicas, Maurício Joppert da Silva.

— Há uma revolução em andamento nos transportes e o futuro é das rodovias — Roberto dizia.

Donato, interessado, correspondia ao entusiasmo do filho e ouvia com atenção.

Segundo Roberto, o objetivo do Fundo era garantir recursos para o setor rodoviário, carente de verbas e planejamento. A lei vinculava os recursos obtidos via imposto único sobre os combustíveis e lubrificantes à criação de uma malha rodoviária, de modo que o governo jamais pudesse utilizar essa verba em outro setor. Também tornava obrigatória a implantação de DERs em todos os Estados, com a atribuição de gerenciar a parcela do Fundo que lhe coubesse, estabelecer prioridades de investimento, criar planos de ação, preparar concorrências e supervisioná-las.

— Vai ser ótimo para a engenharia brasileira — dizia. — Pela primeira vez, haverá um plano de longo prazo para a abertura de estradas. As construtoras não vão mais depender de contratos isolados para fazer trechos pequenos, nem terão de choramingar obras com prefeituras e governos.

Gabriel punha uma atenção danada na conversa do irmão. Mais dois anos, no final de 1948, ele receberia seu diploma. E ingressar na profissão num momento de expansão é sempre bom.

Naquele momento, o rapaz de 20 anos teve uma ideia: por que não aproveitar aquela fase favorável, aquela promessa de investimentos em rodovias, e abrir uma empresa especializada na construção de estradas?

Gabriel sentia-se estimulado a entrar no ramo das rodovias. O futuro era do automóvel, ele tinha certeza, e não mais dos trens e das estradas de ferro, nas quais ainda estagiavam muitos colegas de faculdade.

Fazia tempo que o jovem estudante de engenharia pensava em ter o próprio negócio. Só não sabia ainda em que área investir. Se o irmão estivesse certo, como normalmente estava, nada melhor do que montar uma construtora capaz de oferecer mão de obra especializada e tecnologia de ponta para abertura e pavimentação de estradas. Bastaria convencer o pai a alugar o novo trator, pelo menos na entressafra, e a empresa iniciaria a carreira com uma enorme vantagem sobre a concorrência.

Não fazia nem um mês que Donato recebera um trator de esteira novinho em sua fazenda. Era um Caterpillar D6, último tipo, amarelo, movido a diesel, com esteiras no lugar das rodas, o que conferia melhor distribuição do peso e maior aderência a terrenos movediços e pantanosos. Tinha capacidade para 18 toneladas de carga e vinha equipado com uma lâmina frontal — um bulldozer robusto e largo o suficiente para abrir pequenas estradas. Coisa fina, recém-chegada dos Estados Unidos.

Maurício, antes de ser eleito deputado estadual

Antes mesmo de desembarcar na Fazenda São Miguel, vizinha à estação de trem de mesmo nome, no município de Arcos, no Oeste de Minas, o trator já havia se tornado um mito na região. Uma lenda, quase uma assombração. Isso porque Donato o comprara em 1938, oito anos antes, e muitos achavam que ele nunca mais seria entregue. Desde então, houve a Segunda Guerra e, até 1945, a Caterpillar foi obrigada a interromper sua produção convencional para se dedicar exclusivamente ao esforço de guerra, fornecendo equipamentos, tanques e tratores para as zonas de conflito, de modo que a fazenda de Donato ficou a ver navios durante todo esse tempo. Quando finalmente fez suas primeiras manobras na fazenda, em meados de 1946, o trator foi aplaudido de pé. Funcionários da fazenda e moradores da vizinhança se aboletaram nos mourões da porteira e nas vigas do curral para admirar a máquina importada:

— É o progresso — diziam.

Não havia trator semelhante na região. Nem em Arcos, nem em Iguatama, nem mesmo em Formiga ou Bambuí. Num raio de cem quilômetros a partir da Estação São Miguel, era raro ver um trator de esteira na paisagem. Um como aquele, com escavadeira, bitola de 60 polegadas e sistema de ilumina- ção, era praticamente impossível.

