Peões de trecho, em 1960, na construção da BR-31, que liga Belo Horizonte e Monlevade

5 | Peão de trecho

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
32 min readDec 2, 2015

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A NOITE CHEGAVA DEPRESSA ao acampamento e logo envolvia as poucas casas. O coaxar dos sapos, tagarelas e alvissareiros, somava-se ao canto das cigarras com fôlego de trompetista. A cada quatro compassos, um grilo marcava o tempo. De uma das casas, brotava o som displicente de um rádio-transistor. Ao longe, o vai-vem de caminhões e escavadeiras anunciava o início do terceiro turno. Complexa, a obra avançava, metro a metro, quilômetro por quilômetro.

Terminado o jantar, Gabriel fumava um cigarro junto com a mulher, vestia o paletó, despedia-se de Vera e das crianças e voltava ao trabalho. Uma abóbada pontilhada de estrelas clareava seu trajeto — muito mais estrelas do que era possível admirar em Belo Horizonte naquele inverno de 1952.

Pouco interessado na posição dos astros ou no mosaico de constelações, o engenheiro pisava firme e apressava o passo a caminho da obra. Seu pensamento chegava ao canteiro bem antes de seus pés alcançá-lo.

Era preciso motivar a turma e exigir prontidão para cumprir o prazo estabelecido pelo DER. Trabalhariam sem interrupção, se fosse preciso. Ele mesmo, Gabriel, acordava todos os dias por volta das 5h, chegava ao canteiro antes das 6h, e não encerrava o expediente antes das 23h.

Vida em trecho de obra é assim. Exige atenção permanente, de sol a sol. Estrada é como gado: engorda com o olho do dono. E Gabriel nunca foi homem de fugir de suas obrigações. Mesmo tarde da noite, havia sempre uma orientação a dar: faça isso, não faça aquilo, vá por aqui, chega pra lá. Havia sempre algum problema por resolver. Consertar uma esteira, desatolar um trator, reparar um cabo de aço, comprar mais diesel. Não havia mecânicos nem motoristas, Gabriel mesmo era quem acabava ensinando os funcionários, usando um método que ele apelidou de “moita”, e que ele espalhou pela empresa: orientar sem ser percebido, apenas observando, discretamente, e fazendo o aprendiz reparar nos truques. Ao longo dos anos seguintes, ele passaria muitas temporadas à beira da estrada, vivendo em casas de madeira, sem água encanada nem luz elétrica. Por precisão, é verdade, mas também pela necessidade íntima de acompanhar tudo de perto.

Tamanha dedicação tinha motivo: cumprir o contrato firmado com o DER e, em poucos meses, abrir mais um pedaço de estrada. A construtora já ia para seu quinto ano de atividade, quatro deles registrados em cartório, e, dessa vez, Flávio não poderia assumir a tarefa, dada a total impossibilidade de acompanhar duas obras simultâneas.

Normalmente, ao longo dos primeiros anos de sociedade, era Flávio quem acompanhava o dia a dia nos trechos. Havia exceções, entre elas os serviços prestados pela empresa na própria fazenda São Miguel, onde Gabriel morava, como o desvio do Rio São Miguel para a construção da usina, em 1949. Também ficara a cargo de Gabriel supervisionar a terraplenagem do trecho da futura MG-050 no distrito de São José dos Salgados, conhecido como Salgado, entre Itaúna e Divinópolis, perto o bastante da fazenda para que ele assumisse a função sem se ausentar de casa por muitos dias.

Agora, em meados de 1952, Flávio estava morando em outra obra, próxima a Itabirito, na região de Ouro Preto. Por isso, não teve jeito: foi preciso que Gabriel fizesse as malas e tocasse para o acampamento em Ribeirão do Eixo, onde a Andrade Gutierrez construiria um novo trecho da BR-3, a tão esperada rodovia asfaltada que iria ligar Belo Horizonte ao Rio de Janeiro.

De Juiz de Fora em diante, rumo à capital federal, a estrada já existia, larga e moderna, havia mais de duas décadas. O trecho entre Rio de Janeiro e Petrópolis fora inaugurado em 1926 por Washington Luís — o mesmo que, certa feita, dissera que “governar é abrir estradas” — e tornara-se a primeira rodovia asfaltada do Brasil em 1931. Entre Petrópolis e Juiz de Fora, a ligação era feita pela Estrada União e Indústria, fundada em 1861 pelo imperador D. Pedro II. A partir de Juiz de Fora, a coisa se complicava. Não havia rodovia que unisse a Zona da Mata a Belo Horizonte, obrigando os viajantes a escolher entre ir de trem ou peregrinar de cidade em cidade por meio de estradas estreitas de péssima qualidade, transformando o trajeto num pinga-pinga sem fim entre povoados e vilas que mais pareciam contas de um rosário.

Por tudo isso, e por ligar cidades tão importantes quanto o Rio e Belo Horizonte, passando por Juiz de Fora, Barbacena e Congonhas, era grande a expectativa em torno daquela que viria a ser a segunda estrada mais movimentada do Brasil, perdendo apenas para a Rio-São Paulo — então chamada de BR-2 e rebatizada como Rodovia Presidente Dutra anos depois. Quando concluída, em 1957, a Belo Horizonte-Rio adotaria oficialmente o nome BR-3, com o qual já era conhecida desde a construção. Os nomes da estrada, ou de trechos dela, mudariam com o tempo, adaptando-se às mudanças da história brasileira. Mas nada disso importava. Importava era construí-la.

AQUELA NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ que uma equipe da Andrade Gutierrez acampava à beira da BR-3, e nem seria a última. Naquele momento, na ausência de uma segunda obra do mesmo porte a administrar, Gabriel poderia permanecer na fazenda, recém-casado, orientando a abertura do canal do rio São Miguel.

Vencer a concorrência para o trecho junto à Lagoa dos Ingleses fora uma vitória pessoal de Flávio, que desenhara a estratégia e a colocara em prática. Os sócios sabiam que seria praticamente impossível o DER confiar aquela obra a uma firma nova, sem currículo, fundada apenas um ano antes por dois moleques recém-formados. Mas Flávio decidira mexer os pauzinhos e arriscar. Seu primeiro lance foi procurar o engenheiro Paulo Vieira, professor na faculdade de Engenharia, e propor uma parceria, uma espécie de consórcio. Vieira presidia uma construtora tradicional em Minas Gerais chamada Alcino Vieira, que detinha know how e os atestados de experiência exigidos pelo cliente. Em troca, a Andrade Gutierrez entraria com o trator de última geração e a força de trabalho.

Feito o acordo, faltava resolver outro impasse: a concorrência seria restrita às empresas que fossem convidadas pelo DER. Novamente, Flávio arregaçou as mangas e foi procurar o colega Márcio Drummond, filho do então diretor-geral do DER mineiro, José Custódio Drummond. Seu pedido não poderia ser mais explícito: que Márcio conseguisse com o pai uma carta-convite para que o consórcio pudesse apresentar sua proposta.

O resto era com eles. Os sócios fizeram alguns cálculos e projeções e chegaram a um preço bastante atraente. Dona do lance mais baixo, a recém-fundada Andrade Gutierrez venceu a concorrência e, junto com a Alcino Vieira, pôde realizar sua primeira obra numa estrada federal.

O contrato foi comemorado intensamente. Até então, as coisas tinham sido bastante difíceis para a sociedade. Sem contratos de longo prazo e sem um retorno seguro que lhe garantisse entrada de capital pelos meses seguintes, o endereço comercial da empresa continuava sendo uma das salas da casa de Flávio. Ou melhor, da casa de Miguel e Carmelita Gutierrez, seus pais, onde o engenheiro morava quando fundou a construtora, e onde permaneceu até se casar com Maria Auxiliadora, a Nenén, em 1949, mesmo ano do casamento de Gabriel e Vera.

Era ali, na casa dos pais, que Flávio elaborava as propostas e fazia reuniões com o contador, Walter Melo, quase sempre em busca de soluções que lhes permitissem esticar a grana e garantir mais alguns meses de vida. Periodicamente, Gabriel vinha da fazenda para também se reunir com eles. Antes de vencer a concorrência para o primeiro trecho da BR-3, a empresa se sustentava basicamente com as pequenas reformas na São Miguel e com os parcos serviços prestados à Construtora Pampulha — que a contratava como subempreteira na capital.

Tinha sido esse o caminho sugerido pelo prefeito Otacílio Negrão de Lima em audiência com Gabriel, intermediada por Márcio Resende de Lima, colega de Gabriel na UFMG e sobrinho de Otacílio.

— Não consigo contrato para vocês — o prefeito resumiu a conversa. — Mas tem uma empresa, a Pampulha, que está loteando umas áreas pela cidade e pode ter interesse no trator. Vá procurá-la em meu nome.

Primeiro nós fizemos umas obrinhas aqui da Prefeitura, que o Maurício, meu irmão, ajudou a conseguir. Ele era deputado e me apresentou ao prefeito, o Otacílio Negrão de Lima. Ele disse que não tinha obras para contratar, mas nos recomendou ir até a construtora Pampulha, que estava abrindo ruas na cidade, para oferecer nosso equipamento. Dito e feito. A Pampulha nos contratou como subempreiteira para fazer algumas ruas. A tabela era calculada para fazer com picareta. E nossas máquinas faziam o mesmo trabalho por um custo muito menor. Elas nem enguiçavam, porque nós mesmos éramos os mecânicos das máquinas. Buscamos bons mecânicos no mercado. Cresceu de vento em popa. Gastávamos muito pouco. Tínhamos o dobro do lucro que uma empresa que trabalhava com tração animal.

Entre 1947 e 1949, a Andrade Gutierrez fez três ou quatro “obrinhas” para a prefeitura, como Gabriel costumava dizer, sempre subcontratada pela Pampulha. A canalização do córrego Acaba Mundo, sob a Rua Rio Grande do Norte, no Savassi, e a terraplenagem para a implantação da Vila Operária Fazenda do Mato da Lenha, futuro bairro Salgado Filho, foram algumas delas. Por influência do tio Bolivar, então prefeito de Bambuí, 270 quilômetros a oeste da capital mineira, a construtora também conseguira um contrato para abrir um campo de pouso na cidade, de terra mesmo, sem iluminação nem pavimento. Mas nada que permitisse aos sócios respirar aliviados.

O fantasma da falência rondava o escritório. Em mais de uma ocasião, fora preciso alocar recursos particulares para que as contas da empresa fechassem. Numa ocasião, desapontado e pessimista, Flávio pediu ao contador que providenciasse a documentação para liquidar a construtora. A única obra em execução naquele momento era o canal na São Miguel, contratado a preço de custo pela SaMiGue. Walter pediu calma, contemporizou, apresentou argumentos. Tanto fez que conseguiu borrifar algum otimismo no sangue espanhol do patrão. Em outra oportunidade, no finalzinho de 1949, Flávio quis saber quanto o contador conseguira poupar desde a fundação da empresa. Ele sabia que Walter estava com casamento marcado para fevereiro e, por isso, economizava boa parte do salário.

— Deu para fazer um pé de meia? — indagou o chefe.

— Guardei alguma coisa, sim. Devo ter juntado uns 50 contos — o contador revelou. A quantia, em cruzeiros, equivaleria a pouco mais de US$ 25 mil em 2014.

— Então empresta esse dinheiro para a empresa que ele será devolvido antes de fevereiro — o patrão confiscou, carente de recursos, sem dar chance de defesa ao contador.

Como nem tudo acontece como programado, Walter teve de adiar o casamento até receber seu dinheiro de volta, o que só aconteceu em maio, graças exatamente ao contrato que a AG firmou com o DER para a construção do trecho da BR-3. Assim que o DER pagou a primeira parcela, Walter se apressou para providenciar o casório antes que o patrão o surpreendesse com outro desfalque.

Não foi apenas a dívida com o contador que os sócios contraíram na ocasião. Ainda para dar início às obras no trecho da Lagoa dos Ingleses, os donos da construtora perceberam que era preciso comprar mais um trator e investir em novos equipamentos. Com que dinheiro, não faziam ideia. O valor arrecadado com o contador não seria suficiente. Gabriel pensou por alguns dias e decidiu bater na porta do primo Aloysio Andrade Faria, filho da tia Jenny, irmã mais nova de Donato.

Aloysio era filho de Clemente Faria, o banqueiro amigo de Maurício, que o ajudara a conquistar uma cadeira na Assembleia Legislativa em 1946. Desde a morte de seu pai, no ano anterior, Aloysio dividia com o irmão Gilberto a tarefa de administrar o Banco da Lavoura de Minas Gerais, algo que pouco tinha a ver com sua formação em medicina, obrigando o jovem médico a uma aposentadoria compulsória após somente três anos de exercício profissional. Em 1971, os irmãos optariam por desmembrar o Banco da Lavoura em dois: o Banco Real ficaria com Aloysio, e o Banco Bandeirantes, com Gilberto.

No final de 1949, Aloysio acabara de assumir a direção do banco e tateava na gestão financeira. Solícito, acompanhou o primo Gabriel, cinco anos mais novo, numa visita à única obra da Andrade Gutierrez em andamento, uma “obrinha” na periferia de Belo Horizonte, mas sua resposta não foi a que o engenheiro esperava.

— Não empresto dinheiro para empresa — afirmou.

A resistência de Aloysio tinha menos a ver com a insegurança que sentia do que com seu raro tino para os negócios. A vida é feita de escolhas, dizem. E o primo tinha seus métodos. Não à toa, dali a meio século, Aloysio seria alçado ao posto de segundo homem mais rico do Brasil, segundo a revista Forbes, logo após vender o Banco Real para o holandês ABN Amro, em 1998, nove anos antes de o espanhol Santander adquirir o controle acionário da operação brasileira do ABN.

— As empresas perdem dinheiro e depois querem mais — argumentou, na ocasião, o sincero Aloysio. — Na hora de honrar a dívida, pedem mais dinheiro ainda.

O Brasil era muito atrasado. Quase não havia obra antes do Juscelino. Só o Ademar de Barros, que fez umas obras em São Paulo, como a São Paulo-Santos, pouca coisa. Minas Gerais era considerado um Estado atrasado. Quando Juscelino ganhou a eleição para o governo, em 1950, sua campanha era baseada no binômio energia e transporte.

Fracassada a missão de Gabriel, foi a vez de outro sócio, Roberto, visitar a sede do Banco Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Recém-chegado à capital federal, Roberto frequentava o high society carioca. Oferecia jantares e era convidado para outros. Culto e sedutor, tinha facilidade para fazer amigos e, em pouco tempo, criara vínculos com muita gente importante. O dono do Banco Moreira Salles era um dos novos amigos. Nascido na mineira Pouso Alegre, o banqueiro e futuro embaixador Walter Moreira Salles aceitou financiar a compra de maquinário, incluindo um novo trator, e exigiu apenas 20% de entrada, prática pouco comum naquela época. O segundo trator da empresa receberia o nome de Lampião, alusão ao rei do Cangaço. E a Andrade Gutierrez pôde dar início aos trabalhos na rodovia.

Desde o momento em que fincou a primeira estaca na BR-3, a empresa nunca mais precisaria atuar como subempreiteira. E debutava como co-titular de uma concorrência justamente numa das mais importantes obras federais do período, que despertava enorme interesse e expectativa entre os mineiros: um trunfo tão importante para o currículo da construtora que, por muitos anos, lhe serviria de cartão de visitas e de atestado de competência para a obtenção de novos contratos.

— Fizemos a BR-3 — os sócios gostavam de dizer, sem esclarecer aos leigos que, pelo menos num primeiro momento, haviam construído apenas 12 quilômetros da rodovia. E apenas no que se referia à terraplenagem, nada de pavimentação.

Houve festa no escritório no dia do primeiro pagamento. Até então, em todas as obras feitas para particulares ou para a prefeitura de Belo Horizonte, a empresa recebia por meio de carta promissória, em doses homeopáticas, e o contador Walter Melo tinha de se virar para descontá-las nos bancos. Dessa vez, foi diferente. O DER pagava em dia. E liberava o dinheiro à vista.

Após a primeira medição — análise feita por técnicos do órgão para avaliar se determinada etapa da obra fora cumprida conforme o contrato –, Flávio Gutierrez recebeu um cheque e foi imediatamente à agência. Saiu de lá com um pacote de dinheiro vivo. Na salinha ocupada pela construtora na casa de sua família, Flávio fez o diabo. Jogava dinheiro para o alto, chutava maços de notas até o teto, sublinhava cada gesto com gritos e gargalhadas. Walter, recatado, embora entusiasmado por saber que sua dívida seria finalmente quitada e o casamento logo sairia, via aquele espalhafato e desacreditava. Imagina se Gabriel ousaria fazer algo parecido…

POUCO DEPOIS DE ENTREGAR os 12 quilômetros de BR-3, em 1950, a empresa disputou e ganhou outra concorrência, no ano seguinte, para fazer a terraplenagem de uma estrada que ligaria aquele mesmo trecho da Belo Horizonte-Rio à cidade de Itabirito, no caminho para Ouro Preto, futura Rodovia dos Inconfidentes. Aquela seria a primeira obra da construtora para o governo do Estado, e logo no primeiro ano de gestão de Juscelino Kubitschek, eleito em 1950 após uma campanha inteiramente calcada num binômio desenvolvimentista de rápida assimilação e forte apelo de marketing: energia e transporte.

Segundo a propaganda eleitoral, aqueles eram os maiores desafios de Minas Gerais e, naturalmente, seriam os principais tópicos do novo governador. O compromisso de reverter a herança de uma malha viária precária e insuficiente, bem como de uma rede de geração e distribuição de energia ainda incipiente, foi recebido como sopro de esperança por uma população sedenta de industrialização e modernidade. Com a mesma pressa que marcaria sua passagem pela presidência — “50 anos em cinco” –, o político de Diamantina investiria fortemente na construção de estradas e em infra-estrutura energética.

Empossado no Palácio da Liberdade, então sede do governo, em janeiro de 1951, JK agendou para maio a cerimônia de fundação da Cemig, a Centrais Elétricas de Minas Gerais, e ainda no primeiro semestre propôs a formação de um pool de construtoras que assumisse, em conjunto, o desafio de implantar 2 mil quilômetros de estradas em quatro anos. Visionário, o governador encontrou uma fórmula capaz de livrá-lo da desgastante tarefa de contratar as empresas uma por uma, conforme o trecho a ser executado, numa cansativa rotina de editais e cartas-convites. Já naquela época, anteviu um modelo de participação societária que, nas décadas seguintes, seria hegemônico nos contratos públicos de construção civil: os consórcios.

A missão de liderar a formação do consórcio foi atribuída a Ajax Rabello, um construtor bastante conhecido em Minas desde a passagem de JK pela prefeitura de Belo Horizonte. Também natural de Diamantina, Ajax era amigo pessoal de Juscelino. Num tempo em que as relações de amizade e compadrio bastavam para contratar uma empreiteira, Rabello fora convidado pelo prefeito JK para tocar as obras na Pampulha, em meados dos anos 1940. Mais tarde, o governador JK voltaria a fazer-lhe um convite. Se o plano era construir 2 mil quilômetros de estradas, a firma de Ajax Rabello teria seu quinhão. E ninguém melhor do que ele, aos olhos do governador, para selecionar outras empresas e capitanear o processo.

Ao tomar conhecimento das intenções de Juscelino, algumas empresas paulistas também se prontificaram a montar um consórcio para disputar a licitação. Não funcionou. Com a supervisão de Ajax Rabello, os mineiros levaram a melhor.

Outra obra da AG, em 1951, foi uma estrada estadual ligando a BR-3 à cidade de Itabirito. O então governador Juscelino Kubitschek foi ao canteiro para inaugurar os trabalhos, subiu num trator com Flávio Gutierrez e declarou: “Hoje estou começando a governar”

Nos bastidores, o grupo ganhou o apelido de Consórcio Ajax. Outras empresas de Minas, como a Alcino Vieira e a Construtora de Estradas Ltda, precursora da Mendes Júnior, foram rapidamente convocadas. Também a empresa de um sobrinho de Ajax, o engenheiro Marco Paulo Rabello, fazia parte da patota. Fundada em 1944 com o nome de Construtora Rabello, ela herdaria do tio o livre trânsito com o político diamantinense e, durante a permanência de JK na presidência da República, seria a principal companhia a participar da construção de Brasília. No portfolio da Rabello estão listados alguns dos maiores marcos da “Novacap” e, por extensão, da arquitetura de Niemeyer, como o Palácio da Alvorada, o Palácio do Planalto, o Teatro Nacional e a Catedral Metropolitana.

Foi com Juscelino Kubitschek, especificamente em razão da artimanha encontrada para agilizar as contratações dos 2 mil quilômetros, que a Andrade Gutierrez obteve seu primeiro contrato com o Executivo estadual e, dada a qualidade dos trabalhos realizados, viabilizou-se comercialmente. Maurício Andrade deu um empurrão providencial. Deputado pelo mesmo partido de JK e líder do governo na Assembleia durante seu mandato, o irmão mais velho de Gabriel fez as apresentações necessárias e, como um relações públicas de ocasião, facilitou o acesso da AG ao Consórcio Ajax.

O primeiro trecho reservado à empresa, então uma das menos significativas dentre as empreiteiras consorciadas, foi a tal ligação rodoviária entre a BR-3 e a cidade de Itabirito, já em 1951. Construída numa escarpa rochosa à beira de um vale, toda sinuosa e em declive, a estrada começava na Lagoa dos Ingleses, onde a empresa acabara de atuar, e descia cerca de 500 metros de altitude num percurso de 25 quilômetros, desde o topo, na BR, até o fundo do vale do Rio das Velhas, em Itabirito.

Flávio emendou uma obra na outra e ficou por ali, dirigindo a implantação do canteiro. Semanas após sua mudança, o próprio governador esteve ali para inaugurar os trabalhos. Juscelino subiu num trator, posou para fotos, fitou o horizonte com olhos marejados e, orgulhoso, revelou o que sentia a Gutierrez:

— Hoje estou começando a governar.

A estrada seria inaugurada em 21 de abril de 1953.

FLÁVIO ESTAVA EM PLENA ATIVIDADE na estrada de Itabirito quando foi firmado o novo contrato com o DNER, em 1952, para fazer mais um trecho da BR-3, na região conhecida como Ribeirão do Eixo, cerca de 20 quilômetros ao sul da Lagoa dos Ingleses. O canteiro começava 53 quilômetros ao sul de Belo Horizonte, próximo à saída para Moeda, e se estendia por 25 quilômetros, até a saída para Congonhas.

Estrutura espartana nos acampamentos, sem água encanada nem fornecimento de energia. Era preciso esquentar um caldeirão no fogão à lenha para aquecer o banho de bacia dos filhos mais novos

Gabriel montou uma casinha no acampamento e, assim que possível, foi buscar a família na São Miguel. Ao menos oito horas de viagem separavam a obra da fazenda, o que inviabilizava percorrer a distância toda semana para encontrar os dois filhos e a mulher, grávida pela terceira vez.

A estrutura era espartana. A casa, de madeira, tinha apenas três cômodos: quarto, sala e cozinha. O banheiro ficava do lado de fora. O tanque, também. Coberta com telhado de zinco, sem forro, a nova moradia dos Andrade parecia pegar fogo durante o dia e gelava à noite. Um dia, Gabriel mandou cobrir o telhado com uma camada de sapê, para tornar a temperatura mais amena, pelo menos durante o dia. Não havia luz elétrica nem água encanada. Quando finalmente compraram uma geladeira, era um trambolho pouco prático, movido a querosene.

Meses após o início da obra, Vera e as crianças mudaram-se para a casa de João e Marica, em Belo Horizonte, para esperar o fim da gestação. Gabriel chegaria ao Hospital São Lucas a tempo de ouvir, na ante-sala, o médico anunciar o nascimento de uma menina, Laura, no final de outubro. Em dois dias, estava de volta ao canteiro, desdobrando-se para voltar à capital todo fim de semana nos primeiros meses de vida da neném.

Laura, que já tinha estado na obra de Ribeirão do Eixo, ainda nem engatinhava quando viveu sua segunda temporada em acampamento, no começo de 1953. Agora, a obra era em São Gonçalo do Rio Abaixo, na estrada que ligava Belo Horizonte a Vitória, no Espírito Santo, e novamente a casa era de madeira. Fazia tanto frio de madrugada, e o vento penetrava com tanta fúria entre as tábuas, que Vera não hesitou em colocar o moisés da caçula dentro do armário, onde Laura ficaria aquecida. No dia seguinte, encontrou uns restos de sacos de cimento e caixas de papelão e improvisou um grude com polvilho, pondo-se imediatamente a vedar as frestas da casa. Novamente sem água encanada nem luz elétrica, era preciso esquentar um caldeirão no fogão para que Laura tomasse banho de bacia. Os meninos maiores, Marília com 2 anos e Flávio com 1, já se lavavam na torneira do lado de fora da casa, sem precisão de água morna.

Entre uma obra e outra, a família voltava a morar na São Miguel. E, indo ou voltando da fazenda, passava alguns dias em Belo Horizonte, sempre na casa dos pais de Vera.

Já no início de 1954, estavam todos de volta à BR-3, onde a Andrade Gutierrez construiria mais um trecho, entre Conselheiro Lafaiete e Barbacena. Agora, em vez de morar no acampamento, Gabriel optou por alugar uma casinha no vilarejo de Cristiano Otoni, um distrito de Conselheiro Lafaiete que seria emancipado em 1963. Que delícia tomar banho de chuveiro e não depender de lampião para ler à noite nem de querosene para ter água gelada. Nas ruas tranqüilas do bairro, Gabriel ensinou Marília e Flávio a andar de bicicleta: um presentão trazido pelo Papai Noel no Natal de 1955.

O último trecho da BR-3 feito pela Andrade Gutierrez ficou pronto em 1956. Pela primeira vez, a construtora fez também o trabalho de pavimentação, e não apenas a terraplenagem, como nos trabalhos anteriores, incluindo Salgado, Lagoa dos Ingleses e Itabirito, todos eles entregues apenas com cobertura de cascalho. Em pouco tempo o trajeto inteiro até Juiz de Fora foi concluído, ligando finalmente as duas capitais. A inauguração oficial aconteceria em 31 de janeiro de 1957, na mesma cerimônia em que o presidente Juscelino Kubitschek receberia o título de cidadão honorário de Belo Horizonte.

A ocasião foi registrada num discurso bastante inspirado — e não menos inspirador — que se estendia por oito páginas datilografadas. “Vim pela rodovia que durante tantos e tantos anos esperastes”, começava o presidente. “Cabe neste momento que eu próprio formule uma palavra de estranheza e mesmo de protesto contra o fato de só hoje poderem dispor a capital mineira e o Rio de Janeiro de uma ligação rodoviária correta, confortável, decente, digna das duas cidades, digna do nosso povo. (…) É de pasmar que só hoje a nossa BR-3 seja entregue ao trânsito.”

Seguiam-se algumas alfinetadas na falta de iniciativa política dos governos anteriores e uma breve explanação sobre as dificuldades normalmente interpostas aos interesses genuínos do povo — “prudência exagerada”, “cautelas demasiadas”, que obrigariam o governante a “arrastar papéis por todos os trâmites e escaninhos da mais envolvente e tirânica burocracia” — para, em seguida, Juscelino gabar-se de sua própria eficiência e resumir, num parágrafo, seu regozijo com a entrega da obra:

“Quero, povo da minha cidade de Belo Horizonte, confessar-vos sinceramente que tive no dia de hoje uma satisfação toda particular em entregar ao uso do tráfego a BR-3 pronta e acabada. É que prometi e cumpri o prometido, e não precisamente no prazo que eu próprio marquei para concluir os 235 quilômetros, que nos ligam a Juiz de Fora, mas antes mesmo do dia fixado pela minha impaciência, pela impaciência de reparar a injustiça que nos era feita, a nós mineiros, privados por tão longo período de uma autêntica rodovia.”

Dizem que eu disseminei na empresa o método “moita” de aprendizado. De operador a engenheiro, as pessoas costumam fazer segredo de suas habilidades no trabalho. Acham que, se os outros aprendem suas técnicas, perderão o valor, a exclusividade. Então a gente orientava o assistente a aprender apenas observando, sem ser percebido, como se ficasse numa moita. Tinha de ser discreto, não dar nenhum sinal de que estava aprendendo. Tem trabalhador que, se você pede para ensinar, é pior ainda: aí é que não ensina mesmo. Por isso também não podia ficar perguntando muito, para não gerar antipatia no instrutor. Eles logo aprendiam. Dirigir trator, por exemplo, é só reparar nos macetes. O objetivo não era fazer isso para substituir o funcionário mais velho, mas formar novas gerações para assumir a mesma tarefa em outros locais, em outras obras. A empresa crescia, e a gente sempre preferiu formar nossa equipe especializada a buscar no mercado.

A fúria desenvolvimentista de Juscelino havia marcado sua passagem pelo Palácio da Liberdade e seria intensificada na Presidência da República. Além de acelerar as obras na BR- 3, que já se arrastavam por longos anos antes de sua posse, outros grandes trunfos de seu mandato foram a viabilização da usina hidrelétrica de Furnas, cuja implantação seria iniciada em 1958, e, o maior de todos, a construção de Brasília, iniciada e concluída em quatro anos e meio, ainda em seu governo. A Andrade Gutierrez não participaria de nenhuma dessas outras duas obras. Empresas com experiência prévia em usinas, ainda uma lacuna no currículo da construtora, dividiram a obra na maior hidrelétrica de Minas Gerais. Já em Brasília, feita a toque de caixa por diversas empresas, entre as quais a Rabello e a Camargo Corrêa, a Andrade Gutierrez poderia ter atuado. Mas Gabriel, receoso com o excesso de política, preferiu nem tentar.

A obra, considerada por muitos um devaneio faraônico de Juscelino, era combatida todos os dias pelos políticos da oposição. Gabriel a considerava instável, insegura, imprevisível. Temia que, cedo ou tarde, os caciques da UDN conseguissem paralisar a obra na Novacap, de tanto contestá-la judicialmente, deixando todo mundo na mão, no maior prejuízo. Acabou concentrando esforços na BR-3 e, em seguida, em outra rodovia federal, ainda no governo JK: o trecho da BR-2 entre São Paulo e Curitiba, inaugurando a principal ligação do Sudeste com os Estados do Sul. Mais tarde, o trecho receberia o nome de Rodovia Régis Bittencourt — e a BR-2 seria rebatizada de BR-116, a mais extensa rodovia do país, ligando Fortaleza, no Ceará, à divisa com o Uruguai.

Com uma única pista, e quase sempre com apenas uma faixa em cada sentido (o primeiro trecho duplicado, de 30 quilômetros, só foi entregue nos anos 1980), a BR-3 logo se tornou uma das mais movimentadas do país. E inspiraria, mais de uma década depois de concluída, a música BR-3, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar.

Defendida por um cantor de cabeleira black power chamado Tony Tornado, que em breve daria início a uma sólida carreira como ator, a música deixou boquiaberto o público de 40 mil pessoas que lotou o Maracanãzinho, no Rio, na final do V Festival Internacional da Canção, em 1970. Na ocasião, Tony Tornado foi acompanhado pelos vocais com pegada soul do Trio Ternura. Sob urros e salvas de palmas, a canção arrebatou o primeiro lugar e, por muito tempo, fez ecoar nas rádios o lúgubre refrão:

A gente corre
Na BR-3
E a gente morre
Na BR-3

FOI DURANTE A CONSTRUÇÃO da BR-3 que, por força das circunstâncias, os sócios Gabriel e Flávio deixaram de caminhar lado a lado na condução das obras e na busca por contratos. A sociedade continuaria para sempre, e a relação entre os dois jamais sofreu abalos, mas as operações começaram a ser feitas de forma independente, cada qual administrando sua equipe e disputando suas concorrências.

É verdade que, desde 1952, os sócios já mantinham obras simultâneas e tomavam decisões de maneira autônoma nos trechos que administravam. Mas foi em 1956 que essa separação se tornou mais nítida, com a divisão das operações em duas estruturas paralelas. No total, a empresa havia contratado 60 quilômetros de estrada por fazer, entre Conselheiro Lafaiete e Barbacena. Era um trecho tão extenso, com um prazo tão curto, que os sócios optaram por concentrar esforços na obra. Dessa vez, trabalhariam ambos ali. A novidade foi que, embora atuassem na mesma estrada, Gabriel e Flávio preferiram se separar, reproduzindo em trajetos contíguos a mesma independência na operação com a qual haviam se habituado desde o início da década. Dividiram o trajeto ao meio e cada um ficou cuidando de um pedaço. Gabriel tocou a construção da estrada entre Conselheiro Lafaiete e Carandaí, enquanto Flávio pegou de Carandaí até Barbacena.

Além de estabelecer uma divisão geográfica entre os trechos, os sócios decidiram que cada um ficaria responsável por contratar seus operários e montar a logística com seus fornecedores. Embora a administração central continuasse existindo, com um único contador e um único departamento jurídico, cada sócio teria liberdade para montar sua equipe e fazer suas compras. O essencial era preservar a qualidade do produto. E obter lucro. Com isso, cada sócio poderia imprimir à sua operação um perfil de liderança, um método de gestão, uma maneira de lidar com os peões. A turma de Gabriel passou a ser chamada de divisão A, enquanto Flávio administrava a divisão B. Esse sistema foi mantido até a morte de Flávio, em 1984.

Os talentos e as manias de cada um logo contaminaram a forma de conduzir os trabalhos. Flávio era mais passional, afetivo, impulsivo. Gritava quando achava que tinha de gritar e em seguida fazia as pazes, convidando o funcionário para tomar cerveja. Gargalhava, contava piada, saía abraçado a um peão quando a ocasião favorecia. Gostava de subir no trator, andar na terra, sujar as botas, instruir pessoalmente cada operário e cada tratorista. Por isso, dispensava engenheiros. Fazia questão de supervisionar, ele mesmo, o avanço das tropas. Sua obsessão era construir estradas, pôr a mão na massa. Tinha ojeriza a burocracia e morria de medo de gastar mais tempo no escritório do que no canteiro. Em razão disso, delegava pouco e hesitava ao disputar novas concorrências, preocupado em dar um passo maior do que as pernas, que não lhe permitisse acompanhar a obra de perto como tanto gostava.

Éramos diferentes em tudo o que você possa imaginar. Ele era mais expansivo, falava alto, dizia que tinha sangue espanhol. Nas obras, queria fazer tudo. Eu sempre gostei de delegar, dividir tarefas. Por isso contratei engenheiros, um para cada obra, e já nos anos 1960 deixei de ir aos canteiros. Flávio não tinha engenheiro. Era ele quem tocava as obras. Fazia reuniões de equipe dentro do carro, porque em geral era ele com um peão e mais ninguém. Um dia, numa das primeiras obras que eu dirigi, ele chegou ao acampamento e encontrou uns caras trabalhando em folha de pagamento, outros copiando alguma coisa de engenharia, outros fichando o pessoal para trabalhar, cada setor alocado numa sala. Ele falou: “Aqui é o ministério das estradas?” Achou que era burocracia demais. Com ele, não tinha nada disso. E suas obras ficavam prontas direitinho, bem-feitas, caprichadas. Essa simplicidade dele permitia fazer preços mais baixos, o que agradava aos clientes. Outros davam importância ao porte e à organização da firma. A gente se completava.

Gabriel era o oposto. Gostava de reger a orquestra. Como um general aquartelado, riscava mapas, fazia cálculos, criava tabelas e observava estatísticas, sempre disposto a bolar estratégias de gabinete e a lançar mão de novos pelotões. À frente da divisão A, contratou engenheiros, delegou funções, desenhou organogramas e fez a equipe se multiplicar. No começo dos anos 1960, já havia se transformado num administrador de empresas, deixando as tarefas de engenheiro de obras nas mãos de seu pessoal. Em dez anos, o faturamento de seu grupo era três vezes maior do que o do grupo do sócio, o que permitia à empresa assumir desafios cada vez mais complexos.

Peões de trecho em 1960. O pessoal da divisão A, sob a batuta de Gabriel e Eduardo, foi a São Paulo fazer a Rodovia Castelo Branco

O primeiro engenheiro foi contratado por Gabriel justamente em 1956, durante os trabalhos entre Lafaiete e Carandaí. José Mário de Freitas tinha diploma de engenheiro agrimensor e havia trabalhado como secretário e assessor político de Maurício Andrade. Na exata semana em que Gabriel mandou chamá-lo, José Mário estava se casando. Nem bem trocou alianças, seguiu para Cristiano Otoni e se instalou no acampamento. Logo seriam contratados outros engenheiros, como Manoel Braga, o Manula — concunhado de Gabriel, casado com Edda, irmã de Vera –, e Júlio Ferreira Leite, responsável por implementar um sistema de custeio, criando planilhas que permitiram à divisão A equacionar todos os gastos que teria com produtos e serviços, desde o volume de diesel até o número de pneus de caminhão, incluindo a depreciação dos tratores e os gastos com alimentação.

Em 1960, Júlio assumiria a função de preparar as propostas que seriam apresentadas pela construtora nas concorrências abertas, valendo-se do que havia aprendido com o sistema de custeio. Ninguém melhor do que ele, naquele momento, poderia colocar todas as projeções na ponta do lápis e responder às duas perguntas que perseguem todo empreendedor na hora de compor um orçamento: Quanto vai custar tudo isso? E quanto eu posso cobrar para que o negócio seja lucrativo?

De experimental, a divisão entre os sócios virou definitiva. Após a conclusão da obra na BR-3, cada um foi para um lado, levando consigo sua equipe e sua filosofia. Gabriel foi para Vassouras, no interior fluminense; Flávio, que inicialmente também fora a Vassouras, seguiu para Manhuaçu, em Minas.

Os dois estilos — um adepto da estrutura mínima e o outro, de estruturas mais complexas, adequadas a obras maiores — agradavam a perfis diferentes de clientes, o que também se mostrou salutar para a empresa nas décadas seguintes. Gabriel percebeu logo. Segundo ele, alguns clientes preferem lidar com empresas menores, pelo menos na aparência, com as quais o contato parece mais próximo, diretamente com o dono, e que, por terem uma estrutura mais enxuta, podem cobrar menos. Outros, por realizarem obras maiores e mais complexas, preferem lidar com empresas maiores, com departamentos independentes e bem delimitados, e que transmitem uma sensação de grande corporação quando o cliente visita o escritório, com diretor disso, diretor daquilo.

Flávio não se acostumava com a estrutura implementada por Gabriel. Uma vez, fez uma visita ao canteiro do sócio e se surpreendeu ao notar que havia sido construída uma ala de escritórios, com três ou quatro salas, cada uma dedicada a uma atividade: departamento de pessoal, departamento de engenharia, almoxarifado…

— Aqui é o Ministério das Estradas? — ironizou.

Seu costume era outro. Nem para si mesmo Flávio costumava erguer escritório nos canteiros. Fazia reuniões dentro do carro. Para ser exato, quase não fazia reunião, uma vez que era ele o engenheiro responsável por todas as obras e tudo poderia ser resolvido conversando apenas com o encarregado. Bastava dar um giro com ele pela obra, ou tomar um café no refeitório. Sua condução, eficiente e econômica, permitia à empresa gastar pouco e, muitas vezes, até lucrar mais, embora esbarrasse na inviabilidade de se multiplicar e se desdobrar em um número maior de empreendimentos.

Em 1957, ao ganhar uma concorrência para construir um trecho da BR-116 em Quatro Barras, chegando a Curitiba, a AG tocava obras simultaneamente em três Estados: Minas, Rio de Janeiro e Paraná. Na década seguinte, entraria em São Paulo e subiria por Goiás até a região Norte, com obras em Rondônia e no Amazonas. Transformada numa corporação de alcance nacional, num desenho que impedia os dois sócios de percorrerem todos os canteiros com a devida assiduidade, a AG, especialmente a divisão A, passou a contar cada vez mais com seus diretores e engenheiros, transformando a empresa familiar numa organização complexa, pronta para adentrar o grupo das cinco maiores construtoras do país, o que aconteceria nos anos 1970.

LIBERDADE. Para as crianças, a vida no trecho era sinônimo de liberdade. Elas podiam andar descalças, como faziam na fazenda, e brincar na terra — bem diferente das temporadas que passavam nas casas dos avós, em Belo Horizonte. Ficar com os avós também era ótimo, mas viver no trecho era diferente, era sinônimo de aventura. Havia algo de épico em derrubar a mata, perfurar rochas, explodir pedreiras e inventar caminhos nunca antes percorridos.

Dentre os filhos de Gabriel, Flávio era o que mais se divertia. O pai o levava para todo lado e o convidava a trepar nos tratores, a assumir o volante, a brincar de peão. Flávio se sentia como um colonizador a se enveredar pelos campos desmatados, numa espécie de marcha para o Oeste. Olhar um vale, uma encosta, uma montanha inóspita, e imaginar que ali, em pouco mais de um ano, passaria uma estrada, estimulava a imaginação do menino e o deixava boquiaberto.

Ainda não havia a mesma preocupação com o meio ambiente. O conceito de sustentabilidade nem sequer existia, e, em geral, quando os trabalhadores chegavam a um canteiro, o eixo ao longo do qual a estrada passaria já tinha sido desmatado muito antes. A opção pelo automóvel, em detrimento do transporte ferroviário, sacramentara em toda uma geração o fascínio por carros — inaugurado com o fordismo no início do século. A compulsão por desbravar a selva para a construção de rodovias e cidades parecia absolutamente normal. Derrubar as árvores não significava nada; construir estradas era construir um país.

O conceito de sustentabilidade só seria popularizado dali a meio século. Ecologia, sua precursora, é invenção dos anos 1980, tendo se difundido no Brasil apenas após a Eco-92, um encontro com delegados de 172 países realizado no Rio de Janeiro e cujo nome oficial era II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano (a primeira acontecera 20 anos antes, em Estocolmo). Em meados dos anos 1950, o mundo vivia numa Era pré-Funai, pré-Ibama e pré-Greenpeace. Nenhum movimento organizado insurgia contra as máquinas que, dotadas do ímpeto dos heróis, devoravam montanhas em nome da modernidade.

De 1952 em diante, Vera e eu passamos diversas temporadas em obras, e vínhamos muito para as casas dos pais dela. Eles moravam numa casa alugada, mas grande, com espaço para todo mundo. Em 1956–57, resolvemos nos mudar para Belo Horizonte, porque Marília ia fazer 7 anos e precisaria estudar, e eu comprei um lote na Rua Eduardo Porto, na Cidade Jardim. Contratamos arquiteto, mas foi Vera que assumiu a tarefa de construir a casa. Todas as casas que fizemos ao longo da vida, na cidade ou nas fazendas, foi ela quem coordenou. Nós dividíamos as tarefas. Ela assumia tudo que dizia respeito às crianças e à construção de casas. E eu ficava com as obras da empresa.

Os meninos gostavam mesmo era de ver as máquinas cortando os morros. A cada começo de terraplenagem, Gabriel levava os filhos de jipe até o local da primeira estaca e mostrava o horizonte.

— Aqui vai passar uma estrada.

— Como assim, papai?

— Tá vendo aquele descampado? Ali na frente, depois da colina, seguindo a direção daquele curral abandonado? Então: a estrada vai passar por ali.

— Uau! — os meninos salivavam, imaginando o volume de terra que as retroescavadeiras teriam de movimentar, bem como a quantidade de brita e areia a ser transportado.

Passados seis meses, os morros estavam cortados, um caminho havia sido criado até a clareira depois do curral, e o chão, devidamente compactado, estava pronto para a etapa de pavimentação.

Na hora das brincadeiras, compartilhadas com as outras crianças do trecho — filhas do topógrafo, do encarregado ou do chefe da mecânica –, a estrada servia de inspiração. Com pedaços de madeira, cola, papel e barbante, fazia-se um caminhão. Em seguida, surgia um trator. Pedrinhas, areia, folhas secas e pronto: criava-se o caminho. As crianças brincavam de consertar veículos, dinamitar penhascos, abrir estradas. Ou então, rodavam pião, batiam finca, estalavam bolinhas de gude. Gabriel, às vezes, trazia fogos de artifício. Delícia maior era lançar buscapé e estourar traque, cabeça de nego, rojão. Vera achava a vida no trecho um grande barato. Outras mulheres de Belo Horizonte, com idade compatível e maridos da mesma estirpe (médicos, advogados, engenheiros prediais), eram todas donas de casa, quase sempre enfurnadas na cozinha, entretidas com as rádio-novelas e com o ponto do crochê, à espera do domingo para vestir roupa de missa e sair às ruas. Vera não. Vera viajava.

Acompanhava seu marido a campo, manuseava teodolito, ajudava a desatolar jipes, metia-se em toda sorte de aventuras. Dormindo em casas de madeira e tomando banho de bacia, ela, acima de tudo, acreditava que a empresa em pouco tempo deslancharia, devolvendo em dobro cada quinhão de generosidade e empenho. Uma vez por mês, pedia para ir a Belo Horizonte. Tinha saudade dos pais, das irmãs. E aproveitava para comprar roupas para os filhos, ir ao cabeleireiro. Gabriel também precisava se reunir com Flávio, colocar o assunto em dia, ajustar cronogramas. Ficavam três ou quatro dias na capital e voltavam para a obra.

Vez ou outra, acontecia algum acidente, alguma fatalidade no canteiro, e a comoção era geral. Numa ocasião, um caminhão derrapou no aterro, argiloso por conta da chuva, e tombou no precipício, matando o condutor. Noutra vez, um peão concentrado na lida, usando tampões nos ouvidos, não percebeu a aproximação de um trator e foi atropelado.

Flávio reparava em tudo. Depois, ao encontrar os primos em Belo Horizonte, contava longas histórias, com os detalhes mais sórdidos. Como fazer um menino de cinco anos varrer da memória o impacto da notícia de que uma explosão na pedreira arremessara uma rocha de dez quilos sobre a cabeça de um operário, a 50 metros dali? Ou que alguém, em outra ocasião, perdera o equilíbrio e caíra dentro do britador?

A época da vida nos trechos das obras durou até 1958, quando a família, então com quatro filhos, se fixou na casa modernista, projetada por Sílvio de Vasconcelos e construída por Vera, na rua Eduardo Porto (acima, à esquerda). Mais três filhos nasceriam nos sete anos seguintes, completando a turma. Acima, em sentido horário: Flávio, Luciana no colo de Marília, Laura, Heloísa, Álvaro e Paulo.

A fase heróica da vida no trecho se estendeu até o final de 1957, quando a família, com quatro crianças, se mudou para a Rua Eduardo Porto, em Belo Horizonte. Era uma casa grande, em estilo modernista, com ambientes amplos e uma coluna em V. Fora projetada por Sílvio de Vasconcelos, arquiteto em ascensão, que, aos 40 anos e já professor na faculdade de arquitetura da UFMG, era apontado como precursor do modernismo brasileiro. Foi Vera quem o contratou, entusiasmada com os elogios que ouvira a seu respeito. A decoração ficou toda ela a cargo do também modernista Joaquim Tenreiro. Sem quintal nem pomar — elementos raramente incorporados às pranchetas dos arquitetos afinados com o movimento dominante nos anos 1950 –, a contemporaneidade da casa contrastava com o aspecto ainda rústico da rua, com calçamento de pé de moleque, por onde passavam, diariamente, vacas, bois, cavalos, burros e jumentos. A família viveria naquela casa até 1980.

Fixar-se em Belo Horizonte tornara-se uma necessidade na medida em que as crianças adentravam a idade escolar. Já no começo de 1957, com a casa ainda em construção, Marília começara o curso primário em uma escola particular, primeira etapa do Ensino Fundamental, e, aos 6 anos, fora morar com os avós e os tios solteiros — entre eles sua madrinha Elza Furtado, a Dinha. Os três irmãos menores — Flávio, Laura e Heloísa — continuaram no trecho por mais um ano, acompanhando os pais ao canteiro de Vassouras, no interior do Rio de Janeiro.

Ali, a divisão A assumiu a tarefa de asfaltar um trecho de rodovia, entre os municípios de Volta Redonda e Três Rios, que fora construído anos antes pela turma de Flávio. Era a primeira vez que a Andrade Gutierrez assinava um contrato exclusivamente para pavimentação. Também pela primeira vez a família de Gabriel ia morar fora de Minas Gerais. Prevendo um longo período de permanência, e sabendo da dificuldade que teriam para ir a Belo Horizonte com frequência, Gabriel optou novamente por morar na cidade e alugou uma casa isolada, no subúrbio. Marília a visitaria por apenas 15 dias, nas férias de julho. Meses depois, a casa da Eduardo Porto ficou pronta. A mudança foi feita antes do Natal, reunindo novamente todos os filhos.

A partir daí, Gabriel seguiria sozinho para as obras seguintes. Em geral, passava dois terços do tempo no trecho. A cada sete ou dez dias, retornava a Belo Horizonte para passar três ou quatro dias em casa. De vez em quando, Vera o acompanhava à obra. Nessas ocasiões, Dinha transferia-se para a casa da Eduardo Porto e tomava conta das crianças. Foi assim, por exemplo, durante a obra da BR-116 em Quatro Barras, perto de Curitiba, entre 1957 e 1960. Vera e os filhos chegaram a passar semanas nas obras, mas nunca mais voltaram a morar em nenhuma. Quando batia saudade, Marília ia até a estante em que o pai guardava uma pequena coleção de chapéus e os cheirava, tentando sentir sua presença.

Vera fazia troça dos longos períodos em que permanecia sem Gabriel.

— Sou viúva de marido vivo — respondia a quem lhe perguntava sobre a família ou o marido.

Às vezes, passava o fim de semana inteiro em casa, com os filhos, lendo ou assistindo a filmes em 16 mm que ia buscar nas locadoras perto da estação. Outras vezes, desfilava pelas ruas de Belo Horizonte na Chrysler rabo de peixe que Gabriel comprara do então deputado Benedito Valadares — um carrão importado com cinco metros de comprimento que arrancava aplausos quando Vera fazia baliza para estacionar. Quando as crianças iam junto, havia disputa para saber quem sentaria no banco da frente e quem ocuparia cada janela atrás. Quem gritasse primeiro onde preferia sentar garantiria o lugar: “Frente, beirada! Trás, beirada lado direito! Ida, volta e meia!” Também havia rodízio de filhos para dividir a cama com Vera na ausência de Gabriel. Cada noite era um que ocupava o lugar do pai.

Na década seguinte, Gabriel abdicaria definitivamente da vida nos acampamentos, voltando-se quase que exclusivamente para as atividades de escritório. Se, em 1960, sua equipe já era grande o suficiente para manter ao menos um engenheiro em cada obra, a partir de 1964 ele contaria com o auxílio de um diretor adjunto, que dali a dois anos viraria diretor principal, substituindo o próprio Gabriel na linha de frente, apto a comandar os trabalhos da empresa no período mais intenso e lucrativo de sua história: os anos de milagre econômico e regime militar.

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Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi