Inaugurada em 1984, Itaipu foi festejada como uma das "sete obras do século XX" pela Sociedade Americana de Engenharia Civil. Até 2014, nenhuma usinasuperaria o volume de energia produzida por ela

7 | O canto da pedra

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
23 min readDec 3, 2015

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A CARNE FUMEGAVA na travessa no instante em que Paulinho se sentou, sob o olhar impaciente da mãe. Os outros irmãos já estavam à mesa. À noite, quando Gabriel chegava da construtora, era preciso se apressar. Os meninos deixavam de lado a brincadeira ou os cadernos e se acomodavam rapidamente em seus lugares. Era só o tempo de servir os pratos e o jantar tinha início. Sistemático.

Bife, batata frita, arroz com feijão, couve manteiga, uma tigelinha de angu. Alface e tomate. Comida sem rodeios, com ingredientes que poderiam ser encontrados em qualquer outra casa de Belo Horizonte. E discreta, sem esbanjamentos. Ali era assim: a baixela de inox quase sempre exibia mais prestígio do que seu trivial conteúdo.

Sentado invariavelmente ao lado de Vera, Gabriel tomou de um prato e, sem dizer palavra, começou a se servir. Calado, abstraía o zunido dos filhos adolescentes, as conversas sobrepostas e um toque de telefone ao fundo, como se mendigasse um instante de silêncio na hora da refeição. Sem abandonar por completo os assuntos da construtora, apoderou-se de seu quinhão do jantar e, com o prato arrumado, nunca cheio, buscou o saleiro, ouvindo ainda o último sonido do telefone. Na cozinha, alguém finalmente atendeu.

Vera passou-lhe o azeite, ciente das turbulências na empresa. O mau humor de Gabriel vinha se arrastando desde a semana anterior. Alvinho ia dizer alguma coisa, mas desistiu, percebendo o ar grave do pai. Luciana, que ainda não completara 10 anos, apenas comia.

O pai ainda não dera a primeira garfada quando uma funcionária veio avisar que a chamada era para ele. Alguém da construtora o procurava.

Gabriel levantou-se e, antes mesmo de atender a ligação, jogou o prato no chão. Crash!

Bife, batata, angu, tudo se espalhou pelo piso, entre fragmentos de porcelana e cacos de serenidade. Os filhos arregalaram os olhos. Jamais haviam presenciado rompante parecido. Nem mesmo no dia em que mandara Marília calar a boca ele parecia tão alterado. Com a paciência em frangalhos, Gabriel saiu pisando duro e se fechou no escritório para ter aquela conversa em particular. Deu o jantar por encerrado.

— A coisa não está boa; seu pai está nervoso — Vera explicou, sem nada explicar, recompondo-se para ir ter com o marido. — Comam depressa. E sem bagunça.

Na mesa, brotavam cochichos. E o som dos talheres riscando a louça, enquanto uma funcionária cuidava do tapete.

Dias difíceis aqueles. Gabriel não fazia outra coisa senão matutar estratégias para a Andrade Gutierrez. O simples ato de se alimentar parecia-lhe um despropósito, um luxo. Não havia tempo para isso. Nem cabeça.

A cabeça pegava fogo, como se atingida pelas mesmas chamas que, meses antes, em 1º de fevereiro, destruíram o Edifício Joelma, em São Paulo, matando 191 pessoas. A próxima vítima poderia ser a construtora que ele fundara 25 anos antes com o irmão e o colega. Mais do que nunca, era preciso zelar por ela: por sua receita e sua honra.

— Maldito Stroessner, ditadorzinho sem-vergonha. — Gabriel dizia.

Agora que tudo parecia no caminho certo, justamente quando a AG conseguira desbancar pela primeira vez as gigantes numa importante concorrência no setor de barragens, o dono da Camargo Corrêa tinha de ir a Assunção fazer lobby com Alfredo Stroessner, o presidente paraguaio?

Também, era de se esperar. Aqueles dois vinham se afagando havia um bom tempo. O último boato dava conta de que Camargo prometera instalar uma fábrica de cimento no país vizinho caso sua empresa fosse escolhida para construir a usina. E o maior interesse do Paraguai naquela hidrelétrica, que lhe compensaria as terras perdidas para o reservatório, era exatamente aproveitar a oportunidade para se desenvolver. Sem falar que a presença de uma fábrica de cimento em seu território, e perto do canteiro, permitiria a Stroessner vender grandes quantidades de material para a barragem. A energia a ser produzida ali pouco interessava: não havia demanda para tantos watts no Paraguai, um país com 70% da área de Minas Gerais.