Aos olhos dos vizinhos e colaboradores, aquela compra parecia um pouco exagerada. Numa fazenda dedicada mais à criação de gado de leite e à produção de manteiga, o D6 parecia fadado a ser subutilizado. Mas Donato decidira melhorar as estradas do entorno, o que facilitaria o transporte de leite das fazendas vizinhas para sua fábrica de laticínios, que existia desde os anos 1920. Também planejava drenar as várzeas de sua propriedade, às margens do ribeirão São Miguel, para cultivar arroz.

O D6 foi logo batizado pelos tratoristas. Cada empregado da fazenda sugeria uma graça, buscando inspiração nos touros mais audazes que conhecera: Trovão, Patriarca, Imperador. No final, prevaleceu a modéstia, em justa e discreta homenagem à gente que o acolheu.

— Vai ser Mineiro — ficou decidido.

Pouco mais de um mês após a chegada do trator, Gabriel o envolvia em seus planos de abrir uma construtora para fazer estradas. Sim, porque Gabriel nunca tardava em transformar seus sonhos em planos concretos, definindo rapidamente quando e como colocá-los em prática. Agora, Roberto nem terminara sua conversa com Donato e Gabriel já concluía que o plano era bom, e que o Mineiro tinha tudo para ser seu grande aliado num primeiro momento. Bastaria comprar um scraper, equipamento concebido para ser acoplado à traseira do trator e que funciona como uma escavadeira, mas com espaço para armazenar a terra recolhida e dispensá-la mais adiante.

Nos dias que se seguiram àquele almoço, Gabriel pesquisou o preço de um scraper e descobriu se tratar de uma ferramenta relativamente barata. Ele mesmo poderia comprá-la, investindo os dividendos que receberia naquele ano da indústria da família. Na mesma fazenda em que o Mineiro transitava e onde Donato criava bovinos, suínos, equinos e muares, funcionava desde 1938 a Indústria São Miguel de Produtos Alimentícios, cuja sigla ISMPAL aparecia gravada na chaminé da fábrica. Na fazenda já se produziam laticínios desde os anos 1920, mas a nova fábrica representava um salto de qualidade e capacidade de produção. Até o nome da sociedade mudara. Já no começo dos anos 1940, a empresa adotara o nome-fantasia SaMiGue, contração de São Miguel.

A planta fora comprada de um primo ainda encaixotada, sem uso, em Caxambu, no Sul de Minas, e transferida peça por peça até Arcos, pouco depois da formatura de Roberto, que assumiria desde o início a função de diretor-geral. Além dele e do pai, completavam a sociedade um irmão e um primo de Donato: Vander e Juca Leite, respectivamente. Ao longo da década de 1940, centenas de latas de dez quilos da manteiga Joá, cujo rótulo estampava a imagem de São Miguel Arcanjo desferindo um golpe de espada no demônio, embarcavam semanalmente na estação rumo ao Rio de Janeiro. O sucesso do produto fez disparar a produção da SaMiGue. A fábrica, que processava 2 mil litros de leite por dia em 1938, bateria a marca de 130 mil litros diários em 1950.

No início da década de 1950, a estação próxima à fazenda mudaria de nome para Calciolândia, atendendo a um decreto do presidente Getúlio Vargas, que resolvera eliminar do mapa do Brasil as estações que tivessem nomes repetidos (e já havia uma estação São Miguel em São Paulo). O movimento de latas de manteiga, no entanto, não parou de aumentar. As vendas cresciam tanto que os sócios se animaram a lançar uma nova linha de produtos lácteos, com três rótulos de leite em pó –Pulvolac, Nutrolac e Superlac –, cada um com percentuais específicos de gordura e açúcar, indicados para fases diferentes da infância. Os três produtos eram bem conhecidos na metade dos anos 1950, quando eram recomendados por pediatras influentes como Navantino Alves, de Belo Horizonte, e Rinaldo de Lamare, autor do best-seller A vida do bebê, do Rio. Em 1963, a fábrica seria adquirida pela Nestlé, até então sua concorrente.

Fato é que Gabriel possuía cotas de participação na SaMiGue, o que lhe garantiria, naquele ano de 1946, cerca de 80 mil cruzeiros (equivalentes a cerca de US$ 70 mil em 2014). Sem adiantar nada sobre seus planos, o rapaz procurou Roberto no escritório para saber o valor a que teria direito. Com o dinheiro na mão, poderia comprar o scraper, e com ele, o Mineiro estaria apto a topar qualquer empreitada. Desde sua chegada, Gabriel já tivera a oportunidade de operá-lo na abertura de pequenos canais para drenar água das terras alagadi- ças junto ao ribeirão São Miguel e também já testara sua capacidade de escavar o solo e retificar pequenas estradas. Não seria nada difícil adotá-lo em obras mais ousadas.

O Soberano, primeiro trator adquirido pela Andrade Gutierrez, em 1948, em atividade na década de 1950

O D6 da Caterpillar não era diferente dos tratores usados nas principais obras viárias de Belo Horizonte, feitas a toque de caixa na primeira metade da década de 1940. A ampliação da rede de água e esgoto, o asfaltamento da Avenida Afonso Pena, a construção da Avenida do Contorno, o conjunto arquitetônico da Pampulha, todas as benfeitorias promovidas por Juscelino Kubitschek desde que fora nomeado prefeito, em 1940, tinham sido realizadas com máquinas iguais ou menores do que aquela, quando não com tração animal, ainda o método mais comum de se fazer construção pesada no país. Sebastião Camargo, fundador da Camargo Correia, começara assim, com uma carroça. Gabriel via que esse cenário estava mudando, e mudando rápido. Logo, logo, a demanda por novas estradas superaria a oferta de mão de obra e o número de empresas aptas a assumir as obras, de modo que nada parecia demover Gabriel de sua confiança num futuro promissor.

Além disso, Gabriel notava que os métodos arcaicos de construção de estradas, dependentes de tração animal, ainda dominavam o setor, mas não por muito tempo. O mercado estava em ponto de fervura para ser modernizado. Seria um golpe de mestre se ele conseguisse sair na frente.

Certificado de entrega técnica do trator Caterpillar, em maio de 1948. Foi Gabriel quem recebeu o equipamento e assinou a documentação

Sobrevoando a Mata de Pains no trajeto entre Belo Horizonte e a fazenda, sempre a bordo de um aviãozinho que pertencia à SaMiGue, Gabriel comparava lá do alto duas técnicas distintas e anacrônicas de se abrirem estradas. A maioria ainda fazia terraplenagem com pequenas carroças puxadas por burros. Apoiadas num pino, essa carrocinhas, ditas “pinantes”, realizavam um movimento basculante manual, que exigia algum esforço braçal, para recolher a terra e jogá-la no local do aterro. Feito isso, os burros voltavam sozinhos à área a ser escavada, onde tinham suas carroças novamente preenchidas com terra, numa rotina sem fim.

Mas havia, próximo a Formiga, pelo menos um empreiteiro que já trabalhava com trator e scraper, abrindo estradas com equipamentos semelhantes ao Caterpillar de Donato.

— Isso é que é futuro — Gabriel pensava.

A abertura do DER e o entusiasmo de Roberto providenciaram o estalo que faltava para trazer a construção de estradas para o radar de Gabriel. O plano não podia ser mais simples: comprar um scraper, acoplá-lo no Mineiro e sair por aí, fechando contratos e abrindo estradas. Se desse certo, sua empresa seria provavelmente a segunda ou terceira de Minas Gerais a trocar a tração animal por tecnologia de ponta. E pela conversa que acabara de ouvir entre Roberto e seu pai, não seria difícil convencê-los. Gabriel precisava de sócios.

A opção natural de Gabriel seria convidar os irmãos. Empresas familiares se espalhavam por Minas Gerais, e a própria experiência da SaMiGue, fundada por quatro membros da mesma família, parecia demonstrar que esse tipo de sociedade tinha tudo para dar certo. Acontece que Donato, seu pai, podia entender de leite, mas não tinha nenhuma familiaridade com o ramo da engenharia civil. Além disso, já era um homem de 62 anos, que em mais de uma ocasião havia mencionado seu interesse em se aposentar. É claro que o Mineiro seria imprescindível para que a empresa assinasse os primeiros contratos, até consguir dinheiro para comprar o próprio trator. Mas isso não implicava convidar Donato para sócio. Melhor seria se juntar apenas com os irmãos.

José Maurício, o mais velho, então com 33 anos, estava praticamente fora da jogada. Naquele final de 1946, fora eleito deputado estadual. Nada fazia crer que Maurício estivesse disposto a assumir responsabilidades de sócio numa construtora naquele momento. Em janeiro, assumiria sua vaga na Assembleia Legislativa, entusiasmado para fazer seu debut na política e seguir os passos do pai, que também fora deputado estadual entre 1919 e 1922. Sua trajetória, no entanto, não seria tão curta quanto a de Donato, que logo rompeu com a política, desiludido com os rumos dados ao seu Partido Republicano Mineiro (PRM) pelos aliados de Artur Bernardes, inimigos do padrinho político de Donato, e parente de sua mulher Laura, o ex-governador mineiro Francisco Antônio de Salles.

Ia de aviãozinho para a fazenda e via, lá do alto, a turma abrindo estradas com carrocinha de aterro, puxada por burro, manual. Quando vi pela primeira vez uma estrada sendo feita com tratores, fiquei surpreso. "Esse é o futuro", pensei. Apenas um ou outro trabalhava com máquina. E eu percebi que uma nova era estava começando.

Seu pai, aliás, não exercera influência alguma em sua decisão de se candidatar. Toda a articulação política ficara a cargo de dois tios: Bolivar de Andrade, político atuante no município de Passa Tempo, onde assumiria a prefeitura naquele mesmo janeiro de 1947, e Clemente Faria, dono do Banco da Lavoura, um dos mais poderosos de Minas Gerais, precursor do Banco Real e do Banco Bandeirantes.

A proposta de candidatura fora feita justamente pelo tio Clemente, que era casado com Jenny Andrade Faria, irmã de Donato. Apesar de ser 22 anos mais velho que Maurício, o banqueiro e o sobrinho eram companheiros inseparáveis de chope. Quase toda tarde, Clemente passava na casa de Maurício e saíam juntos. Com o fim do Estado Novo e a convocação de eleições diretas, Clemente propôs:

— Olha, Maurício, nós precisamos ter um deputado na família. Estive pensando que esse deputado bem podia ser você.

Com agências espalhadas por tudo que era cidade, o Banco da Lavoura contribuiu para ampliar o raio de influência e multiplicar os cabos eleitorais do candidato preferido de Clemente. Entre 1947 e 1969, Maurício seria duas vezes deputado estadual e três vezes federal.

— Deputado hoje não vale nada — reclamaria, na ocasião, decidido a não perder mais tempo com campanha.

Enfim, Maurício foi consultado sobre a possibilidade de integrar a empresa, mas recusou o convite, alegando incompatibilidade com a função de deputado. Não pegaria bem a um representante da Assembleia defender interesses privados em eventuais concorrências abertas por órgãos públicos, como o DER-MG e o DNER. De longe, ele se comprometia a fazer o que estivesse a seu alcance para contribuir para o sucesso da firma, em especial desempenhando o papel informal de relações públicas, apresentando o irmão caçula a políticos e autoridades que pudessem influir de alguma forma nos caminhos da construtora. Ele não podia imaginar que anos depois, seu filho Eduardo seria o principal executivo da empresa.

Roberto, por sua vez, aceitou o convite. Depois de promover com tanta eloquência os benefícios da lei Joppert e especular com tamanha devoção sobre o futuro do transporte rodoviário no país, ele nem teria como ficar de fora daquela empreitada. Tinha apenas uma objeção: não estava disposto a deixar a presidência da SaMiGue. Ao contrário, planejava se mudar para o Rio de Janeiro muito em breve (o que de fato faria em 1951), e preferia que sua atividade na construtora se restringisse à atuação de gabinete, junto à área financeira ou comercial. Em outras palavras, ele não acompanharia as obras de perto nem assumiria o rojão no dia a dia.

Conversa vai, conversa vem, Gabriel percebeu que, sendo assim, os irmãos precisariam de mais um sócio, alguém que tivesse presença constante e que pudesse dividir com ele a condução das obras, a elaboração de orçamentos e propostas, o acompanhamento das atividades nos canteiros. O ideal, ele pensava, seria ter alguém mais ou menos da sua idade, recém-formado, que esbanjasse disposição e com quem Gabriel tivesse intimidade.

Tino empreendedor também era uma característica importante. No curso de Engenharia, eram poucos os colegas que, como Gabriel, sonhavam abrir o próprio negócio. A maioria vislumbrava o emprego dos sonhos, quase sempre empregos públicos, mas não a própria empresa. Muitos estudantes, ao fim do curso, disputavam vagas e estágios na Rede Mineira de Viação, administradora da extensa malha ferroviária do Estado, ou na Companhia Vale do Rio Doce, aberta em 1942 para explorar minério de ferro na região de Itabira. O desejo mais comum em sua turma era entrar para a Companhia Siderúrgica Nacional. Fundada por Vargas em 1941, com a missão de fornecer aço às tropas aliadas durante a guerra, a CSN só iniciara sua produção comercial em 1946, depois do fim do conflito. Instalada no município fluminense de Volta Redonda, ela consumia quase toda a produção de ferro da Vale e vinha sendo repetidamente elogiada em editoriais ufanistas, que rapidamente a transformaram na vedete máxima da indústria nacional: a maior siderúrgica da América Latina. Enfim, o que a maioria queria era virar funcionário público.

Se poucos pensavam em abrir a própria empresa, a ideia de fundar uma construtora para abrir ou pavimentar estradas, essa então não era algo que motivasse os jovens engenheiros. O mercado era incerto, e as obras contratadas, normalmente por motivação política, ficavam a cargo das poucas firmas tradicionais, que quase sempre empregavam métodos obsoletos. Seria preciso argumentar, expor números e artigos de jornais, mencionar a lei Joppert e o Fundo Rodoviário, até fazer a cabeça de alguém. Gabriel estava disposto a seguir esse roteiro, mas antes teria de definir seu alvo.

O primeiro nome em que pensou foi o do amigo Geraldo Pereira, com quem tinha maior intimidade. Geraldo, no entanto, não tinha patrimônio para empreender, e seu plano, como o de muitos colegas, era disputar uma boa colocação na CSN.

Em seguida, Gabriel lembrou-se de Rubens Áureo Miranda e Silva, o Rubão, filho de um ex-prefeito de Belo Horizonte. Era em sua casa que a turma costumava se encontrar para estudar e fazer trabalhos em grupo. O convite foi feito, mas Rubão declinou: faltava-lhe capital para dar início à empresa.

Com duas negativas, ambas motivadas em parte pela falta de dinheiro, Gabriel aventou a hipótese de convidar o colega Caetano Mascarenhas, cujo patrimônio era maior do que o dos Andrade. Para ele, capital não seria um problema. Por outro lado, Gabriel não tinha tanta afinidade com Caetano, e a conversa não andou.

Puxa dali, estica de cá, logo as intenções de Gabriel se cruzaram com as expectativas de Flávio Gutierrez, também colega na Escola de Engenharia. Tinha achado o terceiro sócio.

FLÁVIO CASTELO BRANCO GUTIERREZ era filho único de Miguel Gutierrez e Carmelita Castelo Branco Gutierrez. Miguel, por sua vez, era o primogênito de Leonardo Alvarez Gutierrez y Bardón, que viera da Espanha para integrar a equipe de Aarão Reis, urbanista que planejou Belo Horizonte e começou a tirá-la do papel na última década do século. Leonardo trabalhara nas obras da estação ferroviária, fizera a terraplenagem dos terrenos onde foram erguidos os principais edifícios públicos e construíra parte do Palácio da Liberdade, sede do governo. Fora ele quem montara a imponente escadaria de ferro e mármore do hall do palácio, trazida da Bélgica sob encomenda.

Já na primeira década do século XX, Leonardo resolveu investir em terras e comprou uma grande fazenda de 200 hectares nos arredores de Belo Horizonte, numa área de relevo acidentado colada à porção sudoeste da Avenida do Contorno. Projetada por Aarão Reis para funcionar como uma espécie de anel perimetral, tal avenida acabaria engolida pela mancha urbana em poucos anos. Já em meados da década de 1920, a corrida por terrenos na região motivou Leonardo a dividir a fazenda em lotes de 360 metros quadrados. O espanhol morreria em 1927, um ano antes da aprovação do primeiro loteamento pela prefeitura, de modo que a gleba foi partilhada entre Miguel e os quatro irmãos. Mais tarde, a área daria origem a três bairros contíguos: Gutierrez, Barroca e Grajaú.

Foram esses terrenos que sustentaram o pai de Flávio até o fim da vida. Miguel chegou a ter uma olaria, entre os anos 1930 e 1940, mas foi a urbanização do bairro Gutierrez que virou sua mina de ouro a partir de 1950, quando a maioria dos terrenos foi comercializada e convertida em lotes de alto padrão, num dos bairros mais nobres da cidade.

Flávio, filho único, era diferente. Incansável, conseguiu subverter o comodismo que a fortuna lhe facultava e, com ímpeto de desbravador, arregaçou as mangas logo cedo. Aos 20 anos, estudante de engenharia, já tinha iniciado sua trajetória como empreendedor, abrindo uma pequena oficina de tacos de madeira. Para que o jovem pudesse ser o responsável legal pela fábrica, seu pai teve de emancipá-lo, numa época em que a legislação adiava a maioridade civil para depois dos 21 anos.

Eu era estudante e ainda tinha dois anos de escola por fazer. Devia estar no quarto ano, faltava o quinto. Foi em 1947. A indústria deu dividendo, então, eu tinha dinheiro. Apareceu a oportunidade de comprar um scraper e alugar o trator do papai para fazer obra. Então, eu tomei a iniciativa de chamar o Roberto e fui convidar um terceiro sócio. O Roberto dirigia a fábrica de laticínios e não ia poder se dedicar à empresa. Eu queria ter um sócio aqui perto com o qual eu pudesse conviver no dia a dia. Tinha que ser um sócio que fosse hábil para negociar. O primeiro critério era ser um sujeito fácil para fazer combinações, honesto, de bom trato. Outro critério era ter dinheiro para poder formar a sociedade. Eu era pragmático. Chamei o Flávio Gutierrez. Tínhamos empatia, porque eu costumava ir estudar na casa dele. Ele era um cara simpático, extrovertido.

Flávio Gutierrez e Gabriel Andrade eram iguais no mais importante: a dedicação ao trabalho e a confiança inabalável na futura sociedade. Em todo o resto, eram diferentes. Flávio era expansivo, enquanto Gabriel tinha um jeito mais introvertido. Flávio era passional, impetuoso; Gabriel era racional, cartesiano, ponderado. Flávio era destemido, ativo, insubordinável; Gabriel foi sempre lembrado pelo gênio metódico, detalhista, desconfiado, do tipo que ouve muito e fala muito pouco.

Roberto não fez objeção ao nome apresentado por Gabriel. Ao contrário, achou que seria perfeito, especialmente quando Gabriel revelou que o colega oferecera uma sala da casa de seus pais para servir de sede à empresa enquanto não houvesse recursos para alugar um imóvel comercial.

Da mesma maneira, Flávio concordou em entrar numa sociedade na qual os outros dois sócios eram irmãos. Foi uma decisão ousada de sua parte. Seria até natural que, eventualmente os irmãos Andrade se unissem para formar maioria e fazer valer sua decisão. Flávio preferiu confiar na seriedade e na hombridade dos Andrade, convencido pela personalidade sempre correta do colega de sala. Além disso, ele achava fundamental ter na equipe alguém com a idade e a experiência de Roberto. Estudantes, Flávio e Gabriel não poderiam assinar contratos ou responder pela empresa pelos próximos dois anos, enquanto não recebessem o diploma, de modo que a presença de Roberto, engenheiro formado dez anos antes, seria essencial, ao menos num primeiro momento. Além disso, se o plano era começar alugando o Mineiro para fazer pequenas obras, possivelmente nos arredores da fazenda, nada mais sensato do que atrair aquele que dirigia a SaMiGue e dividia com Donato a gestão da São Miguel.

Agora, Gabriel já tinha o dinheiro para o scraper, a anuência do pai para alugar o Mineiro e, principalmente, os dois sócios. Em meados de 1947, a empresa pôde se lançar no mercado, em busca dos primeiros clientes.

OS CONTRATOS DEMORARAM A APARECER. Para não deixar o scraper ocioso, os primeiros trabalhos da sociedade foram feitos na própria fazenda São Miguel. Roberto, Gabriel e Flávio atuavam como um trio de empreiteiros negociando prazos e insumos. Equipado com o scraper, o Mineiro virou pau para toda obra, alargando estradas, abrindo canais e auxiliando no dia a dia da SaMiGue.

Nessa primeira etapa, os sócios não podiam disputar concorrências em obras muito distantes da fazenda, porque o D6 era de Donato e o deslocamento ficaria inviável. Também não poderiam assumir obras muito demoradas, que arriscassem atrasar as atividades de plantio ou colheita. Compartilhar o trator começou a atrapalhar os planos da construtora.

Foi Flávio quem trouxe a notícia:

— A Sotreq está vendendo um D6 por preço muito bom — disse, referindo-se à distribuidora de produtos Caterpillar, inaugurada em Belo Horizonte no ano anterior.

O trator fora encomendado por um fazendeiro, que desistira da compra e rescindira o contrato depois de ter deixado um sinal. Em razão disso, a loja se dispunha a descontar esse montante do valor, reduzindo significativamente o preço final. Os três sócios se reuniram, fizeram as contas, e decidiram que era hora de ter o próprio trator. Com o novo D6, eles não precisariam mais revezar o Mineiro com o povo da fazenda. Nem ficar à mercê do calendário das safras.

Contraíram um empréstimo no Banco Mercantil de Minas Gerais para que Roberto pudesse fazer a compra no dia 9 de janeiro de 1948. Por 239 mil cruzeiros (o equivalente a US$ 95 mil no final de 2014), os sócios receberiam em pouco tempo o mais moderno trator com bitola de 60 polegadas à venda no Brasil, equipado com protetor de carter, gancho para reboque e sistema de iluminação, além de um guincho traseiro e uma lâmina frontal escavo-empurradora. Uma senhora máquina.

Com número de série 8U-619, o novo D6 foi entregue em 18 de maio de 1948, na Rua Espírito Santo, 1.439, residência de Donato e Gabriel Andrade. Gabriel, um aficionado por mecânica, se responsabilizou por acompanhar a entrega técnica e fazer a primeira inspeção. É dele a assinatura sobre a palavra “custom” no certificado redigido todo em inglês na matriz americana. Encontrado muito tempo depois nos arquivos da empresa, esse documento foi emoldurado e fixado na parede de uma das salas da sede da empresa, no bairro Cidade Jardim. O próprio trator repousaria, como um totem inspirador, no jardim da companhia, estendido sobre um tapete de flores após décadas de atividade em canteiros de obras.

Os operários e tratoristas trataram de batizá-lo logo na primeira semana de uso. Dessa vez, optaram por um título mais sonoro e pomposo, Soberano. Era assim que se sentia quem subisse na máquina e sentasse no banco: soberano.

Compramos o scraper para engatar no Mineiro, o trator do papai. Mas nem pudemos usar. Era fim de ano e chovia demais. E não conseguimos nenhum contrato. Fomos até uns caras que faziam estradas e eles falaram: “Não, nós já estamos organizados, não vamos fazer subempreitada”. Então nós fomos até o diretor do DNER, que era tio da mulher do Roberto, para ver se ele nos arranjava um contrato. “Ah, contrato aqui só com pistolão de ministro pra cima”, ele disse.

Ao se aposentar, o veterano Caterpillar D6 ganhou um jardim e um pedestal para ser exposto, com honras de relíquia, na sede da empresa, em Belo Horizonte

Com o novo trator, os sócios Roberto, Flávio e Gabriel puderam contratar as primeiras obras da empresa, em Belo Horizonte, já em 1948: canalização de córregos, terraplenagens, abertura de ruas. Nos intervalos entre os contratos, o equipamento também era alocado na fazenda São Miguel, onde atuava por períodos curtos, substituindo o Mineiro nas tarefas mais complexas. A principal delas seria a abertura de um canal de dois quilômetros para desviar água do ribeirão São Miguel e, graças a um desnível de dez metros, permitir seu aproveitamento hidrelétrico: 90 quilowatts, energia suficiente para manter a fábrica.

Para realizar a obra, a empresa foi contratada pela SaMiGue. Gabriel assumiu a tarefa, enquanto Flávio se concentrava em tocar as obras de urbanização em Belo Horizonte. Roberto os supervisionava.Canal e barragem foram construídos no primeiro semestre de 1949. De canivete pendurado permanentemente na cintura, hábito herdado do pai e do avô, Gabriel ia para o campo, onde passava algumas horas dirigindo o trator. Ele sabia que aquele usina permitiria à fábrica crescer rapidamente, sem qualquer preocupação com o fornecimento municipal de energia, bastante inconstante e insuficiente naquela época, e se exaltava com a ideia de construí-la ele mesmo, sem precisar contratar mais ninguém.

Ainda em 1949, durante a construção da barragem na São Miguel, os sócios fizeram seu primeiro campo de pouso, em Bambuí, e começaram a abrir sua primeira rodovia: um trecho de 12 quilômetros em Lagoa Grande, mais tarde Lagoa dos Ingleses, cerca de 30 quilômetros ao sul de Belo Horizonte. Agora, Roberto, Gabriel e Flávio podiam seguir adiante, com a certeza de que seriam, também eles, soberanos. Na abertura de estradas, na construção de usinas, na concessão de rodovias.

Fundada oficialmente em 2 de setembro de 1948, embora já estivesse em atividade desde meados de 1947, a Construtora Andrade Gutierrez entraria para o time das cinco maiores empresas de construção do Brasil em pouco mais de duas décadas. Com um portfólio extenso de realizações, cobrindo áreas tão distintas quanto telecomunicações, concessões, logística e suprimentos médico-hospitalares, o Grupo Andrade Gutierrez completaria 60 anos em 2008, com 170 mil funcionários e presença em mais de 40 países. E pensar que tudo isso começou com a iniciativa perspicaz e empreendedora de um rapaz magro e introvertido que, até a adolescência, sonhava mesmo era em ser boiadeiro.

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Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi