Lembrança de um passeio de coche por Washington DC em 1908 na temporada que Donato, então com 25 anos, passou nos Estados Unidos

3 | Passa boi, passa boiada

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
38 min readDec 2, 2015

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ERA BOI. Boi e aboio. Aboio comprido, extenso, dolente, entoado à capela, de sol a sol. Cantiga de sertanejo jeitoso, graduado no simples, conhecedor dos mistérios do ofício.

— Ê, boooooi!

À frente, um peão soprava o berrante, tangendo o rebanho tal qual um oráculo: Flautista de Hamelin a conduzir a rataria pela Mata de Pains, como na história popular recolhida pelos Irmãos Grimm. Música bonita a do berrante, a um só tempo instrumento e batuta na orquestra de cascos e mugidos.

Do alto de seus 15 anos, Gabriel ouvia e via, querendo aprender cada macete, cada truque. Neófito no comércio de gado, acompanhara o tio Bolivar, irmão caçula do pai, numa viagem a Dores do Indaiá, onde o tio fora buscar um lote de bezerros para engordar em uma de suas propriedades, em Bambuí. Vida de pecuarista era assim: comprava bezerro magro com um ano de idade e engordava para revender com quatro anos, pronto para o abate, ganhando dinheiro na diferença de peso, nas arrobas a mais.

Tio e sobrinho cumpriram de trem o trecho de ida. Agora, na volta, seguiam por terra, rodeados por mais de uma centena de reses. Tudo gado comum, mestiço, azebuado. Deixando o Rio São Francisco a leste, e a Serra da Saudade a oeste, a tropa avançava pelo Cerrado, em caminhos pontilhados de buritis. As estradas, estreitas, acabavam tangendo o gado por si só, delimitadas por cercas e arame de ambos os lados. A distância, cerca de 70 quilômetros, exigiria dois dias inteiros de marcha, se nada os obrigasse a estender a jornada pelo terceiro dia. O ideal é andar 30 quilômetros por dia, o tio ensinava. E levar o gado em ritmo de procissão de enterro.

Bolivar, nome com pronúncia oxítona na tradição mineira, explicava a origem daquele rebanho, apontava as diferenças entre espécies de palmeiras, calculava o tempo de sol que ainda lhes restava, tomava a dianteira ao atravessar riachos. A cada curva, tornava-se mais encantador aos olhos do sobrinho. Único dos irmãos de seu pai que não frequentara a faculdade, tinha uma enorme desenvoltura no manejo de gado de corte e também, e especialmente, na criação de mangalarga marchador, raça da qual foi um dos pioneiros. Bolivar gostava tanto daqueles animais, que fundaria, em 1949, a Associação dos Criadores do Cavalo Marchador da Raça Mangalarga. Muito tempo depois, o maior centro de exposições agropecuárias de Belo Horizonte, com alojamento, curral, restaurante, pista de desfile, tribuna e pavilhões para bovinos e equinos, receberia o nome de Parque de Exposições Bolivar de Andrade, de tanto que era frequentado por ele — embora a maioria das pessoas o conheça apenas como Parque da Gameleira.

O primeiro transporte de gado da vida de Gabriel, naquele comecinho dos anos 1940, parecia confirmar o que o garoto já sabia: seu destino era ser boiadeiro. Não apenas criador de gado de leite, como o pai, mas também de gado de corte, como o tio, para viajar longas distâncias, engordar no pasto, vender em leilão, mandar para o abate. Seduzido pela sabedoria de Bolivar, o rapaz não perdia um ensinamento ao longo do caminho.

Um longo caminho, aliás. Dois dias de marcha, com uma noite dormida em rede, num dos pousos mal ajambrados que se distribuíam pelo trajeto. Era preciso levantar cedo e juntar o gado à luz da aurora para pegar a estrada por volta das 7h. Quando muito, deixavam o gado pastar um pouco e saíam às 7h30. Antes das 11h, paravam para almoçar, abrindo o embornal e sacando de dentro da matula uma mistura de carne seca com farofa, ou de frango com farofa. De tardinha, antes que o frio do inverno os derrubasse, retiravam-se para o pouso num local estratégico, bem na metade do trajeto. Acomodado num galpão de fazenda, junto com o tio e um capataz experiente, Gabriel sentiu o frio da madrugada e preferiu mudar-se para o chão, enrolando-se na rede como se agarrasse uma manta. A mudança custou caro: o aprendiz de boiadeiro chegou em casa tomado por pulgas e bichos de pé.

Os revezes, no entanto, aumentavam seu entusiasmo, que já era grande. Eram assimilados como ferimentos de guerra pelo rapaz, que considerava a pecuária uma atividade heróica, romântica. Aquela rotina sertaneja de comprar e vender gado, transportar de uma cidade para outra, pôr na estrada e passar dois ou três dias em viagem, com risco de chuva e atoleiros, tudo parecia uma grande aventura, como nas revistas de Velho Oeste ou nos livros de João Guimarães Rosa. “Viver — não é? — é muito perigoso”, Rosa escreveria anos mais tarde, em seu Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956.

O jovem Gabriel se divertia fazendo acrobacias a cavalo. Seu sonho era tanger boiada

Gabriel aprendera a admirar os boiadeiros nos filmes de faroeste a que assistia nos cinemas de Belo Horizonte: o Cine Odeon, o Cine Avenida, o Cine Brasil. No ano anterior, estreara No tempo das diligências, de John Ford, a mais cultuada fita de cowboy de todos os tempos, responsável por transformar o astro John Wayne no maior ídolo do western americano. Gabriel se divertia, torcia, vibrava. E achava mais charmosa a lida nas comitivas, com temporais repentinos e córregos a serem cruzados, do que a rotina no laticínio, com seu horário para levantar, duas ordenhas por dia, longas manhãs consumidas no curral.

Na estrada, Gabriel arquivava na memória o que houvesse de informação relevante. Aprendia com o tio que capim novo, crescido após a queimada do pasto, é fermento da melhor qualidade para engordar bezerro. E que um curral precisa ser construído com madeira boa, pouco importando se os pilares foram bem aparados e lixados, ou se existe simetria entre eles.

— Não precisa ser bonitinho — Bolivar costumava frisar, ciente de que a eficiência é, e sempre foi, o mais importante.

Gabriel viajava satisfeito e orgulhoso após ter feito sua primeira aquisição de gado. Em Dores do Indaiá, enquanto o tio negociava um vasto rebanho, o jovem sobrinho comprara 20 cabeças, mestiças de gir com gado comum, e decidira levar tudo para a São Miguel. Como ele lembrava muitos anos depois, por puro romantismo, sem objetivo econômico.

O pai, Donato, ao vê-lo chegar com a tropa, não deu muita confiança. Mas tampouco o proibiu de acomodar os bois por ali. O rapaz passaria o gado adiante em poucos meses, e voltaria a se envolver com outras transações nos anos seguintes, intermediando gado de corte para o tio Bolivar. Numa delas, fez negócio com José Vital, criador de Lagoa da Prata, pegando 15 tourinhos em consignação: foi estipulado um preço mínimo pelo rebanho e o combinado foi que Gabriel dividiria com José Vital o lucro que obtivesse, metade para cada um. Rapidamente, Gabriel conseguiu passar o gado adiante com um ágio de 100%. Não apenas pagou o que devia ao antigo dono, com o devido acréscimo, como resolveu doar para a Santa Casa tudo o que havia faturado com o serviço de mascate. Deu uma sorte danada, segundo ele, porque nunca mais deixou de pingar na sua conta, nem na pecuária nem na engenharia.

GABRIEL DONATO DE ANDRADE NASCEU em 12 de janeiro de 1926, na Fazenda São Miguel. Sua mãe, Laura Salles Botelho de Andrade, tinha 37 anos. O pai, Donato de Andrade, 42. Raspa do tacho, como se dizia dos filhos temporões, era com inevitável distância que Gabriel se relacionava, na infância, com os irmão José Maurício e Roberto.