Gabriel vivia um impasse, uma sinuca de bico. Como lidar com ela? A única certeza que ele tinha, reafirmada como quem faz um pacto consigo mesmo no exato momento em que o prato se estraçalhou no chão da sala de jantar, é que a AG não iria deixar barato. Ninguém tiraria a empresa daquela obra. Eles iriam até Geisel, se fosse preciso. Iriam até Stroessner. Se a melhor proposta para o desvio do Rio Paraná tinha sido apresentada pela AG, como fora explicitado publicamente na cerimônia de abertura dos envelopes, ela certamente faria a obra. Isso ninguém mudaria.

DESDE A CONCEPÇÃO, ITAIPU estava destinada a ser a obra de engenharia mais extraordinária da América Latina em todo o século XX. A aventura começara no ano anterior, em 25 de abril de 1973, com a assinatura do Tratado de Itaipu, instrumento jurídico que instituiu a empresa Itaipu Binacional e lançou os pilares para a construção da maior hidrelétrica do mundo.

De origem tupi, a palavra Itaipu significa “pedra que canta”. Antes de virar sinônimo de energia, nomeava uma ilha do Rio Paraná, localizada na divisa entre o Brasil e o Paraguai, abaixo do Salto de Sete Quedas e acima da confluência com o Rio Iguaçu, onde ficam as cataratas (170 quilômetros a jusante do salto e 17 quilômetros a montante da foz, como preferem os geógrafos e os engenheiros hidráulicos). No trajeto de 190 quilômetros entre Sete Quedas e as cataratas, as águas do Paraná acusavam um desnível natural de 120 metros, confinadas na parte inicial por altas paredes de basalto em ambas as margens, o que lhes dava velocidade e produzia o canto da pedra. Ode ou lamento, seu canto anunciava o potencial energético que, cedo ou tarde, viria a ser explorado.

Embora os primeiros debates sobre um possível aproveitamento hidrelétrico nas proximidades de Sete Quedas datem de 1908, foi apenas no breve mandato de Jânio Quadros, em 1961, que o assunto entrou definitivamente na agenda do governo federal. E com prioridade absoluta. Conta-se que o presidente, logo após tomar posse em Brasília, decidira criar uma marca para seu governo que superasse, no campo energético, o impacto provocado por Juscelino Kubitschek com a concepção e o início das obras da hidrelétrica de Furnas. A primeira usina de grande porte do Brasil, instalada no Oeste de Minas, fora iniciada no governo de JK e seria inaugurada em 1963. Com a comparação em mente, Jânio teria aproveitado uma reunião com assessores para lançar o desafio:

— Qual o troço mais importante que se pode fazer no Brasil em matéria de hidrelétrica?

Os assessores se entreolharam, desconfiados. Eles sabiam que Jânio, pródigo em utilizar, na intimidade, um linguajar bem menos airoso do que o adotado em público, não estava brincando, o que impeliu um deles a responder.

— A maior cachoeira do país é Sete Quedas. Daria para fazer uma das maiores usinas do mundo ali, se não a maior.

— Então, pronto — o presidente teria decidido, dirigindo-se à secretária. — Escreve aí um bilhete: “Ministro, providencie imediatamente o início das obras da Usina de Sete Quedas”. Manda entregar ainda hoje para o Agripino.

João Agripino era o titular do Ministério das Minas e Energia. O engenheiro John Cotrim, então presidente de Furnas Centrais Elétricas, veria o tal bilhete dias depois, nas mãos do próprio ministro, ao ser convocado às pressas para compor um grupo com a missão de providenciar estudos sobre uma possível usina na região. O rompante de Jânio causara pânico no ministério, uma vez que não existia, até aquele momento, nada que pudesse embasar o início imediato das obras.

Além disso, a encomenda parecia precipitada. O potencial das duas hidrelétricas então em construção, Três Marias e Furnas, ambas em Minas Gerais, equacionaria a demanda por energia no Centro-Sul pelas próximas duas décadas. Não havia nenhum cabimento em começar mais uma hidrelétrica. Mesmo assim, como ordens são ordens, um grupo de trabalho foi criado para reunir informações sobre o assunto. Os estudos ainda eram incipientes quando Jânio renunciou, em agosto do mesmo ano.

O episódio virou lenda, ventilado nos jornais da época e narrado em livro anos depois, pelo próprio John Cotrim, que em 1974 deixaria Furnas para assumir a diretoria técnica de Itaipu. Mas foi o suficiente para que o ministro que sucedeu Agripino, o então deputado Gabriel Passos, também mineiro e cunhado de JK, decidisse dar continuidade aos estudos. Passos morreria logo depois, em junho de 1962, não sem antes encomendar uma pesquisa minuciosa ao escritório de engenharia de Octávio Marcondes Ferraz. Foi com base nesses estudos que nasceria, enfim, o projeto executivo de Itaipu.

No governo Castelo Branco, Marcondes Ferraz, ex-presidente da Centrais Hidrelétricas do São Francisco (Chesf), foi nomeado presidente da Eletrobrás e relegou os estudos sobre Sete Quedas a segundo plano. Na segunda metade dos anos 1960, no entanto, o aproveitamento energético do trecho de Itaipu virou pauta do Itamarati, a quem caberia a tarefa de convencer o Paraguai. Puxa daqui, estica de lá, o tratado entre os dois países foi finalmente assinado, em 1973, definindo a localização exata da barragem, a extensão a ser inundada em cada país e a divisão paritária de direitos e deveres. Além de terem a mesma participação acionária e partilharem uma gestão conduzida por dois diretores com o mesmo poder, um de cada país, Paraguai e Brasil receberiam a mesma quantidade de watts após o início da operação, a despeito da diferença abissal na demanda — o que motivaria a compra sistemática de energia paraguaia pelo governo brasileiro, a preços de custo, desde a inauguração.

Para dar início à construção da usina, o primeiro passo seria desviar o Rio Paraná, abrindo espaço para a edificação da barragem principal, na qual seriam instaladas as turbinas. E foi para executar esse desvio que o governo abriu a primeira concorrência de Itaipu, vencida justamente pela Andrade Gutierrez, em 1974. Na tarde em que as propostas foram abertas e apresentadas, concluindo-se pela vitória da AG, teve até champanhe na sede da companhia — agora um prédio que ocupava um quarteirão inteiro no número 484 da Rua dos Pampas, no Prado.

A AG apresentou o menor preço, seguida pela Camargo Corrêa, em segundo lugar, e por outras três construtoras, a CBPO, a Mendes Júnior e a Cetenco. Todas as quatro gozavam de mais prestígio e tinham mais estrutura do que a AG na ocasião. Três eram paulistas, tinham sido fundadas na década de 1930 e dominavam a construção civil em São Paulo. Em comum, tinham o fato de já terem feito pelo menos uma barragem importante, para a Light ou para a Cesp, a empresa paulista de energia.

A CBPO, Companhia Brasileira de Projetos e Obras, era comandada pelo veterano engenheiro Oscar Americano. Nos anos 1980, seria incorporada pela baiana Odebrecht. A Cetenco, presidida por Eduardo Celestino Rodrigues, também presidente do Instituto de Engenharia, tinha sido uma das empreiteiras responsáveis por erguer o Aeroporto de Congonhas, no final da década de 1950, além de participar da construção do Túnel Rebouças, no Rio de Janeiro, da eclusa de Barra Bonita (SP), e das hidrelétricas do Funil (RJ) e de Ibitinga (SP).

Completava a trinca de paulistas a Camargo Corrêa, de Sebastião Camargo, então a maior empreiteira do Brasil, com atuação em setores tão diversos quanto construção civil, pavimentação de estradas, engenharia rodoviária e ferroviária, além de produção de fios, cimento e trigo, entre outros ramos. Fizera obras em Brasília e, no setor barrageiro, construíra o lago Paranoá (DF) e as usinas de Euclides da Cunha, Jupiá e Ilha Solteira, todas em São Paulo.

De Minas Gerais vinham a AG e a Mendes Júnior. A empresa comandada por Murillo Mendes ganhara destaque no cenário barrageiro ao ser escolhida, em 1957, para liderar a construção de Furnas, até então a maior hidrelétrica do país. Contratada por Juscelino Kubitschek, desenvolvera laços importantes com o pessoal da Cemig, a companhia energética mineira, e adquirira know how em obras de geração de energia. Num espaço de dez anos, construíra as usinas de Cachoeira Dourada (MG/GO), Rio da Casca III (MT), Jaguara (MG/ SP), Boa Esperança (PI) e Santa Isabel, em Cochabamba, na Bolívia.

Disputando com todas essas empresas, causou surpresa a vitória da AG na concorrência para o desvio do Rio Paraná. Mais nova do que as demais, a construtora havia galgado estágios importantes em abertura e pavimentação de estradas, mas ainda não tinha tradição em barragens. Desde a década anterior, fincara os pés — e as escavadeiras — no cobiçado mercado paulista, construindo um trecho da Castelo Branco, até então a rodovia mais moderna do Brasil. Também vinha acumulando obras e experiência na região Norte, desde a construção da Manaus-Porto Velho, concluída no ano anterior. Mas ainda era, essencialmente, uma empresa de engenharia rodoviária.

Os órgãos que contratavam as obras de construção de barragens exigiam um atestado que comprovasse que a empresa já tinha feito alguma obra hidráulica com sucesso. Então, eu consegui um atestado com a Samigue, nossa indústria de laticínios, dizendo que tínhamos feito lá uma barragem, um canal e uma usina que permaneciam funcionando 100%. Nós levamos isso à Petrobras e ela nos convidou para fazer uma barragem aqui em Ibirité, na refinaria de Gabriel Passos. Era uma barragem para acumular água e abastecer a refinaria de petróleo, tanto para a refrigeração quanto para o consumo de água em geral. Fizemos essa obra e passamos a ter gabarito para ser contratados para qualquer obra, inclusive foi o que nos permitiu entrar na construção de Itaipu. Quando apresentei a proposta de Itaipu, a concorrência ferveu: “Não é possível, uma firminha dessas!” Tanto que quiseram anular a concorrência.

A percepção de que seria preciso entrar com toda força no setor de barragens mobilizou a diretoria da AG no início da década de 1970. Não disputar contratos para a construção de hidrelétricas significava, naquele momento, reconhecer que se estava num estágio menos evoluído do que as concorrentes. Roberto, sócio e irmão mais velho de Gabriel, dizia que engenheiros rodoviários e engenheiros de hidrelétrica eram como água e óleo: não se misturavam. No imaginário dos empreiteiros, barragens requeriam mais experiência, e um zelo nos cálculos e na execução muito maior do que o demandado pelas atividades de terraplenagem ou pavimentação de rodovias. Um vazamento numa barragem poderia causar problemas seríssimos. Um rompimento ganharia contornos de catástrofe. Esse desnível entre os dois tipos de empresa inspirava certa arrogância dos barrageiros em relação aos engenheiros que se limitavam a fazer estradas, pontes ou pistas de pouso. Eram duas castas distintas — e Gabriel ainda não pertencia à casta superior.

Empenhada em galgar espaço no grupo de elite das empreiteiras, a AG cumprira uma maratona de desafios desde a década anterior, seguindo o mesmo espírito estratégico adotado na conquista da Amazônia. Ainda em 1964, à procura de uma obra em barragem que lhe incrementasse o currículo e permitisse disputar projetos mais importantes, a AG vencera a concorrência para construir a barragem de Ibirité, uma obra modesta, feita para formar um pequeno reservatório destinado ao abastecimento de água de uma refinaria da Petrobras, mais tarde batizada de Gabriel Passos (homenagem àquele ministro de Minas e Energia que, no governo de João Goulart, encomendara o projeto executivo para a construção de Itaipu).

Embora pequena, Ibirité continha todos os serviços de uma barragem de hidrelétrica. E a empresa vencedora faria toda a parte de perfuração e concreto, embora o contrato se resumisse à barragem, sem adentrar nas especificidades das instalações. Para vencer a concorrência e fechar contrato com a Petrobras, no entanto, a AG precisaria comprovar experiência anterior em construção de barragem. O que foi feito? Gabriel lembrou-se do canal que construíra 15 anos antes, logo após seu casamento, para desviar águas do Rio São Miguel a fim de construir uma pequena usina hidrelétrica para abastecer a planta industrial da SaMiGue. A obra, bem sucedida, incluía uma barragem. Fora conduzida pelos irmãos Andrade, mas sem emissão de fatura. Mesmo assim, ela haveria de servir.

Quem assumiu a tarefa de obter um atestado foi o então diretor de obras Eduardo Andrade. Para confirmar a autoria da hidrelétrica na São Miguel, foi até seus arquivos, separou uns papéis envelhecidos, pinçados de correspondências antigas, datilografou um atestado e o levou para que Adolfo Nogueira, que tinha sido gerente da SaMiGue, o assinasse. Graças ao documento, a empresa foi autorizada a fazer Ibirité, e não desperdiçou a oportunidade: concluiu a obra, gabaritou-se para disputar outras barragens e alinhavou bons contatos no setor promovendo um congresso em Belo Horizonte durante a execução dos trabalhos.

O degrau seguinte foi construir Salto Osório, uma usina bem maior, com uma barragem tamanho família. Ali, a AG entrou consorciada com a Metropolitana, empresa que fizera uma hidrelétrica no Rio Grande do Sul alguns anos antes. Enquanto os gaúchos cuidavam das obras em concreto, a AG fez o resto: escavação de rocha, escavação e tratamento das fundações, desvio do rio, túneis, galerias, a ensecadeira e o maciço da barragem. Durante a construção, a Metropolitana faliu, obrigando a AG a concluir os trabalhos sozinha.

Foi na última etapa de Salto Osório que surgiu a concorrência para a maior hidrelétrica do mundo. Eduardo não hesitou em levar técnicos de Itaipu para visitar Salto Osório. Mostrou detalhes da escavação, exibiu tecnologias e novidades, até convencê-los de que a AG tinha potencial para fazer o desvio do Rio Paraná. No final, a empresa arrematou a concorrência ao cravar o menor preço.

A barragem de Ibirité, na refinaria de Gabriel Passos, foi um dos degraus percorridos pela AG, em meados dos anos 1960, para se habilitar a fazer o desvio do Rio Paraná para a construção de Itaipu.

O menor preço foi possível em razão de uma jogada técnica. Parte da escavação estava prevista para ser feita como obra submersa, o que custaria cinco vezes mais do que uma escavação a seco. O pulo do gato dos engenheiros da AG foi conceber uma forma de isolar o trecho, permitindo que quase todo ele fosse feito a céu aberto. Como a remuneração era definida por empreitada, e não pelo método empregado, a AG receberia o valor de uma obra subaquática para fazer uma obra a seco, o que justificava a redução no preço. O que nenhum diretor ou técnico da AG imaginava era que sua vitória seria contestada, atiçando uma disputa digna de desencadear uma crise internacional.

CONTA-SE QUE, após a abertura dos envelopes, Stroessner foi bem direto ao interpelar a diretoria brasileira de Itaipu:

— Nada disso — disse o presidente paraguaio. — Aqui a nossa palavra vale tanto quanto a do governo brasileiro e, na minha opinião, quem venceu foi a Camargo Corrêa.

— Mas como? — houve quem tentasse argumentar. — A melhor proposta é a da Andrade Gutierrez.

— Para vocês, pode ser. Para o Paraguai, a melhor proposta é a da Camargo.

O ditador justificava sua decisão agarrando-se à proporção de moedas prevista em cada proposta. Pelo edital, as companhias eram obrigadas a especificar uma porcentagem do orçamento a ser recebida em guaranis e outra, em cruzeiros. Na proposta feita pela AG, a cota em moeda paraguaia era menor do que a cota prevista pela empresa paulista, embora em nenhuma delas ultrapassasse 20% do valor. O argumento foi rechaçado pelos mineiros, uma vez que o câmbio era liberado no Paraguai e qualquer pessoa poderia converter as moedas sem perda. Ainda assim, Stroessner serviu-se disso para argumentar que a proposta da Camargo Corrêa era a mais vantajosa.

— Ou o Sebastião constrói, ou não vai ter Itaipu — teria decretado.

Nos bastidores, a rádio-peão ventilava outra justificativa para a imposição: lobby. Além de gozar da intimidade do ditador paraguaio, com quem frequentava pescarias, Sebastião Camargo teria prometido mundos e fundos a Stroessner. Quando a notícia chegou a Belo Horizonte, não demorou dois dias para que os diretores da AG tomassem um jatinho rumo a Assunção. A bordo, os três sócios e Eduardo. Também se juntou ao grupo um ex-adido da embaixada brasileira na capital paraguaia, com patente militar, que conhecia a cultura e a economia do país vizinho o suficiente para ajudar os engenheiros a discutir o tema com base em argumentos políticos.

Chegando ao hotel, perto do palácio, deram de cara com o próprio Sebastião Camargo, que já estava aquartelado.

— Ô, Gutierrão! — saudou, um tanto desconcertado, o presidente da Camargo Corrêa, indo cumprimentar o sócio de Gabriel, com quem nunca tivera essa intimidade toda.

No dia seguinte, a comitiva foi recebida por um assessor do presidente e, papo vai, papo vem, não houve jeito de desfazer o impasse.

No Brasil, o clima esquentava. A direção da AG sentia que os diretores das outras duas empresas paulistas, a Cetenco e a CBPO, inclinavam-se a apoiar a Camargo Corrêa, simpáticos à ideia de influenciar Itaipu com gente ligada à Cesp, a “maneira paulista” de fazer usinas. Por outro lado, vinham de Minas os principais engenheiros que, formados na cultura da Cemig, implementaram a hidrelétrica de Furnas e, agora, começavam a ocupar os principais cargos na Itaipu Binacional. O regionalismo se misturava à economia e à gestão para transformar paulistas e mineiros em adversários.

Fomos ao Paraguai falar com o Stroessner. A AG tinha ganho a concorrência para fazer o desvio do Rio Paraná, e o Sebastião Camargo, da Camargo Corrêa, fez lobby em Brasília para anularem nossa proposta. Aí nós argumentamos e acabamos indo para Assunción. O Paraguai era sócio do Brasil. Chegando lá, à noite, tinha um hotelzinho perto do palácio, e, logo na porta do hotel, ouvimos um homem nos cumprimentar: “Ô, Gutierrão!”. Assim, na maior intimidade., de brincadeira com o Flávio. Era o Sebastião Camargo, que já estava lá, fazendo lobby com o ditador.

Foi com esse esboço de conspiração em mente que a turma da AG recorreu finalmente a Geisel, levando o argumento de que atender o pedido de Stroessner afrontava a soberania brasileira e, mais do que isso, permitiria a longo prazo que o governo paraguaio mandasse e desmandasse na obra. Geisel tomou conhecimento da polêmica, pensou um pouco e propôs uma saída típica de governos autoritários e centralizadores.

— Querem saber, qualquer concorrência que se faça para as próximas etapas de Itaipu será vencida por uma dessas cinco empresas — ele disse. — Então, vamos pegar essas cinco e contratar a obra inteira com elas logo de uma vez. Assim a gente se livra de ficar fazendo concorrência picada, e todas ficam felizes.

Em outras palavras, o presidente decretara a reforma agrária no canteiro.

Houve quem chiasse, principalmente na AG.

— É um absurdo, uma humilhação — reclamava o filho de espanhóis Flávio Gutierrez, disposto a botar a boca no trombone. — Onde já se viu? A gente ganha a concorrência e agora querem nos enfiar o Camargo e os outros três goela abaixo? A gente tem que botar no pau, denunciar a maracutaia, brigar pelos 100%.

Gabriel ponderava:

— É melhor ser pragmático. Brigar não vai levar a gente a lugar algum. Além disso, 100% do desvio do rio é menos lucrativo e menos estratégico do que 20% da obra inteira. Imagina a experiência que a AG vai ganhar trabalhando junto com esses caras, fazendo barragem, concretagem, perfuração, todo tipo de serviço que se faz numa usina.

Roberto, que normalmente permanecia alheio às disputas e se aproveitava da diferença de 12 anos em relação aos outros sócios para desempatar as discussões, concordou com Gabriel. Seguindo a velha máxima de dar um passo atrás para avançar dois passos à frente, a AG abriu mão da exclusividade no desvio do rio e adentrou o consórcio que faria, ao longo dos oito anos seguintes, a maior hidrelétrica do mundo. Entre berros e manobras, nascia o primeiro megaconsórcio da história da engenharia brasileira, a Unicon (União das Construtoras Ltda.), reunindo as cinco gigantes da construção civil.

— Um surubão — definiu Murillo Mendes. Os técnicos preferiam chamar de “arrumação”.

Stroessner teve de ceder. Ou melhor: contemporizar. Se havia algum fundamento nos boatos de favorecimento da Camargo Corrêa, pelo menos a empresa de Sebastião estaria na obra. Mas, para não ficar por baixo, o ditador impôs uma condição: se era para fazer um consórcio, empresas paraguaias não ficariam de fora. Determinou, assim, a criação de outro consórcio, o Conempa (Consorcio de Empresas Constructoras Paraguayas), formado por seis companhias do país vizinho, totalizando 11 companhias contratadas por Itaipu. Diferentemente dos consórcios rodoviários convencionais, em que cada empresa constrói um trecho da estrada, na usina o consórcio foi integral: todas atuaram em todos os setores, distribuindo entre si os cargos, as funções, os homens e as horas de trabalho. Embora com uma empresa a mais do que a Unicon, o paraguaio Conempa estava num patamar de especialização inferior, de modo que sua atuação seria mais modesta, restrita a tarefas mais elementares.

O contrato de constituição da inesperada sociedade foi firmado em Foz do Iguaçu, em 6 de outubro de 1975, mesmo dia em que se assinou o contrato para o início das obras. Dois argumentos serviam para justificar o consórcio perante a opinião pública: a pressa e o alto grau de especialização. Nenhuma empresa brasileira, muito menos paraguaia, havia feito algo parecido antes, e nenhuma, nem mesmo as cinco consorciadas, seria capaz de, individualmente, reunir tantos operários, cuidar da logística no canteiro, erguer alojamentos e demais benfeitorias, e ainda ter capital para comprar e produzir o maquinário necessário para a construção das gigantescas paredes de sustentação. Boa parte das balsas, guindastes e demais equipamentos teria de ser desenvolvida sob medida.

Pioneiro e visionário, o frankenstein de Itaipu seria um primeiro ensaio, bem mais complexo e tumultuado, do que viria a ser, décadas depois, o Grupo CCR, líder em concessões de infra-estrutura, em especial de rodovias, no qual a AG e a Camargo Corrêa voltariam a se associar. Na primeira década do século XXI, a CCR administraria algumas das mais movimentadas e importantes estradas do Brasil: a Dutra (CCR NovaDutra), o sistema Anhanguera-Bandeirantes (CCR AutoBan), o trecho Oeste do Rodoanel (CCR RodoAnel) e boa parte da Castelo Branco e da Raposo Tavares (CCR ViaOeste e CCR SPVias), além de operar a Linha 4-Amarela do metrô paulistano e a Ponte Rio-Niterói (CCR Ponte), primeiro trecho administrado segundo o novo modelo de concessão, a partir de 1995.

O DESVIO DO RIO PARANÁ foi festejado como o maior canal já aberto no país. Em suas publicações, a Sociedade Americana de Engenharia Civil referiu-se a ele como um “trabalho de Hércules”, que exigiria a remoção de 55 milhões de metros cúbicos de terra e rocha para alterar o curso do sétimo maior rio do mundo. Com dois quilômetros de extensão e 90 metros de profundidade, o canal levaria quase dois anos para ficar pronto.

As obras começaram em janeiro de 1976 e avançaram, ininterruptas — 24 horas por dia, sete dias por semana — por 22 meses de escavações e explosões. Chegaram a detonar 60 toneladas de explosivos de uma única vez. Ao todo, mais de 20 milhões de metros cúbicos de rocha foram extraídos a dinamite. Finalmente, o canal foi inaugurado no dia 20 de outubro de 1978, data do bombardeio dos dois diques de concreto de 110 metros de altura, um a montante e um a jusante, que, até então, continham o avanço das águas sobre o canal, ainda virgem.

A ocasião reuniu Alfredo Stroessner e Ernesto Geisel na plateia. Às 15h15 daquela sexta-feira, 56 toneladas de explosivo romperam as barreiras de proteção e permitiram que o Rio Paraná singrasse seu novo percurso. Mirantes artificiais foram armados na margem esquerda do rio: o lado brasileiro, por onde o canal passaria. Milhares de pessoas, entre jornalistas, políticos, pedreiros, operadores de máquinas, armadores, condutores e sinaleiros, se somaram aos dois presidentes para conferir o espetáculo da explosão.

Com o rio desviado para o novo leito, a barragem principal pôde ser construída a seco. Os trabalhos se estenderam por quatro anos. Num ritmo frenético de 200 mil toneladas de concreto produzidas a cada mês, a grande parede foi concluída em outubro de 1982. No dia 13, após a remoção de 40 mil brasileiros e 20 mil paraguaios, suas 12 comportas foram finalmente fechadas. Na ocasião, 500 jornalistas de dezenas de países e cerca de 6 mil espectadores foram conferir o enchimento do reservatório em arquibancadas instaladas nas duas margens do rio, a paraguaia e a brasileira. Em duas semanas, o lago estava formado, atingindo o vertedouro na manhã do dia 27. A primeira turbina foi acionada em 5 de maio de 1984.

A Sociedade Americana de Engenharia Civil voltou a elogiar Itaipu em seus editoriais. Segundo a instituição, aquela era uma das “sete obras do século XX”, ao lado de outros cartões postais, como a Golden Gate, em São Francisco, do Empire State, em Nova York, o Canal do Panamá e o Eurotúnel.

Os números de Itaipu são todos grandiosos. Seu reservatório ocupa 1.350 quilômetros quadrados, uma extensão quatro vezes maior do que a Baía de Guanabara. Apenas na margem brasileira, o lago banha 16 municípios, todos beneficiados com royalties da usina. Com 196 metros, a barragem principal tem a altura de um prédio de 65 andares. Foram utilizados 12,7 milhões de metros cúbicos de concreto em sua edificação, o suficiente para construir 210 estádios do Maracanã. O volume de ferro e aço ali empregado permitiria a construção de 380 réplicas em tamanho real da Torre Eiffel.

No pico da construção, entre 1978 e 1981, a obra chegou a reunir 32 mil trabalhadores simultaneamente, entre engenheiros, encarregados, topógrafos, pedreiros, geólogos, especialistas em cálculo, solo ou explosivos, sem contar os funcionários terceirizados. Sua construção consumiu, em valores de 2014, cerca de 27 bilhões de dólares — quase 200 vezes o custo atualizado da construção do estádio do Maracanã, inaugurado em 1950 ao custo de 140 milhões de dólares. Com 20 unidades geradoras, cada uma com potencial de 700 megawatts, e uma produção recorde de 98,3 milhões de megawatts/hora em 2012, Itaipu chegaria a 2014 na liderança do ranking mundial de hidrelétricas no quesito energia produzida, mesmo depois de ser superada nos quesitos tamanho e potencial energético pela chinesa Três Gargantas.

Mais uma vez, como acontecera na Amazônia uma década antes, a AG soube aproveitar as oportunidades que surgiram na esteira de Itaipu. A partir de 1984, ela entraria numa série de outros contratos no setor de barragens, firmando-se finalmente na casta das “empresas barrageiras”. Em 2014, atuaria simultaneamente em pelo menos duas hidrelétricas, a usina de Santo Antônio (RO), no Rio Madeira, com 12,4% de participação no consórcio, e a usina de Belo Monte (PA), no Rio Xingu, com 12,75%, ambas iniciadas em 2011.

EM TODOS OS ASPECTOS, a estratégia de abrir mão de 100% do canal de desvio em favor de 20% da obra total mostrou-se bem sucedida. Quando Itaipu foi concluída, em 1984, a AG fazia sua primeira obra no exterior — uma estrada em Brazzaville, capital do Congo, iniciada no ano anterior — e logo seria contratada para construir uma rodovia na Bolívia. Em 1985, estreava no Equador. Essa campanha de internacionalização seria sacramentada em 1988, com a aquisição do controle acionário de uma importante empreiteira portuguesa, então com 20 anos de tradição, a Zagope, que permitiu à AG estender sua zona de influência também ao Oriente Médio, à África e à Europa.

Em 1983, a AG deu início à sua jornada internacional com uma obra no Congo. Em 1988, adquiriu o controle da portuguesa Zagope e foi responsável por trabalhos como a Ponte da Lezíria, a segunda mais extensa da Europa, inaugurada em 2007.

A escalada de sucesso iniciada com JK e intensificada no regime militar, atingindo seu ápice na construção de Itaipu, cobrou um preço alto. Dois dos sócios, Flávio Gutierrez e Roberto Andrade, tiveram enfartes naquele período. O de Roberto, já em 1975, fez com que ele se aposentasse no ano seguinte, aos 62 anos. Flávio não teve a mesma sorte. As muitas atribulações do período foram fatais para ele, morto em 1984, aos 59 anos, dormindo.

Gabriel sobreviveria a essa fase com a firme decisão de reduzir ainda mais a carga de trabalho. Já ausente da rotina das obras desde a reestruturação da AG em 1976, quando os fundadores foram alocados no Conselho de Administração para se ater às questões estratégicas, abdicando das tarefas operacionais, agora Gabriel queria espairecer por mais tempo. Ficar menos atado ao calendário das obras e viajar com mais frequência para fora do Brasil. Conhecer novos países e voltar mais amiúde a Nova York e a Paris. Nadar, caminhar, ir mais ao Minas Tênis Clube, ou mesmo à piscina que Vera mandara construir no terceiro pavimento da casa nova, no alto do morro do bairro Gutierrez. Aos domingos, comer em paz, tomando seu drinque predileto, planter’s punch, um coquetel à base de rum que conhecera numa viagem e nunca mais abandonara. Sua versão levava suco de laranja e grenadine. Há quem troque a laranja por limão ou abacaxi e, às vezes, adicione gotas de angostura e club soda.

Em 1984, os filhos tinham tomado seu rumo, cada um para um lado, o que contribuía para criar um clima de imprevisibilidade diante de tantas possibilidades. O que fazer agora? Marília e Flávio moravam em São Paulo. Laura cuidava dos quatro filhos, dava suporte para o hotel administrado por Bernardo em Cabo Frio e tocava projetos de paisagismo em Belo Horizonte. Heloísa tinha acabado de ir à China para se especializar em medicina tradicional chinesa e voltara de lá toda entusiasmada, exercendo seus novos aprendizados em acupuntura.

Paulo tinha se formado em Administração e fizera estágio na AG, por dois anos. Agora Gabriel planejava abrir uma incorporadora em sociedade com o filho para ele tocar, na área de loteamentos. Álvaro, formado em Engenharia Mecânica, era o único que trabalhava na empresa da família. Havia entrado ainda como estudante de graduação, estagiara nos diferentes departamentos, e agora era secretário do conselho. Luciana também já estava casada, desde os 18 anos — mesma idade em que se casaram Marília, Laura e Álvaro — e logo se mudaria para os Estados Unidos, vivendo primeiro em Miami e depois em Los Angeles, de onde só voltaria a passeio.

Com os filhos encaminhados, e Eduardo cuidando da maior parte dos problemas da AG, Gabriel poderia enfim tornar realidade sua meta pessoal de relaxar mais e se preocupar menos. Não lhe faltava mais nada. Ou melhor, na metade dos anos 1980, faltava a Gabriel apenas uma coisa: arrumar um sucessor também para a condução das fazendas, atividade que ocupava metade do seu tempo. Ou seja: o tempo que não era consumido no expediente na construtora. Se bem que, às fazendas, Gabriel preferia continuar indo, ele mesmo, para tomar conta de tudo pessoalmente. Era ali, entre pastos e piquetes, que ele, beirando os 60 anos, ainda punha em prática seu espírito científico, sua veia de pesquisador e sua inesgotável criatividade.

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Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi