4 | Vera, Verinha
HAVIA UM BOM NÚMERO DE CADEIRAS VAZIAS quando Donatelo entregou o bilhete e adentrou a sala de projeção. Em poucos minutos, não sobraria nenhuma. Era sempre assim nas tardes de domingo, quando a cidade se deslocava em peso para assistir às matinês do Cine Brasil.
Em 1941, Belo Horizonte já tinha diversas salas de cinema, como o Cine Avenida e o Cine Glória, ambos na Avenida Afonso Pena, ou o Cine Odeon, na rua da Bahia. Mas nenhum era tão moderno e bem localizado quanto o Cine Brasil, na esquina da Avenida Amazonas com a Afonso Pena, de frente para a Praça Sete de Setembro, marco-zero da capital. Construído sobre uma planta triangular e com a fachada principal em curva, o prédio do Cine Brasil seguia o estilo art déco, prevalente na arquitetura praticada nas primeiras décadas do século XX, com vitrais quadriculados no lobby e pinturas geométricas a cobrir as paredes da sala de exibição. O Cine Brasil era, também, o maior dos cinemas de Belo Horizonte, com capacidade para 1,6 mil pessoas, somadas as poltronas da plateia central e as do mezanino. Mesmo assim, lotava com facilidade.
A fila começava por volta do meio-dia e logo dobrava a esquina. As comédias e os faroestes preferidos da moçada começavam às 14 horas. A bem da verdade, quase uma hora mais tarde, uma vez que a atração principal era sempre precedida pelo Cinejornal, com notícias da guerra na Europa e as últimas proezas do Estado Novo, e, no mínimo, um episódio de algum seriado americano, como O Sombra e Capitão Marvel. Mesmo que o filme principal só começasse depois das 15 horas, era preciso chegar cedo — e se antecipar à abertura da bilheteria — para garantir os melhores assentos. Em geral, a moçada não se importava de dispensar a sobremesa e sair correndo de casa, após engolir o almoço às pressas. Até porque a diversão começava do lado de fora da sala, muito antes do início do filme, logo ali, na praça em frente.
À espera do início da sessão, garotas e rapazes rodeavam o “pirulito”, como fora apelidado, desde a inauguração, o obelisco colocado no centro da Praça Sete. Trocavam gibis e fofocas, compravam balas e confeitos, exibiam álbuns repletos de estampas Eucalol — cartões numerados e colecionáveis impressos com uma ilustração e um breve verbete de conteúdo enciclopédico que acompanhavam os sabonetes de eucalipto de mesmo nome — ou figurinhas das Balas Futebol, com os jogadores dos principais times do país. Desde 1938, quem completasse o álbum e o enviasse à fábrica de balas A Americana ganharia brindes — e bem poucos tinham êxito, é claro.
Naquela tarde de domingo, ainda havia muitas poltronas vazias no Cine Brasil quando Donatelo entrou, mas apenas um lugar lhe interessava. E ele estava com sorte: Vera havia deixado vago um dos assentos a seu lado. O amigo Geraldo Dias deu um empurrãozinho. Aproximou-se da menina, como um porta-voz bem intencionado:
— O Donatelo quer saber se pode se sentar aqui.
Vera buscou Donatelo, virando-se para a direção em que Geraldo apontava. Ela já o conhecia, embora os dois nunca tivessem trocado mais do que cinco ou seis palavras. Eram quase vizinhos, com apenas uma casa separando a dele e a dela.
Vera e Donatelo tinham muitos amigos em comum e viviam se cruzando pela rua, como era natural na rotina pacata de Belo Horizonte. Andavam de bicicleta, brincavam de bola (ele) ou passa-anel (ela), faziam chacrinha na calçada, antes do banho ou depois do jantar.
A turma era grande. Tinha o Guguto, com seu carrinho motorizado, o Gororoba, que “brincava” de ler, o Pimpolho, que morava na única casa encravada entre a de Vera e a de Donatelo, e o próprio Geraldo, que agora fazia as vezes de alcoviteiro.
Um dos 14 filhos do comerciante Juventino Dias, que anos depois compraria a fábrica de cimento Cauê, Geraldo despertava a inveja dos vizinhos por ter uma piscina em casa, luxo que ninguém mais tinha naquele bairro. A casa ficava na mesma rua na qual os Andrade viviam, e Donatelo costumava frequentá-la com a cunhada Hilda, mulher de seu irmão Maurício, amiga de uma das filhas mais velhas de Juventino. Com isso, acabou se aproximando de Geraldo. Perspicaz, o amigo notara o flerte entre os dois e se adiantou em agilizar as coisas.
Vera já havia reparado em Donatelo. Reparado de um jeito especial, como só os enamorados o fazem. Reparado de um jeito que, em geral, provoca taquicardia e suor nas mãos. Quando é assim, e os olhares se cruzam, e o rosto enrubesce, e não dá para fugir da obrigação de cumprimentar, o mais comum é encolher a barriga, endireitar a coluna, abaixar levemente o queixo e mover os lábios trêmulos, num timbre ligeiramente mais grave e aveludado do que o habitual. O pensamento? Bem, o pensamento alça voo: perde-se num misto de fruição e esperança.
Na penumbra da sala, envolvida num élan de sonho e magia, Vera observava Donatelo, que fingia olhar para outro lado, ainda plantado no corredor.
— E então? — Geraldo insistiu.
— Então, o quê? — ela fazia-se de sonsa.
— O Donatelo? Ele pode se sentar aqui?
— A cadeira está livre, não está?
Vera era assim. Sempre foi. Respondona e firme, do tipo de mulher que não dá o braço a torcer. Dura na queda. Por dentro, comemorava.
Desde que se mudara para a Rua Espírito Santo, menos de um ano antes, a menina esperava uma oportunidade para se aproximar daquele rapaz magro e discreto, um ano mais velho do que ela, que circulava de bicicleta pelo bairro. Até então, ela sabia muito pouco sobre ele. Sabia que ele gostava de ler, que passava as férias na fazenda da família, e que tinha dois irmãos bem mais velhos, já formados. Sabia, também, que ele era aluno do colégio Marconi, preferido pelos imigrantes italianos. Fazia sentido, afinal, que um garoto chamado Donatelo estudasse ali. Mais do que isso, Vera já não sabia. Nem que o verdadeiro nome de Donatelo era Gabriel, coisa que só viria a descobrir dali a alguns meses.
Agora, na iminência do primeiro contato mais próximo, a garota não se continha. E se ele a convidasse para tomar sorvete depois da sessão? E se ele confessasse seu amor urgente e incondicional, o fascínio que sentia toda vez que a via sair de casa com as irmãs, ou nas missas-dançantes da igreja de Lourdes — assim chamadas porque, aos sábados, apenas terminava a celebração das 10h, os jovens seguiam em bando para a hora-dançante do Minas Tênis Clube, onde rodopiavam das 11h ao meio-dia — ao som de Frank Sinatra, Bing Crosby e Glenn Miller?
Donatelo reuniu suas forças e conseguiu dizer oi, acenando para a menina mais linda do mundo a caminho da poltrona. Em instantes, venceu os obstáculos que o separavam da cobiçada cadeira e sentou onde tanto queria. E foi tudo. Até terminar o filme, não conseguiu dizer — nem fazer — praticamente nada. Nem pegar na mão, um gesto impensável num primeiro encontro no início da década de 1940. Quem sabe dali a um mês…
Protegidos pelo escurinho do cinema, os dois passaram mais de duas horas separados por um braço de poltrona e um silêncio constrangedor, sem conseguir ultrapassá-los — nem o braço nem o silêncio.
VERA PULARA DE ALEGRIA quando seu pai comunicara à família a data da mudança para Belo Horizonte, cinco anos antes. A ideia de viver na capital a fazia exultar. A partir daquele momento, a menina de 9 anos moraria no centro do agito, pertinho de tudo: cinemas, salões de baile, bancas de revistas, clubes esportivos e outros sinais de progresso. Muito diferente da atrasada Carmo do Paranaíba, cidadezinha a 346 quilômetros de Belo Horizonte, na direção de Goiás, onde Vera nascera, em 24 de fevereiro de 1927. Principalmente, a mudança para a capital a livraria do colégio interno, do qual as cinco irmãs mais velhas não haviam conseguido escapar.
Ela era a sétima numa escadinha de dez irmãos. Maria, 18 anos mais velha, se casara quando Vera tinha apenas 4. Dulce faria o mesmo pouco tempo depois. Irene e Elza, por sua vez, eram internas em uma escola de freiras de Belo Horizonte quando seu pai, João Furtado, decidiu ir a seu encontro com a mulher, Marica, e o resto dos filhos. Vendeu o que tinha. Casa, móveis e, é claro, o “negócio”, o armazém que ocupava a frente da residência da família, com porta aberta para a rua, e oferecia de tudo, de candeeiro a botina, de enlatados a tecidos.
João costumava ficar na venda até tarde. À noite, os amigos se juntavam ali, para jogar conversa fora, contar causos de pescarias, reclamar dos políticos. A pequena Vera gostava de escutar. Vinha para a loja após o jantar e se acomodava sobre uma pilha de tecidos, atrás do balcão. Invariavelmente, pegava no sono, ouvindo as conversas, e o pai a carregava até a cama. Daquele tempo, Vera guardaria a lembrança de uma mãe atarefada, com dez filhos para criar e a ajuda de apenas uma empregada, e o exemplo de um pai amoroso, íntegro, incorruptível, sistemático nos negócios, que se orgulhava de jamais ter contraído empréstimo nem deixado de honrar um compromisso.
Com os filhos crescidos, estudando em Belo Horizonte ou prestes a se matricular no colégio, João Furtado decidiu migrar em 1936. Dois irmãos dele se entusiasmaram com a ideia e desembarcaram na capital no mesmo comboio, com suas respectivas famílias. Fizeram uma sociedade — a Furtado, Oliveira e Cia. — e abriram, juntos, duas lojas por atacado, uma de cereais e outra de tecidos.
Seu João, Dona Marica e os oito filhos solteiros moraram seis meses em uma casa alugada no bairro Santa Efigênia e, em seguida, mudaram-se para a Rua dos Caetés, a 300 metros da Praça Sete, onde permaneceram até 1940. Só então, seguiram para a Rua Espírito Santo.
A casa de Pimpolho era a única a separar as de Vera e Donatelo. Mesmo assim, só na parte da frente. Nos fundos, o terreno de Pimpolho, menor do que os outros dois, era contornado pelo lote de Donato, de modo que as duas famílias, a de Vera e a de Donatelo, tornavam-se vizinhas de muro no quintal. Das mangueiras do jardim de Donatelo caía manga ubá no chão de Vera.
Além de ocupar um lote menos profundo, a casa de Pimpolho tinha apenas um pavimento, enquanto as outras duas eram assobradadas, permitindo aos Furtado observar a casa dos Andrade e vice-versa. Da janela de seu quarto, por exemplo, Elza, irmã de Vera (oito anos mais velha), podia reparar a forma com que Roberto, irmão de Donatelo (12 anos mais velho), se arrumava: penteava o cabelo, colocava o chapéu e, só depois, ia fazer a barba. As más línguas comentavam que ele, noivo de Sônia aos 27 anos, dera de paquerar a vizinha Elza, então com 22 anos. Ela se envaidecia com os galanteios do varão, mas não se aventurava a atrapalhar o noivado de ninguém. Só um casal surgiu daquela vzinhança: Vera e Gabriel.
O NAMORO COMEÇOU DEVAGAR, contido, meio sem jeito: labareda em lenha úmida, como exigiam os códigos da época. Era final de 1941, e nem pegar na mão era permitido. Muito menos beijar. Por muito tempo, os dois fizeram o possível para que ninguém desconfiasse. Qualquer manifestação de carinho permaneceria por algum tempo como algo platônico, idealizado, inalcançável. A não ser nas matinês do Cine Brasil, quando as mãos insistiam em deslizar do braço da poltrona e se entrelaçar sem que ninguém visse. De resto, os dois se encontravam nas brincadeiras de rua e apenas conversavam.
Vera falava mais. Donatelo preferia ouvir. Mãos atadas pelas circunstâncias, os olhos diziam mais do que as próprias bocas. E era por meio dos olhares que se trocavam afetos.
Os dois também se encontravam em festas de aniversário, sempre que um amigo em comum fazia anos. Foi numa dessas ocasiões que os dois dançaram juntos pela primeira vez. Desajeitado, e ansioso por ter a amada nos braços, Donatelo distribuiu pisadas nos pés de Vera. Mas ela desculpava cada tropeço. Se algum hematoma restou das primeiras contradanças, foram logo anestesiados pelo amor recíproco.
Quando Vera completou 15 anos, em fevereiro de 1942, a festa foi na casa dos Furtado. E Donatelo, discreto e aprumado, se comportou de maneira exemplar. Ele acabara de fazer 16, em janeiro, e aproveitou a ocasião para explicitar seu interesse. Como presente, deu a Vera uma medalhinha de Santo Antônio, o santo casamenteiro — uma maneira, talvez, de confidenciar suas nobres intenções e, ao mesmo tempo, evidenciar seu respeito aos princípios morais e religiosos, fortemente enraizados na tradicional família mineira. Sussurrou-lhe o pedido de namoro ali mesmo, às escondidas; e Vera, toda prosa, aceitou. A menina usaria aquela medalhinha para o resto da vida. E Gabriel a adotaria ao ficar viúvo, em 2011, vestindo-a no próprio pescoço.
Namorar, publicamente, a filha de João Furtado, só lhe seria consentido após o aniversário de 16 anos da moça. Donatelo, um gentleman, não se incomodou em esperar mais um ano. Mesmo assim, oficializado o romance, os encontros teriam de acontecer invariavelmente na companhia de alguém. E namoro sem beijos, porque os beijos só eram liberados após o noivado. É verdade que, já no ano seguinte, um destemido Donatelo, então com 17, ousou roubar-lhe um beijo na Praça da Liberdade.
Era ali, entre palmeiras imperiais, que acontecia o footing. Noite de sábado, os rapazes se enfileiravam junto às árvores, alguns apoiados nos troncos, outros equilibrando suas bicicletas, enquanto as meninas, em duplas ou trios, desfilavam de uma ponta a outra, trocando confidências e impressões sobre os rapazes. Vera e Donatelo também frequentavam o footing, quase sempre acompanhados por alguma irmã de Vera. Numa ocasião, em 1943, os dois se viram repentinamente sozinhos. Buscaram um lugar mais vazio para andar de mãos dadas com mais liberdade. Ninguém por perto, interromperam o passeio por um instante e pararam, um diante do outro. Naquele momento, as falas pareciam mais ternas, os dedos ainda mais entrelaçados, até que Donatelo desceu o meio-fio para que seus olhos ficassem em linha com os de Vera e, audaz, tascou-lhe um beijo na boca.
As pernas da menina tremiam sem intervalo. Donatelo queria continuar beijando, mas Vera, surpresa e emocionada, teve forças para virar o rosto e interromper o agarramento. Havia policiais na praça, orientados a dispersar sem-vergonhices, e alguma irmã ou outro conhecido poderia flagrá-los a qualquer momento. A prudência aconselhava Vera a evitar o risco de ficar falada. Depois daquele dia, ela nunca mais deixou que a cena se repetisse, obrigando o namorado a enfrentar mais três anos de abstinência, até o noivado.
Os dois costumavam se telefonar quase toda tarde. Às vezes, ficavam longos minutos conversando, até que alguma irmã mais velha de Vera, normalmente Elza, decidisse implicar:
— Larga esse telefone e vai conversar pelo muro! — dizia, lembrando-os de que, afinal de contas, eram quase vizinhos.
Elza e Dolva também se revezavam para montar vigília junto à janela e controlar os encontros furtivos de Donatelo e Vera. Se calhasse de os dois ficarem a sós junto ao portão, rapidamente ouvia-se um grito:
— Veeeeera, vem jantar! A mamãe está chamando.
Tudo mentira, mas uma mentira útil, necessária. Nas idas ao cinema, Edda, a irmã mais nova, era quase sempre escalada para lhes fazer companhia. O jeito foi providenciar um arsenal de balas e, com elas, subornar a menina. Ao encontrar Vera na rua, Donatelo tirava um caramelo do bolso em troca de cinco minutinhos de privacidade, antes que a futura cunhada os denunciasse. Um pacote inteiro de drops convencia a vigilante a não contar a ninguém que os dois haviam se dado as mãos durante a exibição de um filme, por exemplo.
Uma vez, Donatelo se queixou: — Namorar você é mais difícil do que caçar leão!
Embora morassem na mesma rua, as famílias não se conheciam. Foi só na véspera do noivado, e depois de três anos de namoro — e muitas balas distribuídas entre as irmãs de Vera — que Dona Laura, mãe de Donatelo, decidiu pôr um vestido, arrumar o cabelo e bater à porta dos Furtado. O relacionamento dos dois começava a ficar sério demais. Vera já havia terminado o curso normal e, aos poucos, começava a se dedicar ao enxoval. E Dona Laura, como mãe de Donatelo, sentiu a obrigação de ir conhecer a família da futura nora.
Apareceu num começo de noite, sem avisar, quando João e Marica já moravam na Rua Aimorés, em Lourdes. A mãe de Vera tinha acabado de sair do banho e ficou sem graça ao abrir a porta, ainda com uma toalha enrolada na cabeça. Mesmo assim, desempenhou o papel de anfitriã, como manda o figurino.
— Desculpa aparecer sem avisar. Meu nome é Laura, Laura Andrade, sou a mãe do Donatelo.
— Ah, sim. Vamos entrar.
Papo vai, papo vem, Laura voltou para casa sabendo onde morava e quem era a família da moça com quem seu filho falava em noivar. Não resistiu à tentação de compará-la com as outras noras, Hilda e Sônia, ambas nascidas em berço de ouro, em famílias tradicionais. Hilda, mulher de Maurício, era filha do médico Eduardo Borges da Costa, fundador da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Sônia, mulher de Roberto, era filha do advogado Jair Lins, um dos mais respeitados de Belo Horizonte. Vera, conforme pôde atestar, vinha de família sem tradição e com menos recursos.
— Espero que, casando com moça de família simples, Gabriel tenha mais sucesso do que os irmãos, que casaram com moças de famílias tradicionais — Laura chegaria a dizer algum tempo depois para a própria Vera, às vésperas do casamento.
O noivado aconteceu em 1947, penúltimo ano de faculdade de Donatelo, pouco depois de ele completar 21 anos e conquistar a maioridade legal. Com sociedade estabelecida na firma de construção e scraper devidamente comprado, embora ainda não houvessem registrado a empresa nem assinado nenhum contrato, o rapaz foi à casa dos Furtado oficializar o pedido.
— Seus pais estão de acordo? — foi a reação de João.
— Estão, sim.
— Então tudo bem.
Consumado o enlace, começou a fase de namorar no sofá, ainda sob marcação cerrada dos pais e das irmãs de Vera, conforme a ocasião. Agora, quando os dois ficavam a sós com Edda, a estratégia era pedir um copo d’água e aproveitar enquanto a menina ia até a cozinha para trocar um beijinho ligeiro, de leve. Aos poucos, foram autorizados a passear sozinhos, a pé ou de carro, e puderam finalmente ficar a sós. Namorar já não era tão difícil quanto caçar leão. Valera a pena esperar. E resistir por tanto tempo ao amor platônico, imenso, sublimado, tantas vezes afirmado e reafirmado em mais de uma centena de cartas urgentes e inflamáveis, como toda carta de amor.
“NÃO PENSE QUE NÃO ESCREVI antes porque não estava com saudade, pois isto não falta. Não escrevi porque a primeira carta, assim, não dá muito assunto.” Era 2 de janeiro de 1943 quando Donatelo rabiscou essas linhas. Passara o fim de ano na fazenda, com os pais e os irmãos. O coração, esse ficara em Belo Horizonte, no número 1.471 da Rua Espírito Santo: a casa de Vera.
Foi para lá que ele enviou o primeiro envelope, vencendo a timidez e o habitual bloqueio diante da folha em branco. Pouco à vontade na função, recém-incorporada, de escrever para a namorada, Donatelo daria continuidade a suas aflições na remessa seguinte. “Fiquei sem saber se punha ‘Vera querida’ ou simplesmente ‘Vera’; eu não sei como você prefere”, escreveu, da fazenda São Miguel, no dia 10, pouco antes de reclamar mais uma vez da falta de assunto, campear obviedades (“o tempo aqui está ótimo”) e, finalmente, garimpar as mais doces palavras para se despedir: “de quem, desde a primeira vez em que te viu, muito bem te quer”.
Vera retribuía com idêntica paixão, embora mais à vontade no manuseio da caneta e na arquitetura das frases: “Espero que você demore mesmo só os 15 dias (previstos), pois não estou gostando nada daqui assim”. Todas as férias acontecia o mesmo. A jovem não gostava que o namorado se ausentasse por muito tempo, deixando-a “viúva” na capital. E ele odiava Belo Horizonte quando ela viajava para visitar os tios no Carmo do Parnaíba. De vez em quando, inseriam no envelope uma flor, uma mecha de cabelo, uma fotografia “para matar saudade”. E provocavam os ciúmes um do outro, ao mesmo tempo em que se esforçavam para jurar fidelidade eterna. Numa carta de 1944, Vera conta dos galanteios recebidos de um tal Edinho, que lhe teria presenteado com uma caixa de bombons e que a chamava de “minha noiva” enquanto Donatelo estava na fazenda. Ele, por sua vez, revelava estar sendo cortejado, quase perseguido, por uma menina em Arcos, de quem nada queria. Vera contava que havia ido ao Automóvel Clube com uma irmã, mas que não achara a menor graça no baile. Para Donatelo, nenhum lugar parecia bom o bastante sem a companhia de Vera.
Envergonhado em razão da simplicidade dos parágrafos que remetia à namorada, Donatelo recorreu a Victor Hugo para tentar incrementar sua escrita. No final dos anos 1930, fora publicado no Brasil um volume que reunia a correspondência enviada entre 1820 e 1822 pelo escritor francês à sua futura mulher, Adèle Foucher. Intitulado Cartas de amor de Victor Hugo, o livro traz as reproduções traduzidas de mais de uma centena de cartas assinadas pelo jovem autor, desde o início do namoro, aos 18 anos, até o casamento, aos 21.
Nas linhas — e entrelinhas –, o que se vê é o transbordamento de uma mente inquieta, insegura, desesperadamente apaixonada, no estilo visceral do maior nome do romantismo da França, o autor de Os Miseráveis. “Há uma palavra, Adèle, que parecemos, até hoje, ter medo de pronunciar. É a palavra amor”, diz uma delas. Com o fatalismo habitual dos poetas românticos, Victor Hugo cobra juras de amor e flerta com temas como alma, destino, resignação e morte. “O meu destino é bem simples”, diz. “Sou uma coisa que te pertence.”
Influenciado pela leitura, Donatelo passou a escrever a Vera com mais sensibilidade e menos economia de palavras à maneira que os anos avançavam. Também permitiu que a paixão aflorasse, de tempos em tempos, com vigor e urgência, principalmente quando Verinha saía de férias, em viagens ao interior que frequentemente superavam 30 dias. Em 1947, por exemplo, ela passou o mês de fevereiro na cidade paulista de Cruzeiro. Foi o bastante para que 16 cartas fossem trocadas. “Nós precisamos é de nos casar o mais cedo possível”, diz o noivo em uma delas.
Tamanha ansiedade fez nascer entre os dois uma curiosa fixação por enumerar os dias que lhes faltavam até o reencontro. “De hoje a 17 dias devemos nos encontrar novamente, e isto é que acho ótimo”, Verinha postou no dia 11. “Estou torcendo para que esse resto de tempo passe o mais depressa possível”. Donatelo respondia igualmente melífluo: “Agora faltam apenas 12 dias para nos encontrarmos, mas eu queria poder estar com você agora e sempre. Quando estivermos juntos, descontaremos esse tempo”, escreveu no dia 15. Não satisfeito, retomou a escrita no dia 17 para não deixar dúvida: “Nós precisamos é de nos casar para podermos dizer que somos mesmo um do outro (não quase completamente, mas completamente mesmo)”. No final de 1947, ambos já se tratavam por noivos.
O romantismo das missivas crescia a cada folha pautada. Em novembro, foi Donatelo que partiu em viagem, deixando Vera ansiosa em Belo Horizonte. “Que dia você vai voltar para mim?”, ela indagava, em 23 de novembro, abrindo um parágrafo exclusivamente para registrar uma afetuosa e perspicaz observação sobre seu próprio romantismo e o de Donatelo. “Você não sabe o quanto eu gosto de estar com você”, seguia o texto. “Acho que é bobagem dizer isto, pois você já sabe há muito tempo que é assim, mas mesmo assim gosto de dizer. Aliás, tudo que é de amor a seu respeito eu gosto de dizer. Pode dizer que é romantismo. É sim, e isto é ótimo. Toda mulher quando gosta de verdade fica romântica. Aliás, não acho que sejam só as mulheres, pois você às vezes fica também muito romântico. De modo que é o amor que faz isto tanto a mim como a você.”
A correspondência dos noivos, trocada tão amiúde a cada período de distanciamento, tornou-se menos prolixa apenas após o casamento, em abril de 1949, meses após a formatura de Gabriel e o registro de fundação da Construtora Andrade Gutierrez.
A IGREJA DE LOURDES ESTAVA que era só flor na manhã do dia 20 de abril. Lugar bonito, aquele. As arcadas em ogivas, as abóbadas em cruzaria, os 60 pináculos distribuídos pela fachada gótica, colorida de alto a baixo com faixas cinzas e amarelas, tudo na igreja parecia cooperar para o clima solene e festivo da cerimônia. Não havia na cidade igreja mais bela. Nem casal mais afinado haveria de existir.
À espera da noiva, junto ao altar, Gabriel maltratava o bigode. Puxava daqui, alisava de lá, ansioso. Quase oito anos haviam se passado desde o primeiro filme, no Cine Brasil. Impossível calcular o número de cartas trocadas e de balas distribuídas durante tanto tempo. Gabriel soubera esperar. Respeitara o tempo do noivado, provara suas melhores intenções, construíra, tijolo por tijolo, um vínculo indevassável, fadado a durar para sempre. Dali a poucas horas, seria enfim um homem casado. Casado com Vera, Verinha, sua primeira e única mulher. Pela primeira vez a teria nos braços, apenas os dois. Sem a companhia de Edda ou de Elza, sem a necessidade de manter aparências, sem obrigação de conter os gestos, o ímpeto, a paixão.
Pais e padrinhos se aproximavam, saudavam o jovem engenheiro e punham-se em seus lugares. Os primeiros acordes brotavam do coro e percorriam a nave. Em instantes, um chiado, um cochicho mais alto, uma movimentação mais fremente junto à porta, como a denunciar a expectativa crescente nas coxias de um teatro. Todos a postos, a porta principal é fechada pela última vez. E se abre, de súbito, ao som dos clarins. O bigode de Gabriel desaparece diante da imensidão de seu sorriso.
Da igreja, foram todos para a recepção na casa de Vera, na Rua Espírito Santo. Festa modesta, de mesa farta, oferecida por João Furtado e Dona Marica. Pausa para as fotografias oficiais, o primeiro brinde, a primeira dança. Após o almoço, os noivos foram os primeiros a partir, rumo à noite de núpcias em Lagoa Santa, ao norte de Belo Horizonte, ainda na região metropolitana.
Foi Dulce, irmã de Vera, quem emprestou a casa. Ela morava com o família e os filhos em Belo Horizonte, mas tinha uma casa em Lagoa Santa para passar fim de semana. Naquela época, a represa de Lagoa Santa era destino frequente dos moradores da capital. Aos domingos, ficava coalhada de barcos e de jovens banhistas, entretidos em esportes náuticos, mergulhos, jogos e piqueniques à beira d’água. Muitos casarões começaram a ser construídos a seu redor, com deques e atracadouros independentes, transformando o local num pólo de lazer da elite mineira. Vera e Gabriel haviam comprado passagens para Porto Alegre, e de lá para Montevidéu e Buenos Aires, mas fariam a primeira parada em Lagoa Santa, na casa de Dulce.
A primeira noite de Vera foi, também, a primeira de Gabriel. Coisa rara naqueles tempos, o rapaz nunca foi de frequentar bordeis. Nem se enrabichou com outra garota ou recorreu à companhia de alguma empregada para contornar as agruras da espera, como era hábito em tantas casas e em tantas famílias. A bem da verdade, Gabriel parecia não se incomodar com a virgindade estendida. Uma vez, aos 17 anos, chegou a acompanhar um grupo de amigos do curso preliminar de Engenharia a um prostíbulo em Lagoa da Prata. A poucos quilômetros de Arcos, a zona boêmia da cidade era frequentada pela gente da fazenda. Pediram bebidas, dançaram, distribuíram chamegos e risadas. Papo vai, papo vem, Gabriel escolheu uma das meninas e subiu as escadas. Na hora agá, nada aconteceu.
— Faltou vontade.
NA MANHÃ SEGUINTE ÀS NÚPCIAS, Gabriel acordou numa agitação sem tamanho. Arrancou a mulher da cama e a levou para velejar. Pelo menos, tentou. Prendeu uma vela a um barco que havia na casa e foi tentar navegar nas águas da lagoa.
O dia estava lindo, e Vera, um esplendor. Havia vento de sobra, o que os deixava especialmente animados para a aventura. Em poucos minutos, o marido preparou uma cesta de frutas, separou taças e uma garrafa de champanhe, empurrou o barco até a água e pôs-se a remar. Em pouco tempo, no entanto, a ausência de quilha o impediu de controlar a embarcação, e o passeio teve de ser cancelado.
Talvez em razão do vento frio que varria a lagoa naquele mês de abril, ou da tentativa de dar rumo ao veleiro sem quilha, Gabriel chegou gripado a Porto Alegre, dois dias depois do casamento. O desconforto não o impediu de pegar a estrada em plena lua de mel e ir conhecer lavouras irrigadas de arroz nos arredores da capital gaúcha. Gabriel havia começado a investir em rizicultura irrigada na fazenda de seu pai e, para lavradores como ele, nenhum momento é inapropriado à pesquisa. Vera o acompanhava para todo lado, satisfeitíssima.
Gabriel já sentia a voz desaparecer quando os dois pegaram o trem rumo a Montevidéu. Um frio danado lhe arranhava a garganta enquanto o comboio cruzava o rio Jaguarão por um dos mais atraentes cartões postais do sul do país, a Ponte Internacional Barão de Mauá, que ligava os dois países. Vera não perdoou:
— Não somos nós, as mulheres, que costumamos ficar doentes?
Gabriel acusou o golpe. Lembrou imediatamente o comentário do pai, irônico, semanas antes do casamento. Segundo Donato, as mulheres eram péssimas companheiras de viagem, porque só sabiam adoecer. Fora assim com ele, em sua lua de mel, 40 anos antes. Durante viagem à Europa, Laura sentira fortes enjôos na Suíça, prováveis efeitos colaterais de uma gravidez ainda não diagnosticada, e, sem paciência para enfermagem, Donato deixara a mulher num spa e seguira sozinho até Milão. Tirou foto e tudo, como um turista exultante, quando o bom senso e a etiqueta recomendavam que permanecesse ao lado da esposa durante a recuperação. Exatamente por isso, Donato recomendara que Gabriel e Vera não viajassem para longe, nem para os Estados Unidos nem para a Europa. Não valeria a pena, dizia. Agora, fazendo turismo no Uruguai a caminho da Argentina, Vera descontava, fazendo justiça à sogra.
— Vou deixar você em Montevidéu e ir sozinha para Buenos Aires — ela ameaçava, ironizando a situação.
Não precisou cumprir a ameaça. Embora combalido, Gabriel seguiu em frente, sem deixar que a gripe e a crise de hipoglicemia atrapalhassem a delícia daqueles dias.
Na capital argentina, dançaram tango, provaram os melhores alfajores e as carnes mais suculentas, foram à Recoleta, ao Teatro Colón, ao Caminito, ao cinema.
De volta a Minas, no início de maio, o casal foi morar na São Miguel, como previsto. Donato precisava que o filho caçula assumisse a administração da fazenda. E a Andrade Gutierrez, ainda pequena, prescindia da presença de Gabriel na maior parte do tempo. Dedicada a pequenos e esparsos trabalhos na periferia de Belo Horizonte, a construtora podia ser tocada apenas por Flávio Gutierrez, moço da cidade sem fazenda para administrar.
Eu me casei em 1949, um ano depois de registrar a empresa, que tinha sido criada em 1947. Foram sete anos de namoro. Os pais não queriam que a gente casasse enquanto eu fosse estudante porque ficaria apertado. Estavam certos. Casamos logo depois que eu me formei e fomos morar na fazenda. Nós éramos muito namorados, muito amigos, e imagino que Vera aceitou deixar a cidade para ficar comigo. Mas não sei se ela iria aonde quer que eu fosse. Ela já conhecia a fazenda. Meu irmão Roberto morava lá com a mulher dele, Sônia, e Vera esteve passeando por lá com minha cunhada, como visitante. O pai dela sugeriu: “Se você quiser morar na fazenda, aproveita para conhecer antes.” Então ela passou uns dias lá com essa minha cunhada. Deve ter gostado, porque não se opôs à mudança. Moramos um bom tempo lá.
O mesmo roteiro fora seguido, anos antes, pelos irmãos de Gabriel. Maurício e Hilda moraram na fazenda nos primeiros anos após o casamento e, mais recentemente, era o casal Roberto e Sônia que vivia em sua sede. Naquele ano, no entanto, Maurício já era deputado estadual, o que o mantinha preso à capital. E Roberto também planejava se mudar para o Rio. Caberia a Vera e Gabriel substituí-los em Arcos, e isso já estava decidido desde o noivado.
Antes de concordar com a mudança e carimbar o passaporte para a vida rural, da qual jamais tiraria os pés, Vera foi assuntar.
— Você não está acostumada à vida na fazenda — o pai alertou, preocupado com a decisão da filha. — Fazenda não é fácil. Acho bom você ir conhecer esse lugar antes do casamento para não mudar de opinião depois. Conforme for sua experiência, dá tempo de cancelar a cerimônia.
Vera passou uma semana na São Miguel, com Sônia, e ficou satisfeita. Percorreu os pastos, deu comida para os porcos, aprendeu a diferenciar os tipos de capins e a reconhecer quando as espigas de milho estão prontas para serem colhidas, alimentou as galinhas, andou a cavalo. Ao cabo de uma semana, quase não sentiu picada de mosquito. Voltou convencida.
A adaptação levaria algum tempo para se consumar. Laura, a sogra, deixara muito claro, desde o início, que, naquela casa, não haveria espaço para mudanças de estilo ou de hábitos. O novo casal deveria zelar por manter a mesma cultura implementada por Donato e Laura ao longo das décadas anteriores. Em outras palavras, Vera teria de cuidar da casa e tratar os empregados da mesma forma que a sogra tratava, fazendo ecoar pelos cômodos da São Miguel a mesma autoridade que emanava da boca e dos gestos da mãe de Gabriel. A nora usaria linguagem muito diferente, mas em certo sentido seria ainda mais realista do que o rei (ou a rainha, no caso).
A comunicação com sua família se dava majoritariamente por meio do rádio amador. Havia um aparelho transmissor na fazenda, e outro na casa de Donato e Laura, em Belo Horizonte. Vera entrava em contato por rádio com a sogra, Laura, e pedia a ela que transmitisse notícias ou recados à mãe e às irmãs. Por rádio, pedia a eles que enviassem algum produto especial que se fazia necessário na fazenda, fosse de alimentação ou vestuário. Foi por meio do rádio que Vera anunciou, em outubro de 1949, que estava grávida da primeira filha.
— Dona Laura, diga a Elza para encomendar um vestido de bolinhas.
— Um vestido de bolinhas? Ora, para que você quer um vestido de bolinhas?
— Apenas diga isso, por favor. Ela vai saber.
Era um código, uma senha, combinada previamente com sua família para despistar a bisbilhotice dos demais usuários do rádio-amador. O sistema de rádio-difusão era muito primitivo naquela época, e qualquer pessoa poderia acessar a frequência utilizada pelo rádio-transmissor da São Miguel e interceptar os diálogos. E certas intimidades não haviam sido feitas para serem proclamadas publicamente, em ondas curtas ou médias.
Elza matou a charada na hora:
— Ela está grávida!
Vera atravessou a primeira gestação na fazenda, fazendo tricô, assobiando sinfonias, dedilhando um acordeão, enjoando e, de vez em quando, obrigando o marido a correr para o rádio e encomendar, às pressas, o que precisasse vir da cidade para satisfazer seus desejos de gestante.
— Vontade de comer melancia gelada… — exclamava, cobrando providências de Gabriel.
Enquanto a barriga começava a crescer, no segundo semestre de 1949, Vera se empenhou em ajudar o marido no ambicioso projeto de abrir um canal para represar água do rio São Miguel e construir uma usina hidrelétrica na fazenda. Vera aprendeu a usar o teodolito e ia com ele para todo lado, topógrafa de ocasião.
Aos oito meses de gestação, num passeio noturno pela fazenda, ao lado de Gabriel, Vera se acidentou num mata-burro. Mata-burro é o nome dado a uma engenhosa estrutura, largamente utilizada em propriedades rurais, que consiste num fosso construído junto a uma porteira ou entrada, sobre o qual são fixadas pranchas de madeira espaçadas entre si, de modo a evitar a passagem de animais devido à alta probabilidade de prender a pata ao tentar cruzá-lo. Susto danado. Mas nada de grave aconteceu.
A primeira filha, Marília, nasceria em maio de 1950, no hospital e maternidade São Lucas, em Belo Horizonte, mesmo local onde nasceriam, ao longo de 14 anos, todos os outros seis filhos do casal: Flávio em 1951, Laura em 1952, Heloísa em 1957, Paulo em 1959, Álvaro em 1960 e Luciana em 1964.
Os três primeiros filhos nasceram num intervalo de dois anos e meio.
— Bastava sacudir uma cueca perto de mim que eu engravidava — Vera diria, aos risos, décadas depois.
Já no final de 1952, com três crianças para criar, Gabriel precisou deixar a fazenda para passar longos períodos em canteiros de obra, supervisionando a construção de estradas. A Andrade Gutierrez começara a deslanchar, com obras em diferentes locais, e o sócio Flávio já não conseguia cuidar de tudo sozinho. Agora, cada um teria de ficar numa obra, de modo a manter duas frentes simultâneas. Vera acompanharia o marido à maioria delas, em viagens que começavam às 3 da manhã, por temporadas cada vez mais longas, trocando frequentemente o conforto da São Miguel pelo improviso dos acampamentos. Durante seis anos, a rotina da família era se revezar entre a fazenda, os canteiros e as sucessivas casas dos pais de Vera, que sempre funcionaram como porto-seguro em Belo Horizonte. Apenas em dezembro de 1957, já com quatro filhos (Heloísa nascera naquele ano), Vera e Gabriel fariam a mudança definitiva para Belo Horizonte, para a casa que haviam terminado de construir — de fato, só ela — no número 452 da Rua Eduardo Porto, no bairro de Cidade Jardim. A fazenda virou destino de férias e de produção rural, mas jamais voltaria a servir de residência para Vera e Gabriel.
Em 1962, Donato se aproximava dos 80 anos quando optou por dividir sua propriedade entre os três filhos. Deu a sede a Maurício, que manteve o nome São Miguel. Roberto ficou com a fazenda Faroeste, localizada na porção ocidental e separada das outras terras por um curso d’água intermitente, que aparecia na época das chuvas. Por fim, a área herdada por Gabriel foi batizada, num primeiro momento, de Granja Bela Vista. Na ocasião, era costume chamar de granja as fazendas destinadas a gado de leite, um hábito importado dos Estados Unidos. Mas o nome durou pouco. Gabriel logo optou por incorporar à fazenda o mesmo nome da estação de trem, seguindo a estratégia do pai. Se Donato havia batizado sua fazenda de São Miguel quando a estação se chamava São Miguel, agora que a estação tinha mudado de nome para Calciolândia, mais prático seria chamá-la de Calciolândia. Quando o casal construiu ali uma casa, Vera fez questão de plantar sete palmeiras imperiais no quintal em frente à sede, e deu a cada uma o nome de um de seus filhos. As palmeiras estão lá até hoje.
O AMOR DE VERA E GABRIEL viraria livro, site, blog e filme em 2009. Por ocasião do aniversário de 60 anos de casamento dos dois, comemorado em abril daquele ano, a neta Petra Costa dirigiu e produziu o curta-metragem Olhos de ressaca, de 20 minutos. Mesclando imagens de arquivo, parte deles em 16 mm, e registros recentes, as cenas remontam à trajetória do casal, desde os primeiros flertes até a maturidade, percorrendo o nascimento dos filhos, a rotina familiar, a intimidade, a troca de carícias e, principalmente, a dor e a delícia de envelhecer juntos.
— A morte, para nós que temos 80 anos, é uma coisa natural, que pode vir a qualquer hora, e nós temos que encarar — ele diz em determinado trecho do filme.
Delicado e onírico, Olhos de ressaca ganhou uma dezena de prêmios, entre eles o de melhor curta-metragem nos festivais do Rio e de Londres e o prêmio especial do júri no Festival de Gramado daquele ano. No conjunto, a obra funciona como um balanço do longo romance dos dois, pela ótica privilegiada e serena dos protagonistas-avós.
— Algumas vezes eu tenho dificuldade de me movimentar, de dizer algumas palavras, de cantar — conta Vera em determinada passagem. — A voz não sai, e eu vejo que isso é a idade. Em compensação, a gente conhece mais coisas, distingue melhor a aproximação das pessoas que têm carinho com a gente. (…) Isso é muito importante. Não é qualquer pessoa que tem momentos assim como eu tenho com ele, em que a gente sente o apoio um do outro sem nem precisar falar nada, só de cruzar o olho. Isso é a melhor coisa na vida.