A mãe nascera em 1888, em Lavras, 230 quilômetros a sudoeste de Belo Horizonte, filha de Elvira Salles Botelho e do médico José Esteves Botelho. Órfã ainda criança, como os quatro irmãos, fora criada pela avó Ana Salles, numa família sem grandes posses, mas rica em valores e em educação. Um dia, sutil como uma araponga, a avó pegou Donato de jeito:

— Eu vou a qualquer momento, você sabe — ela disse. — E Laurinha logo fará 24 anos. Não está na hora de vocês tomarem o rumo de vocês?

Donato entendeu o recado e marcou a cerimônia.

Nascido em Passa Tempo, na época distrito de Oliveira, localizado 140 quilômetros a sudoeste da capital mineira e a cem quilômetros de Lavras, Donato tinha 29 anos quando o casal subiu ao altar, em 1912. Uma análise da árvore genealógica mostrará que os dois eram primos de segundo grau, o que não causou nenhum impedimento à realização das bodas. Outros casamentos entre primos, ou de tio com sobrinha, haviam sido realizados na família. Laura, até então uma moça da cidade, que gostava de costurar e tocar piano, mudou-se com o marido para a fazenda São Miguel, adquirida pelo noivo naquele mesmo ano.

Graduado em Direito pela Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, Donato não chegara a exercer a advocacia, preferindo se dedicar à agropecuária, a mesma atividade do pai e do avô. Seu avô, Francisco Teodoro de Andrade, ganhara fama em Minas Gerais como introdutor da linhagem Passa Tempo de cavalos mangalarga marchador, pioneira na marcha picada, que ele selecionava desde a década de 1860 na fazenda Campo Grande. Já em 1881, seu tropel e sua fazenda foram transferidos ao filho mais velho, Gabriel Augusto de Andrade, que deu continuidade à linhagem, além de cultivar café e criar gado de origem europeia. Donato era o mais velho dos sete filhos de Gabriel, que ostentava a patente de coronel da Guarda Nacional e era chamado Seu Bié por todos.

Logo depois de formado, e já decidido a abandonar o diploma, Donato passou uma temporada nos Estados Unidos, onde fez estágios em zootecnia. Na ocasião, levou uma carta de apresentação assinada pelo senador Ruy Barbosa e chegou a ser recebido em Washington pelo então secretário da Agricultura James Wilson, um político de Iowa que permaneceria 16 anos no cargo, de 1897 a 1913. Wilson era um dos maiores especialistas em temas agrícolas dos Estados Unidos, e foi o secretário que mais tempo ficou no cargo na história do país. Donato, então com 25 anos, recebeu a recomendação de que fosse ao estado de Kentucky, onde visitou fazendas, conferiu o que havia de mais moderno em manejo de pastos e criação de equinos. Depois de pegar malária no Tennessee, o jovem brasileiro voltou pra casa com o plano de procurar terras calcárias, mais férteis do que as de Passa Tempo.

Bacharel em Direito pela Faculdade do Largo São Francisco, Donato ( 1883–1979) trocou a profissão pela atividade agropecuária na região da Mata de Pains, em Minas Ge

No início da década de 1910, estabelecido no Brasil e às voltas com o casamento, Donato empenhava o tempo livre na busca por terra calcária. Quase fechou negócio ao visitar uma fazenda em Pedro Leopoldo, a noroeste da jovem capital Belo Horizonte (e perto de onde hoje fica o aeroporto dos Confins), mas a mulher do proprietário se recusou a assinar o contrato. Finalmente, encontrou o que procurava nos arredores da estação de trem São Miguel, a 12 quilômetros de Arcos, então um distrito de Formiga (a emancipação aconteceria em 1938).

Encravada na Mata de Pains, nas cabeceiras do Rio São Francisco, aquela terra era uma das mais calcárias que o jovem já vira. Por ali, afloravam pedreiras em tamanha quantidade que, a partir da década de 1940, a região se tornou visada por empresas de extração e beneficiamento de calcário. O próprio Donato chegou a instalar um forno de cal e a queimar pedra calcária na fazenda, nos anos 1930. Mais tarde, por volta de 1945, negociaria o direito de exploração das pedreiras de sua propriedade com um empresário do ramo, Augusto Trajano de Azevedo Antunes. Anos depois, a região ficaria coalhada de empresas processadoras de calcário, incluindo uma fábrica de cimento da Companhia Siderúrgica Nacional e uma unidade industrial da multinacional francesa Lafarge.

Donato em um retrato com a indumentária rotineira durante a viagem aos Estados Unidos em 1908.

A fazenda de 2 mil hectares, adquirida aos poucos a partir de 1912, emprestou o nome da estação de trem e do rio (ou ribeirão) que a banhava, São Miguel. Ali, Donato fazia um pouco de tudo. Plantava milho e capim, moía milho para fazer fubá, engordava porcos, criava cavalos de raça e gado de leite, e comercializava mulas. Numa época de poucos tratores, as mulas eram animais cobiçados para transporte de carga e trabalhos agrícolas. E os burrinhos de Donato faziam sucesso, inclusive em concursos da raça (se é que se pode chamar de raça o híbrido estéril de jumento com égua). Até os anos 1930, era comum fazendeiros do interior paulista irem até a São Miguel para comprar animais de Donato a fim de empregá-los na aragem das lavouras de algodão.

O Exército também era cliente. De tempos em tempos, baixava um oficial na fazenda para conferir os muares. Diz a lenda que, na semana que antecedia a chegada do forasteiro incumbido de comprar os bichos, Donato mandava um funcionário dar uma sova com vara de bambu nas mulas, diversas vezes por dia, a fim de fustigá-las. Chegada a hora da inspeção, punha um moleque para andar de um lado para outro, arrastando a vara pelo chão do curral. Era o suficiente para que os animais ficassem do jeitinho que o comprador queria: espertos, ouriçados, sempre alertas. Numa tacada só, vendiam-se mais de 20.

Donato, à direita, posa para foto em estúdio com o irmão Vander e o primo Juca Leite, em 1908. Juca era tão alto que teve de ficar sentado para a foto. Dali a 30 anos, Vander e Juca Leite virariam seus sócios numa indústria de laticínios.

Aos poucos, Donato foi se distanciando da região de Passa Tempo para se voltar completamente para a nova área, que em tudo lhe parecia mais promissora, mesmo que, à época da compra, a região onde ficava a fazenda fosse um fim-de-mundo, longe de tudo, onde grassavam doenças endêmicas, como a esquistossomose e a doença de Chagas. O pai e os irmãos continuaram produzindo na região de Passa Tempo, mas não tardou para que Vander fosse influenciado por Donato e adquirisse terras em Bambuí, vizinha de Arcos.

Em meados do ano seguinte, o coronel Gabriel Augusto pegou o filho Donato pelo braço e o convidou a acompanhá-lo numa longa viagem pelo Triângulo Mineiro e pelo interior paulista. Agora que Donato já tinha se casado, já se estabelecera na fazenda que tanto procurara e, o mais importante, inaugurara a descendência com a chegada de Maurício, em fevereiro daquele ano, chegara finalmente a hora de acompanhar o pai numa jornada técnico-científica pelas mais modernas e avançadas fazendas do Brasil. Aquele era um antigo sonho de Gabriel. E a ocasião serviria para que os dois comemorassem, juntos, o 30º aniversário do filho, no dia 12 de agosto.

Os avós de Gabriel, Áurea Ferreira de Andrade e Gabriel Augusto de Andrade, cercados pelos seis filhos na fazenda Campo Grande, em Passatempo. Donato é o primeiro à esquerda.

Foram dois meses da viagem, percorrendo as estradas de automóvel do Triângulo Mineiro e de São Paulo e visitando trinta das mais importantes fazendas de café e gado instaladas no caminho. Num memorial redigido logo após o fim do périplo, Gabriel cita alguns dos produtores que conhecera, e cujas fazendas o encantaram, nos municípios de Ribeirão Preto e Orlândia: Joaquim da Cunha Diniz Junqueira, Francisco Orlando Diniz Junqueira e Joaquim Prudente Corrêa. Seu entusiasmado ensaio discorre sobre a conveniência de se investir na seleção e no desenvolvimento do gado zebu. “Aproveitei o feliz ensejo para realizar meu antigo desejo de apreciar, de visu, a famosa zona do Triângulo, onde o zebu implantou o seu soberano e invencível predomínio e de onde vai, lenta e irresistivelmente, avassalando as outras zonas criadoras do país, infiltrando seu sangue vigoroso nas definhadas raças até hoje existentes entre nós”, escreveu o pai de Donato no artigo, publicado em uma revista de Uberaba.

“Quanto ao famoso zebu”, continuava o artigo assinado pelo coronel Gabriel, “o juízo que sempre fiz a seu respeito ficou plenamente confirmado: é uma raça de transição entre nós, destinada a formar a base econômica da futura pecuária brasileira e povoando as nossas vastas e incultas zonas sertanejas, de condições tão precárias, e aquelas zonas para as quais a natureza não foi pródiga.” Indo além, ele afirmava que “seria uma rematada loucura quererem criar as raças finas europeias nessa zonas onde predominam nossos referidos ‘campos naturais’ ou naquelas zonas sertanejas incultas, cuja população pratica a indústria pastoril da maneira mais primitiva e falha.” Em outras palavras: “É inegável que o zebu é inferior às boas raças europeias, tanto para o corte como para a produção de leite; elementar seria, pois, que onde se pudesse criar o gado europeu, dever-se-ia desprezar o gado indiano; devemos, porém, pensar nas vastas regiões — ou quase o Brasil inteiro até o presente momento de sua lenta evolução agropecuária — onde o gado europeu não poderia prosperar.”

A sede da fazenda São Miguel, em foto de 1925.

Tais regiões, segundo o cronista, seriam aquelas “assoladas por secas periódicas, de sol ardente, regiões de topografias excessivamente acidentadas, regiões, enfim, onde o progresso agrícola, o cultivo intenso e extenso de boas espécies forrageiras é, atualmente, e ainda o será por longos e dilatados anos, absolutamente impossível.”

No mesmo texto, o coronel dedica alguns parágrafos a indicar estratégias de hibridização do gado, profetizando o surgimento da raça zebulando que, muitas décadas depois, estaria amplamente difundida pelo país: “O zebu é, sem dúvida para a maior parte dos nossos fazendeiros, um animal utilíssimo, desde que a sua exploração seja feita criteriosamente”, afirmou. “O meio-sangue zebu é um produto esplêndido, dotado de qualidades inegáveis, mas um mau reprodutor. A remoção deste inconveniente não será difícil e consistirá em nunca usarem os criadores senão reprodutores puros, que possuam uma íntegra e perfeita potencialidade reprodutora. É preciso que os nossos criadores menos experientes estejam prevenidos e não se deixem impressionar pela corpulência e beleza ou vigor exterior do meio-sangue zebu, supondo obter dele crias idênticas.” Nesse aspecto, dizia ter encontrado boas práticas nas fazendas visitadas, o que o deixava bastante otimista quanto ao futuro da raça. “Felizmente, tive a satisfação de observar que os mais adiantados e inteligentes criadores de Uberaba já se compenetraram desta noção prática e só estão usando reprodutores garantidamente puros, procurando importar, periodicamente, mesmo através dos mais ingentes sacrifícios, touros indianos. (…) Parece que, mesmo sem que tenha havido por parte dos criadores brasileiros uma preocupação de fazer uma seleção metódica e científica do gado indiano entre nós, este visivelmente tem melhorado no seu novo habitat, superando em peso e beleza o gado importado.”

Documento atesta o prêmio de melhor “asinino” conquistado pelo animal Far West em 1938.

Por fim, o velho Gabriel conclui o ensaio anunciando os próximos passos que estaria decidido a dar em sua trajetória de criador. “Foi pensando assim que eu, velho criador da raça holandesa, e que penso ter todos os elementos para bem criá-la, resolvi, seguindo o espírito comercial da época, o qual eu nem ninguém poderia mudar de um golpe, a adquirir dos melhores criadores do Triângulo e criar, em um dos departamentos de minhas fazendas, um limitado número de cabeças de gado indiano puro que procurarei selecionar com afinco”. E arremata: “O zebu está destinado a preencher entre nós o papel do nosso curandeiro: onde não puder se achar o médico, ele irá remediando.” Seu Bié não tinha como saber disso, mas seu desejo teria de aguardar quase um século para se concretizar.

QUANDO O PEQUENO GABRIEL NASCEU, a fazenda de Donato era das mais promissoras em toda a zona de influência da estação ferroviária de São Miguel, distante cerca de dez horas de viagem de Belo Horizonte. Ali, junto à plataforma onde embarcavam-se cal, milho e algodão rumo à capital do Estado ou ao Rio de Janeiro — e onde desembarcavam roupas, gêneros alimentícios, produtos veterinários e equipamentos agrícolas vindos das duas capitais — quase não havia comércio. Algumas casas, apenas, e só um armazém de secos e molhados, que oferecia de tudo. Sementes, insumos, tecidos, varejo ou atacado, de pinga a vestido de noiva.

Entre as atividades de Donato estava a criação de burros e muares para vender como força de tração animal, inclusive para o Exército.

Durante mais de uma década, Donato adotou uma moeda própria para pagar os funcionários: pequenos cartões produzidos com um papel mais grosso, com o valor estampado numa das faces e a assinatura do patrão na outra. O povo logo apelidou de boró, expressão popular empregada em diversos Estados, especialmente na região Norte, para se referir a dinheiro. As cédulas de boró eram aceitas na venda da São Miguel, de modo que os trabalhadores poderiam trocar pelos produtos que quisessem, quando quisessem. Periodicamente, o dono do mercado juntava todo o boró recebido e ia prestar contas com Donato, que os convertia novamente em dinheiro de verdade — primeiro em mil réis e, a partir de 1942, em cruzeiros.

O pai de Gabriel alegava que era difícil conseguir dinheiro trocado para pagar cada funcionário, numa época em que poucos tinham conta em banco e nenhum salário era pago mediante depósito automático, como seria comum décadas depois. Também era menos seguro manter grandes volumes de dinheiro na fazenda, além de que a prática evitaria que os trabalhadores gastassem com “bobagens” pelas redondezas. Desse modo, pareceu-lhe mais fácil e inteligente imprimir o próprio dinheiro, o que também garantia freguesia para o armazém local — embora, na prática, quase todo comerciante da região aceitasse receber em boró. Bastaria procurar a administração da fazenda para fazer o câmbio, a cada semana ou mês.

Uma cédula de “boró”, o cartão que valia dinheiro no mercadinho da fazenda.

O pessoal não reclamava. Apenas muito tempo depois, com a consolidação das leis trabalhistas e o fortalecimento dos sindicatos rurais, a adoção de moedas locais passou a ser combatida por entidades de classe e também pelo governo federal. Já nos anos 50, o boró não era mais usado.

Na fazenda, o bebê caçula crescia como filho único, paparicado por pais que, pelo costume da época, já tinham idade para serem seus avós. Os irmãos, adolescentes, estudavam em colégio interno, em Lavras, o Instituto Gammon, fundado por um missionário norte-americano no século XIX, mais um sinal da influência das ideias vindas dos Estados Unidos na família de Donato. Quando eles concluíram o colegial, e Gabriel completou 3 anos, foram todos morar por um curto período na mesma casa, em Belo Horizonte, e o trio de irmãos passaria a conviver de maneira mais rotineira, ao menos por quatro anos, até os pais e o filho menor voltarem para a fazenda, onde ficaram, indo e vindo, até Gabriel completar 10 anos.

Laura se esforçava para se habituar ao cotidiano na roça. Nunca se acostumaria completamente. Tinha saudade da vida social, dos bailes, de tomar café com quitanda em casas de parentes e amigas. Na fazenda, era raro sair ou receber visita. Foi apenas em 1929, após 18 anos na São Miguel, quando Maurício ingressou no curso preparatório para a universidade de Direito, em Belo Horizonte, que Laura conseguiu convencer Donato a montar uma primeira residência na capital mineira.

Seu primeiro endereço foi na Rua Guajajaras, na casa de um tio, irmão de Donato, onde a família morou por pouco mais de seis meses, até alugar um imóvel na Rua da Bahia, também no centro, no ano seguinte. Agora, Roberto também era estudante universitário, aluno do curso de Engenharia da Universidade de Minas Gerais. Desde então, a família se dividia entre as duas residências, a urbana e a rural.

GABRIEL TINHA 4 ANOS quando a família se mudou para a Rua da Bahia. Mudou, em termos. O pai ainda permanecia mais tempo na fazenda do que na cidade — e costumava arrastar o caçula sempre que podia.

No comecinho da década, o Brasil viveu momentos de apreensão e entusiasmo com o governo do gaúcho Getúlio Vargas, empossado na presidência em 3 de novembro de 1930, após a deposição de Washington Luiz, em 24 de outubro. A República Velha acabava ali, e junto com ela a política do café com leite, um acerto entre as elites de Minas e São Paulo, que se alternavam há décadas na Presidência da República.

Papai me seduzia. Queria que os filhos o sucedessem na atividade rural. Punha um cara para me ajudar a pescar, armar rede no ribeirão, passear a cavalo. Era uma vida muito boa. Peguei xistose (esquistossomose) por causa disso. Gostava de tomar banho de rio, de caçar marreco na Lagoa Bonita e na Lagoa das Piranhas. Eu tinha uma cartucheira, e os outros meninos da fazenda tinham essas espingardinhas pica-pau, de carregar pela boca. Marreco é esperto, não deixa chegar perto. Voava e ia pousar longe.

Naquele ano de 1930, aliás, a também gaúcha Yolanda Pereira sagrara-se Miss Universo, o Uruguai ganhara a primeira Copa do Mundo e um zepelim avançara sobre a Baía de Guanabara. Gabriel, esse, vivia lá e cá. Brincava de pescaria no Rio São Miguel; jogava bola nas ruas de Belo Horizonte.

Na São Miguel, o menino Gabriel, aqui com 12 anos, andava a cavalo, pescava no ribeirão e caçava marrecos nas lagoas.

A fazenda o atraía mais, sempre atraiu. Donato o seduzia. Punha o moleque para brincar nos tratores, levava para ver o gado, andar a cavalo. Com funcionários da São Miguel ou filhos de funcionários, Gabriel ficava de um lado para outro brincando. Pescava no ribeirão, caçava marreco, tentava alvejar macacos. Embora fosse um menino tímido e calmo, Gabriel não deixava escapar nenhuma oportunidade de aproveitar a fazenda. Por duas vezes, pegou esquistossomose, que ali todo mundo chamava de “xistose”, de tanto brincar nos rios e lagoas.

A doença, das mais incidentes e letais verminoses registradas nos trópicos, ataca fígado e baço e, na ausência de tratamento, mata. Em Gabriel, causou uma diarreia que parecia não mais cessar. O ventre crescido, efeito colateral típico, responsável por conferir à parasitose o nome popular de barriga d’água, teve de ser combatido com a única arma capaz de vencê-la na época: uma injeção de fuadina. O medicamento era tão severo e de tão difícil manejo que apenas um médico poderia aplicar a dose, e com a obrigação de acompanhar o tratamento. Quem tratou de Gabriel foi o médico Eduardo Borges da Costa, que era sogro do irmão Maurício e morava no mesmo quarteirão em Belo Horizonte. Em uma semana, estava curado, pronto para voltar à fazenda e retomar a intensa rotina de pescarias e cavalgadas.

Na cidade, onde passava metade do tempo, os brinquedos eram mais caros. Ou assim lhe pareciam. Quando ganhou a primeira bola, Gabriel ouviu um discurso inflamado da mãe, chamando-lhe a atenção para o preço do presente: 19 mil réis (cerca de US$ 20 em 2014).

Jogávamos futebol todo dia, num trecho da Rua Timbiras perto da Rua da Bahia. Mamãe me deu a bola, mas chorou: “Custou 19 mil réis, toma cuidado com o guarda”. Ih, eu pensei. Custou 19 mil réis, que horror! Até chorei quando um guarda confiscou a bola na Rua da Bahia. Fui criado na rédea curta. Eles eram fazendeiros, e fazendeiro é muito regulado, gosta de reclamar que está com pouco dinheiro. Falo de cátedra (risos).

— Donatelo, toma cuidado com essa bola. Ela custou caro. Não vai perder ou estragar.

Laura tocava piano, cultivava orquídeas e fazia arranjos. A foto acima, da mãe apoiando sua mão sobre seu piano, foi tirada por Gabriel, que acabara de ganhar sua primeira câmera, aos 12 anos, em 1938.

Gabriel era chamado de Donatelo, apelido dado pelos pais que logo se disseminou entre os amigos e familiares. Nas semanas que se seguiram ao alerta de Laura, o maior temor do menino não era furar o brinquedo, mas deixar que ele fosse confiscado por um guarda, como era frequente nas ruas da capital.

Até pouco tempo antes, a turma jogava bola na Rua Guajajaras, uma das mais tranquilas do Centro, mas o péssimo estado do calçamento de pedras irregulares, conhecido como pé-de-moleque, fez com que a trupe transferisse a pelada para a Rua Timbiras, num trecho plano junto ao cruzamento com a Rua da Bahia. O problema é que a esta última era movimentada, com trânsito intenso, trilho de bonde e estabelecimentos comerciais dos dois lados, o que obrigava os guardas a ficarem de prontidão. Se quisesse jogar futebol ali, a molecada precisava ficar esperta. Ao primeiro sinal de perigo oferecido aos pedestres, aos carros ou às vidraças, a bola seria imediatamente confiscada. Sem direito a júri ou apelação.

Em Belo Horizonte, Gabriel tomou aulas de natação no Minas Tênis Clube e adquiriu o hábito de nadar todos os dias, ou pelo menos três vezes por semana, costume mantido até os 80 anos, na piscina de sua casa.

Donatelo arriscou, até que tomaram sua bola. Cedo ou tarde, isso haveria de acontecer. O menino, de 9 anos, chorou de sair lágrima, tamanha a raiva do guarda e a vergonha da mãe. Ele não apenas temia a bronca que levaria ao voltar para casa como se entristecia por saber que não ganharia outra bola tão cedo.

A imagem que Gabriel guardaria na memória é a de uma mãe impaciente, que frequentemente ameaçava colocá-lo de castigo dentro de um quartinho. Quando o caçula tinha 10 anos, Laura se aproximava dos 50 e já tinha filhos com mais de 20. Em muitos momentos, faltava-lhe paciência para lidar com as estripulias do caçula, que nem eram tão frequentes assim. O próprio irmão Roberto, aliás, tomara a iniciativa de defendê-lo em algumas ocasiões. Donatelo ouvira sem querer.

— Seja mais paciente com ele — pedira o irmão. — O Donatelo é um menino normal, está estudando direitinho, quase nunca dá preocupação.

Educado na rédea curta, Donatelo aprendeu a conservar seus brinquedos. E ficava boquiaberto quando um colega aparecia trazendo uma nova engenhoca. Uma vez, aos 8 anos, arregalou os olhos ao ver o vizinho Guguto, filho de um empreiteiro, surgir num automovelzinho a motor. A turma costumava brincar em carrinhos com pedais, não muito diferentes dos triciclos, e o cara foi aparecer numa supermáquina movida a gasolina, que lhe permitia ir de lado a outro sem esforço! Para Donatelo, pareceu a coisa mais sofisticada do mundo, o tipo de conforto ao qual ele pensava jamais ter acesso.

Bom mesmo era não precisar de nada daquilo. E fazer como o Gororoba, o filho do bicheiro, que, embora morasse numa casa simples, sabia o segredo para se divertir gastando pouco e sem se cansar:

— Vamos brincar de ler livro? — o amigo convidava.

Aos 11 anos, Donatelo ganhou a primeira bicicleta e passou a percorrer as ruas em comboio com os colegas do bairro. Nunca mais houve outra brincadeira à altura. Coisa fascinante era sentir o vento no rosto e os pedais girando depressa, cada vez mais. Dependendo do lugar e do calçamento, dava até para ficar em pé sobre os pedais, levantando-se por alguns instantes do selim, e fechar os olhos rapidamente. Quase tão bom quanto andar a cavalo, ainda a predileção do filho mais novo de Donato.

OS PRIMEIROS RUDIMENTOS DE PORTUGUÊS e matemática foram adquiridos numa escola rural, na própria São Miguel. Aos 7 anos, matriculado ali e no grupo escolar Afonso Pena, na Avenida João Pinheiro, de Belo Horizonte, Donatelo não encontrava jeito de acompanhar o currículo em nenhuma das turmas, de tanto que pulava de um lugar para o outro: duas semanas aqui, três semanas ali. Aos 10, não sabia tabuada nem tinha fluência na leitura; foi quando a mãe decidiu pôr ordem na avacalhação. A partir de agora, Donatelo só iria para a fazenda nas férias. Sua prioridade era estudar.

As brincadeiras urbanas incluíam maldades como amarrar latinhas no rabo do gato com o primo Galeno. Além de jogar bola na rua e andar de bicicleta por aí, de longe a preferida de Gabriel na época em que morava na Rua Espírito Santo.

A essa altura, a família acabara de se instalar no número 1.439 da Rua Espírito Santo, sua primeira casa própria na cidade, a poucos metros da esquina com a Rua Timbiras. Entregue aos cuidados de uma escola pequena, com apenas uma turma de 20 e poucos alunos, mantida por duas senhoras linha dura — dona Cemi e dona Terezinha –, o garoto tirou o atraso em português e matemática e fechou o ano de 1936 em condições de ingressar no curso ginasial do Colégio Arnaldo, uma instituição renomada, administrada por padres alemães. João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino foram alguns dos brasileiros ilustres educados no mesmo ginásio.

A gente morava metade do ano na fazenda e metade em Belo Horizonte. Aí avacalhou meu curso primário. Quando eu tinha dez anos, mamãe falou: “Chega. Tem que estudar direitinho”. Aí eu vim para a escolinha de duas solteironas, perto de casa, aqui em BH. Em um ano elas me ensinaram a ler, a escrever e a fazer conta. A ler eu aprendi depressa, mas fiquei ruim de aritmética. Ainda bem que engenheiro não precisa tanto de aritmética, porque usa cálculo integral e diferencial. A matemática dos engenheiros não tem nada a ver com a do curso primário. É uma matemática superior. Dispersando um pouco, dizem que esse ENEM descobriu que os meninos de 13 anos que estão terminando o primeiro grau não sabem fazer conta. Eu estava igual a esses meninos do ENEM quando fiz dez anos.

Gabriel ficaria apenas um ano ali. Logo, mudaria novamente de escola, iniciando o ano letivo de 1938 como um dos alunos da primeira turma do Colégio Marconi, recém-inaugurado por imigrantes italianos afinados com a Ação Integralista Brasileira.

Gabriel, com o uniforme do Colégio Arnaldo

Conhecido pela sigla AIB, o partido de extrema-direita fundado em 1932 por Plínio Salgado fora em parte financiado pela embaixada italiana e funcionara como canal de divulgação dos ideais fascistas no Brasil, até ser extinto, bem como os demais partidos políticos, pelo Estado Novo, regime totalitário instaurado em 1937 por Getúlio Vargas. Os anos seguintes seriam de ditadura, com o fechamento do Congresso Nacional e plenos poderes conferidos ao presidente.

Criado em consonância com as principais ditaduras nacionalistas instaladas na Europa no mesmo período — por Mussolini, na Itália, por Salazar, em Portugal, e por Hitler, na Alemanha — o Estado Novo introduziu não apenas a censura à imprensa e um departamento oficial de divulgação e propaganda, mas também a repressão como forma de conter arroubos oposicionistas.

Embora gozasse do apoio da AIB e tivesse prometido a Plínio Salgado abrir espaço em seu governo para os ideais integralistas, Vargas preferiu não abrir exceção ao proibir a existência de partidos políticos de qualquer espécie ou coloração. Conduzidos à clandestinidade pelo Estado Novo, os integralistas promoveram algumas rebeliões no primeiro semestre do ano seguinte, culminando no levante integralista de 10 de maio de 1938. Naquele dia, ações foram deflagradas em diferentes locais do Rio de Janeiro. Entre os objetivos do levante estavam a deposição de Filinto Muller da chefia da polícia do Distrito Federal, o resgate de líderes da AIB presos desde março e, na madrugada do dia 11, a invasão do Palácio Guanabara, residência oficial do presidente, para depor Vargas e legalizar novamente a AIB. Disposta a matar o presidente, uma centena de integralistas quase conseguiu invadir o palácio naquela madrugada, mas o levante acabou abafado com a chegada de tropas do Exército.

Maurício e Roberto, os irmãos mais velhos que circundam a “raspa do tacho” convenceram os pais a matricular Gabriel no Colégio Marconi, fundado por imigrantes italianos simpáticos ao movimento integralista.

Nos dias que se seguiram, cerca de 1.500 integralistas foram presos, e Plínio Salgado foi exilado em Portugal. Donato e os dois filhos mais velhos, simpatizantes da AIB e amigos de um dos mais ativos militantes do integralismo, o carioca San Tiago Dantas, optaram por deixar a barba crescer como método de disfarce. Por algum tempo, temiam ser reconhecidos nas ruas como militantes do integralismo. Nos anos anteriores, não havia sido raro vê-los de uniforme verde-oliva, exibindo no casaco o distintivo da AIB (a letra grega sigma, ∑). Alguma foto antiga poderia comprometê-los, da mesma forma que algum conhecido poderia denunciá-los. Por sorte, nada aconteceu.

Fato é que, em janeiro de 1938, meses antes do levante integralista ser abafado pela ditadura Vargas, foram os irmãos Maurício e Roberto que convenceram o casal Donato e Laura a transferir a rapa do tacho para o Marconi, ligado aos italianos, então instalado numa casa na Rua Timbiras.

— Lá você vai ter uns sargentos fascistas para apertá-lo — Roberto dizia, com entusiasmo.

A turma de Gabriel no Colégio Marconi em 1941.

Desde o nome, o colégio inspirava disciplina: exatamente o que havia de mais necessário para a educação de um jovem, na concepção dos irmãos. Morto no ano anterior, e prontamente homenageado pelos fundadores do colégio, Guglielmo Marconi simbolizava o tipo de ousadia e personalidade que se esperava de um aliado. Inventor do rádio, Marconi recebera o Prêmio Nobel de Física em 1909 e aderira publicamente ao regime de Benito Mussolini em 1923.

Curiosamente, o ideal de educação rígida almejado pelos irmãos Roberto e Maurício caiu por terra após a nacionalização do Marconi, naquele mesmo ano. Meses após a matrícula, Vargas publicaria o decreto-lei 383, de 18 de abril de 1938, proibindo os estrangeiros de desempenhar atividade política, realizar comícios ou manifestações, transmitir programas de rádio e editar jornais ou boletins em seus idiomas. Tampouco era permitido usar outro idioma que não a língua pátria para alfabetizar crianças nas escolas ou conversar em público. Quem fosse flagrado em desacordo com as normas estaria sujeito a retaliações, tornando-se, conforme a lei, “passível de expulsão, a juízo do governo”. Como tudo isso, a administração do Marconi foi estatizada, subvertendo a educação “exemplar” que tanto entusiasmara Maurício e Roberto. Dois anos depois, o início da Segunda Guerra Mundial e o apoio do Brasil aos aliados tornariam ainda mais tênue a influência italiana sobre o colégio, agora transferido para um prédio maior, na Avenida do Contorno.

Maurício no auge da militância pela Ação Integralista Brasileira, nos anos 1930, com a letra sigma estampada na roupa.

No pátio, a molecada fazia troça de um Mussolini velhaco que nem Getúlio Vargas parecia respeitar.

— Benito Mussolini / il Duce aviatore / finita la benzina / ha pisciato sul motore — diziam os versos travessos de uma quadrinha bufona. Algo como “Benito Mussolini / o chefe aviador / ficou sem gasolina / e mijou no motor”.

Donatelo. Era assim que seu pai, Donato, pôs-se a chamá-lo a todo instante.

— Ele colocou seu nome e o nome do seu pai em mim ao me batizar de Gabriel Donato — diria, décadas depois. — Não bastasse, deixou de fora os sobrenomes da minha mãe, tanto o Salles quanto o Botelho. Os homens eram muito machistas naquela época.

Donato orgulhava-se ao ver difundido o apelido que dera ao filho. Donatelo, o velho costumava repetir, não apenas era o diminutivo de Donato em italiano como remetia à memória do célebre escultor renascentista de mesmo nome, com obras espalhadas por Florença e Roma. Gabriel nunca gostou do apelido. Nem de seu nome. Achava Gabriel uma palavra difícil de pronunciar, principalmente por pessoas menos letradas, que frequentemente suprimiam o som de “erre”, transformando-o em “Gabiel”. Não fora à toa que seu avô virou Seu Bié. Além disso, era um nome muito comum em sua família, adotado por nada menos do que cinco primos. Quase todos os tios haviam feito o mesmo que seu pai: batizado um dos filhos em homenagem ao ilustre coronel Gabriel Augusto de Andrade. Já o segundo nome, que poderia virar sua válvula de escape para se diferenciar dos primos e evitar tropeços na pronúncia, teria efeitos ainda mais catastróficos ao ser convertido em Donatelo.

Na adolescência, Donatelo sofreu nas mãos dos colegas de ginásio por conta do apelido. A fim de provocá-lo, alguns o chamavam de “Dona Estela”, derivação zombeteira do apelido original, e outros tascariam logo um “Dolabella Portella”, em referência jocosa ao açúcar de mesmo nome, produzido desde os anos 1930 pela Cia. Agro-Industrial Dolabella Portella, em Bocaiúva, entre Curvelo e Montes Claros (essa usina, de propriedade de Alfredo Dolabella, seria vendida, em 1944, para as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, o maior conglomerado industrial do país na ocasião).

O novo endereço do Marconi ficava num trecho essencialmente rural da Avenida do Contorno, numa área com muitos bosques e poucas casas, a sudoeste do centro. Atrás do prédio, havia um terreno baldio, com um bambuzal, junto ao hospital-sanatório. Quando um professor faltava, os alunos se encontravam ali e punham-se a conversar sob as árvores. Era a hora da chacrinha. Enquanto a maioria dos rapazes de 14 ou 15 anos preferia aproveitar os momentos à toa para falar sobre fitas de cowboy, garotas ou times de futebol, o grupo de Donatelo, formado essencialmente por rapazes um pouco mais velhos, já com 16 ou 17, discutia literatura e filosofia. Entre todos, o que mais chamava sua atenção era João Batista Vasconcelos, que tocava violino, se auto-denominava positivista e, nas aulas de religião, costumava confrontar o professor com argumentos tão bem colocados que, muitas vezes, transformava a aula numa espécie de curso livre de positivismo, engolindo o titular da disciplina.

Gostava de filosofia. Ainda no curso médio, estudei um livro muito bom, do Will Durant, chamado “A história da filosofia”. Era dos meus irmãos. Quando um professor faltava, a gente ficava fazendo chacrinha perto da escola, numa área quase rural da Avenida do Contorno, junto a um bosque, para onde o Colégio Marconi tinha se mudado. Eu tinha mais ou menos 15 anos, e os colegas tinham 17, 18. Falávamos sobre política, filosofia, um pouco de tudo.

Donatelo tomara gosto pelo assunto num livro que ocupava lugar de destaque na biblioteca do pai, entre publicações estrangeiras dedicadas à agropecuária e obras de divulgação dos ideais integralistas: A História da Filosofia, do americano Will Durant. Era um clássico. Lançado originalmente na forma de livretos populares, destinados ao consumo rápido pela classe trabalhadora dos Estados Unidos, cada um dedicado ao pensamento de um filósofo, a obra fez tanto sucesso que uma editora americana resolveu reunir os fascículos num único volume de capa dura e o lançou em 1926. Na década de 1930, a obra foi traduzida para dezenas de idiomas e impressa em diversos países. A edição que chegara à casa dos Andrade já havia sido lida por Maurício e Roberto quando caiu nas mãos de Donatelo. O caçula o estudava com interesse. Aprendia, em suas páginas, a admirar Voltaire — “o filósofo que era negociante e ganhara muito dinheiro” –, o corajoso Friedrich Nietzsche — “que decretou a morte de Deus e enfrentou a força das igrejas” –, Immanuel Kant — “autor de Crítica da Razão Pura” –, e, seu preferido, o francês René Descartes:

— Ele inventou o método científico e foi ameaçado de ir para a fogueira — Donatelo exultava, cúmplice do autor de Discurso sobre o Método.

Não seria exagero afirmar que foi o livro de Will Durant que incutiu em Donatelo o gosto pela leitura. Fascinado por História Geral e História do Brasil, e também pela obra de William Shakespeare, Machado de Assis e Guimarães Rosa, Donatelo manteria para o resto da vida o hábito de ler, diariamente, literatura da melhor espécie, surpreendendo muitos colegas engenheiros ou produtores rurais, menos afeitos à leitura. Anos mais tarde, já pai de família, e casado com alguém que lia ainda mais do que ele, Gabriel buscou transmitir o mesmo hábito aos filhos, indicando títulos e abrindo o caixa para a aquisição de livros.

No colégio, Donatelo continuava sendo o aluno mediano de sempre. Nunca foi o primeiro da classe, mas também nunca ficou de recuperação, nem precisou que a mãe lhe chamasse a atenção para que estudasse direito ou fizesse o dever de casa. Seguia a justa medida, tal qual um discípulo anacrônico de outro filósofo, Aristóteles, para quem a virtude está no meio.

Seu pai, partidário dos mesmos princípios, cobrava-lhe essencialmente isto:

— Não leve bomba. E não se destaque.

Tímido, teimosamente tímido, Donatelo nunca levou bomba. E contava os dias para voltar à fazenda, onde vestiria suas botas e seu chapéu, e passaria os dias na lavoura, equipado com seu cantil e seu canivete, como gostava.

A TURMA DO ENSINO SECUNDÁRIO já era diferente: bem maior e com menos apreço às questões antropológicas e metafísicas. Seu ano reunia mais de 300 alunos, matriculados no curso preparatório da Engenharia da Universidade de Minas Gerais, a UMG. Naquela época, era assim. Terminado o ginásio, por volta dos 15 anos, um jovem de boa família precisava escolher a profissão que seguiria e ingressava num curso anexo de dois anos, dentro da própria estrutura universitária, já voltado para a carreira. O caráter mais técnico e direcionado dessa etapa do ensino, essencialmente introdutório, perduraria até 1942, quando o ministro Gustavo Capanema promoveria uma reforma no sistema educacional, instituindo, entre outras novidades, o curso colegial, com três anos de duração e as três opções curriculares, vigentes até 1967: normal, clássico e científico.

Gabriel tinha 15 anos quando ingressou no curso anexo de engenharia, em frente à estação de trem, no centro de Belo Horizonte. Corria o ano de 1941. Tropas alemãs avançavam sobre a Europa e o norte da África. Em Hollywood, Orson Welles concluía Cidadão Kane e Carmen Miranda filmava Uma noite no Rio. No Brasil, eram criadas a Força Aérea Brasileira (FAB) e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), enquanto Monteiro Lobato mirava o governo de Getúlio Vargas, exigindo maior empenho na prospecção e na nacionalização do petróleo.

Estudei engenharia porque o papai mandou. Ele dizia que eu tinha de fazer faculdade, ter um diploma. Optei por engenharia por influência do meu irmão Roberto. Mas sempre quis mexer com fazenda. Papai queria que eu o substituísse na administração da fazenda depois de formado, de modo que a ideia não era seguir carreira na área. Mas, convivendo com os colegas de faculdade, vi que minha vocação era mais para indústria de construção do que para fazenda. Papai ficou um pouco decepcionado, mas depois gostou também.

Se dependesse apenas dele, Gabriel nem iria às aulas. Seu ídolo era tio Bolivar, e o sonho de sua vida era lidar com a fazenda, com o gado. O pai exigia que ele estudasse. Era preciso ter um diploma, ele dizia, mesmo querendo ter o filho de volta a Arcos, para cuidar da fazenda e da fábrica de laticínios junto com ele e os irmãos. O script já estava delineado. E, de acordo com o roteiro, um diploma parecia não fazer falta alguma. Mas, se tinha de escolher uma profissão, a influência do irmão Roberto foi decisiva.

Engenheiro formado dez anos antes pela mesma faculdade em que Gabriel se matriculara, Roberto voltara do Rio de Janeiro em 1939 e, desde então, conseguia conciliar a profissão com a vida na roça. Naquele ano, fora viver em Arcos para tocar a SaMiGue. Roberto administrava a produção, cuidava da planta, supervisionava as operações da empresa e o comércio dos produtos, inclusive no Rio de Janeiro. E, o mais importante, aos olhos de Gabriel: morava na fazenda.

O gosto pela filosofia continuou naqueles anos, instigado por colegas como Geraldo Pereira, que aprendeu a recitar, de memória e em latim, todo o Discurso sobre o Método, de Descartes. Enquanto os temas filosóficos o envolviam, Gabriel mantinha-se distante dos assuntos políticos. O Estado Novo adentrava sua última fase, o movimento estudantil ia às ruas contra a ditadura de Vargas, e Gabriel preferia passar incólume pelas manifestações. Nunca simpatizou com o regime ditatorial, mas seu caráter essencialmente pragmático o fazia arredio à oposição — e aos riscos de, com a militância, perder o foco nos estudos.

Muitos da sua geração o fariam. Marco Antônio Tavares Coelho, amigo do ginásio que ingressara em Direito no mesmo ano em que Gabriel escolhera a Engenharia, virou dirigente do então clandestino Partido Comunista do Brasil (PCB), que mudaria de nome para Partido Comunista Brasileiro em 1960. Outros perderiam um ano de estudo, ou mais, perseguidos pelo regime, também suspeitos de atividades subversivas. Anos mais tarde, Gabriel sempre falava de Marco Antônio à mesa, quando o tema da conversa familiar tratasse de comunismo — ou da repressão.

Embora o diretório acadêmico da Engenharia fosse predominantemente conservador e legalista, surgiam focos universitários de conspiração por todos os lados, tanto de esquerda quanto de direita, sempre pedindo o fim da ditadura. Hélio Pellegrino, na faculdade de Medicina, e Otto Lara Rezende, na faculdade de Direito, foram dois dos intelectuais mineiros que, jovenzinhos, ergueram a bandeira da democracia. Juntos, os dois fundariam, em 1944, o libelo Liberdade, de oposição ao Estado Novo, e, no ano seguinte, com a queda de Getúlio, e a volta das eleições livres e dos partidos, formariam os primeiros quadros da oposicionista e conservadora União Democrática Nacional (UDN).

Getúlio foi deposto e o Estado Novo foi substituído por uma república presidencialista, fundada em uma nova Constituição, aprovada em 1946. Esse novo regime duraria até o golpe militar de 1964. A UDN era a principal adversária do bloco getulista, então formado pela aliança entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Vargas, e o também liberal e conservador Partido Social Democrático (PSD), todos fundados em 1945. Desde o início, o PSD atraiu getulistas como Benedito Valadares, que fora interventor em Minas (na época, “presidente” do Estado) entre 1933 e 1945. A aliança PTB-PSD emplacaria os três presidentes da República eleitos até 1960: Eurico Gaspar Dutra (PSD), em 1945; o próprio Getúlio (PTB), em 1950, e Juscelino Kubitschek (PSD), em 1955. Sua única derrota foi impingida por Jânio Quadros, em 1960, eleito pelo pequeno Partido Trabalhista Nacional (PTN), com apoio da UDN. O cargo de vice, no entanto, permaneceria com João Goulart, presidente nacional do PTB, numa época em que o voto para vice era dissociado do voto para presidente.

Adolescente nos últimos anos de Estado Novo, Gabriel não se envolvia com política. Preferia que o país não vivesse sob uma ditadura, mas não militava no movimento estudantil nem participava de manifestações sociais. Tampouco arquitetava estratégias de tomar o poder. Difícil imaginá-lo berrando palavras de ordem, por exemplo. Uma única vez, em 1942, participou de um quebra-quebra numa loja pertencente a alemães, quando o Brasil declarou guerra contra o Eixo, mas logo se arrependeu.

Na ocasião, Gabriel voltava da faculdade para casa quando viu um grupo de amigos saqueando a loja, aos berros de “viva Getúlio!”. Entrou, atendendo ao chamado dos colegas, e acabou juntando sua voz ao coro. Por sorte, não houve violência. Os donos haviam abandonado o local, preferindo cobrar indenização do governo a enfrentar arruaceiros.

Em março daquele ano, o governo havia decretado o confisco de bens dos imigrantes italianos e alemães, o que servia de justificativa para os saques. Ao chegar em casa, levou uma bronca de Roberto, inconformado com a atitude do caçula.

— “Que vergonha” — Roberto o repreendeu. — “Logo você, sempre tão disciplinado, certinho… A psicologia das massas é assim mesmo, nivela o indivíduo ao mínimo denominador comum. Na multidão, são os piores elementos que dão o tom.”

Gabriel nunca defendera Getúlio, muito menos o Estado Novo, nem nutria desavenças pessoais com alemães ou italianos. Sem a influência dos colegas, jamais teria entrado naquela loja ou pego aqueles instrumentos de dentista. Os saques lhe pareciam anarquistas demais, e Gabriel não tinha nada de anarquista. Ele torcia, isso sim, para que o país se tornasse uma democracia — mesmo sem entender direito o que era uma democracia. Getúlio Vargas assumira o poder quando ele tinha apenas 4 anos e já estava no cargo havia mais de uma década. Aos 11 anos, vira o presidente instaurar o Estado Novo, perpetuando-se no posto.

Gabriel jamais tivera notícia de uma eleição para presidente, nem sabia o que significava alternância de poder. Democracia, para ele, era o que havia nos Estados Unidos, e daquilo ele gostava, até por conta da americanofilia do pai, que colecionava revistas americanas, como a Life e a National Geographic, e guardava sobre a mesa a foto de uma fazenda de Ohio, a Malabar Farm, obra de um escritor e roteirista famoso, Louis Bromfield. Gabriel queria, sim, uma democracia como aquela, e não a democracia da República Velha e das oligarquias, sobre as quais aprendia nos livros de história. No Brasil, nunca houvera democracia real, ele pensava, herdando, sem perceber, um pouco da descrença e do ceticismo do pai. Uma colônia que virou império de araque, onde tudo era atrasado, e que chegara à independência por decisão do filho do rei, não podia ser considerada um país sério. Além disso, havia uma certa divisão de áreas na família: política era com Maurício.

Melhor faria se estudasse com afinco. Cálculo diferencial, resistência dos materiais, mecânica dos fluidos, essas coisas. Engenharia era isso, afinal de contas. E ele tinha uma empresa para inventar.

ESTRADA DE RODAGEM era tema pouco recorrente nas aulas de engenharia. Mais importante, na concepção dos professores e coordenadores de ensino, era ensinar a construir ferrovia. Qual a curvatura máxima para se mudar a direção dos trilhos sem provocar descarrilamento? Quantos graus de inclinação pode haver numa ladeira?

Aluno do CPOR em 1945, auge da Segunda Guerra Mundial, Gabriel (com seu inseparável canivete) faz sentinela, dorme ao sereno e forma-se terceiro-sargento. Sai ainda mais motivado a ser construtor.

Manuel Pires e Albuquerque, catedrático da cadeira de Estradas no curso de Engenharia da UMG, era já um senhor de 67 anos quando Gabriel, aluno do quarto ano, começou a se imaginar abrindo estradas. Era um professor respeitado, nascido na Bahia e graduado no Rio de Janeiro, que ingressara aos 23 anos como engenheiro da Estrada de Ferro Central do Brasil e, desde 1922, lecionava na instituição. Lá se iam 25 anos de ensino universitário. Seu métier sempre fora as estradas de ferro; e ele, acumulando entre 1946 e 1949 o cargo de reitor, nem se preocupava em disfarçar. Nas poucas ocasiões em que se dispunha a ensinar sobre rodovias, discorria sobre a teoria da construção de estradas com o uso de tração animal, carroças puxadas a burro e outras traquitanas do tempo do onça (ou do tempo do zagaia, como se dizia).

— Muito ultrapassado — Gabriel criticava, incomodado com tanto atraso.

Alheio às antiguidades praticadas em sala de aula, o progresso batia à porta da capital mineira. Naquele mesmo ano, houve o início da construção da Cidade Universitária, na Pampulha, assunto recorrente nos corredores da faculdade, do qual os partidários do governador Milton Campos muito se orgulhavam. Gabriel apenas torcia pelo atraso das obras e pelo adiamento da inauguração, de modo que ele não precisasse trocar a bem localizada Escola de Engenharia da Praça da Estação por aquele fim de mundo, aonde seria obrigado a chegar de ônibus, e não mais a pé, como costumava fazer, quase sempre acompanhado de algum amigo (a Engenharia só se mudaria para o campus nos anos 70). Curiosamente, a rua onde está instalado o prédio da Escola no campus da Pampulha receberia, muitos anos depois, o nome de “Reitor Pires e Albuquerque”.

Assisti a um filme americano, no qual eles guerreavam com o Japão. Eles tomavam ilhas no Pacífico, uma a uma, e era preciso fazer campo de pouso na ilha para não depender só de navio. Até porque o submarino japonês queimava os navios americanos e os afundava. Então, eles queriam fazer campos de pouso para ir do Havaí para as outras ilhas. Tudo isso no filme. Mandaram umas empresas de terraplenagem fazer os campos, umas construtoras americanas. Os japoneses estavam lá escondidos e queimaram os engenheiros todos. Mataram todo mundo. O filme glorificava os engenheiros e os soldados da Marinha — os Marines — , que faziam serviços de engenharia. Então, organizaram um grupo de construção com os marines, os marinheiros de guerra, e deu certo. Eles foram para as ilhas, enfrentaram os japoneses, fizeram os campos e puderam pousar com a fortaleza voadora deles. Eu achei esse filme muito interessante. Tratava das empresas de terraplenagem. Mostrava os campos sendo construídos durante a Segunda Guerra.

Simultaneamente, tratores circulavam pelo pátio do 10º Regimento de Infantaria, na Avenida do Contorno, onde Gabriel batia cartão todos os dias das 7h às 12h, antes de ir para a faculdade. O rapaz era aluno do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) e odiava aquilo. A entrada do Brasil na guerra só fizera piorar a situação, substituindo o tiro-de-guerra light de outrora pelo alistamento compulsório dos jovens de 18 anos. As atividades do CPOR incluíam acampar em barraca de campanha, dormir ao sereno, trabalhar como sentinela no quartel (varando a noite em turnos de quatro horas) e outros treinamentos específicos, comandados pelo sargento Camanducaia, um sujeito bronco, linha dura e truculento. Curiosamente, as obras de ampliação do quartel faziam Gabriel recobrar o ânimo. Pouco afeito ao treinamento, ele se punha a admirar por longos minutos o entra-e-sai de escavadeiras e niveladoras no canteiro. No final de 1947, o rapaz deixaria o serviço militar com a patente de tenente da reserva e inspiração redobrada para virar construtor.

Para entender do riscado, Gabriel teve de se virar por conta própria. Aprendeu a fazer fundação durante um curto estágio que fez construindo casas populares numa empresa de Belo Horizonte que tinha seu irmão Maurício como sócio. Finalmente, inclinado a mexer com estradas, leu o que encontrou sobre as técnicas mais modernas de construção de rodovias, a fim de, autodidata, conhecer as máquinas e suas possibilidades.

Um filme de guerra, lançado em 1944 e com John Wayne no papel principal, foi a gota d’água.

Filme com John Wayne no papel de um empreiteiro contratado para construir campos de pouso, estradas e alojamentos em ilhas do Pacífico, durante a guerra, inspira Gabriel a entrar no ramo.

Na ficção, Wayne é Wedge Donovan, empreiteiro contratado para construir campos de pouso em ilhas do Pacífico Sul, durante a Segunda Guerra Mundial. A trama se passa nos primeiros meses de 1942, após o ataque japonês à base de Pearl Harbor, quando montar refúgios em ilhas estratégicas se torna uma tarefa urgente e imprescindível para que os caças da força aérea dos Estados Unidos pudessem se abastecer de munição e combustível entre um combate e outro. Donovan desembarca com jipes, tratores, guindastes e uma centena de operários, incumbidos de improvisar alojamentos, derrubar árvores, nivelar a terra, explorar uma pedreira e inaugurar a pista em menos de 30 dias. Embora estivessem em área de combate, esses trabalhadores eram civis e, pela lei americana, não poderiam portar armas — o que provoca medo, revolta, e a morte de muitos homens. A escassez de recursos, a necessidade de concluir os trabalhos em tempo recorde e o risco permanente de ter o canteiro de obras alvejado pelos japoneses fazem aumentar o heroísmo dos personagens e dão fôlego à história.

O filme é inspirado em fatos reais. Após a perda dos primeiros operários, ficou evidente a inviabilidade de usar mão de obra civil e desarmada nessas construções. Ainda no primeiro semestre de 1942, a marinha americana passa a oferecer treinamento militar a engenheiros e operários a fim de criar batalhões de construtores, os Seabees, expressão que significa “abelhas do mar” e cuja pronúncia é idêntica à das iniciais C e B, de “construction batallions”. Seu lema é inspirador: “nós construímos; nós lutamos”. Mais inspirador ainda na sua forma mais extensa: “Nós construímos para os combatentes; nós combatemos pelo que construímos”.

Intitulado The Fighting Seabees, o filme de Dennis O’Keefe foi lançado no Brasil como Romance dos 7 Mares, numa tradução que parece deixar os desafios da engenharia em segundo plano, privilegiando a paixão clandestina entre o personagem de John Wayne e a bela jornalista interpretada por Susan Hayward. A fita deixou Gabriel boquiaberto. Em razão da bravura dos engenheiros e trabalhadores, que fique claro, e não pelo enredo amoroso. Muito menos por conta do olhar sedutor da estonteante Susan Hayward.

Desde os 15 anos, Gabriel só tinha olhos para Vera.

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Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi