Plantações de trigo na São Miguel, ainda em 1950, estimulada pelo Governo Federal, que buscava aumentar a produção nacional para reduzir as importações.

8 | Engenheiro de rebanhos

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
39 min readDec 3, 2015

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DUAS DA MADRUGADA na Fazenda Colonial. Sem conseguir pregar o olho, Gabriel abotoa a camisa e calça as botinas. Desce as escadas e caminha apressadamente até a casa de Ivonei Abade, o administrador.

– Ivonei!

As batidas na porta são discretas, mas enfáticas. Três toques curtos, ritmados. O inquilino demora a atender. Difícil pular da cama àquela hora, principalmente no inverno.

– Ô, Ivonei! Ivonê-ei?

Baixo e descabelado, o funcionário arregala os olhos ao atender a porta.

– Ô, Dr. Gabriel, o que foi?

– As cigarrinhas, Ivonei. Eles estão combatendo mesmo as cigarrinhas?

– Tá tudo certo, Dr. Gabriel. Tem 18 caminhões neste exato momento no pasto, trabalhando.

Era preciso eliminar aquela praga, não havia tempo a perder. Quando se apoderam de um pasto, as cigarrinhas-das-pastagens sugam o capim, o fazem amarelar e secar, e põem em risco toda a nutrição do gado.

– Mas será que eles estão lá mesmo?

– Uai, Dr. Gabriel. Eles já saíram para o pasto, como a gente combinou. Vão passar a noite aplicando o veneno.

– Vamos lá ver.

Aos 30 anos, quase uma década dedicada à maior fazenda de Janaúba, no norte de Minas, para a qual se mudara aos 21 a convite de Gabriel, Ivonei já se acostumara a lidar com as cobranças, algumas notadamente fora de hora, como aquela, e sabia quando era possível argumentar. E também já achava normal empregar as mais promissoras técnicas de combate à cigarrinha, sempre que alguma novidade aparecia e chegava aos ouvidos de Gabriel. Chegava a ser surpreendente que, em meados de 1982, a cigarrinha ainda dizimasse pastagens no país inteiro, apesar de toda a química e todos os meios empregados para combatê-la.

– Como é? O senhor quer ir até o pasto a esta hora?

– É!

Definitivamente, aquela resposta não deixava margem para negociação. Resignado, Ivonei pegou a chave do carro.

– Claro, Dr. Gabriel. Vamos lá, então.

Os dois seguiram quietos pela estradinha de terra, com piquetes dos dois lados. Havia pouco a dizer. Apenas o faro de investigador de Gabriel martelava que era melhor conferir o serviço. Fazendeiro que se preza não baixa a guarda, nem às duas da manhã.

A desconfiança de Gabriel começou a se esvanecer assim que ele avistou o primeiro veículo em atividade. Um caminhão trabalhando ali, outro acolá. Bom, muito bom. Ao final de uma curva, veio a primeira decepção:

– Aquele ali está parado ou é só impressão?

Completamente parado. Desligado de tudo. Não bastasse, com o motorista dormindo ao volante. Gabriel anotou a matrícula do veículo. No dia seguinte, alguém iria escutar. Gabriel só não o demitia imediatamente como fizera anos antes, num canteiro de obra, ao ver um piloto meter o trator em cima de uma pedreira, porque desta vez o funcionário era terceirizado. A negligência do moço bastou para deixar Gabriel ressabiado.

— Ivonei, vamos ver se eles estão trabalhando direito.

— Mas, Dr. Gabriel, como é isso? Como ver se estão trabalhando direito?

— A gente desce do carro, entra no piquete e fica assim, de pé, a 25 metros do caminhão, pareado com a trilha que ele estiver seguindo. Mas fica com o olho aberto, de frente para a fumaça do pesticida. Se arder o olho, é porque eles estão espalhando o remédio direito.

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Naquela noite, Ivonei voltou a dormir por volta das quatro da manhã. E com os olhos ardendo, ainda bem.

O SEMIÁRIDO BRASILEIRO é caracterizado por temperaturas elevadas e baixos índices pluviométricos. Cobre 11% do território nacional: uma mancha de quase 1 milhão de quilômetros quadrados que começa em Minas Gerais, acima da Serra do Espinhaço, e se alastra por todos os estados do Nordeste, com exceção do Maranhão. O solo tem forte presença de cristais rochosos, pouco permeáveis, que inibem a formação de aquíferos.

Em razão das altas temperaturas e da quase imediata evaporação da água das chuvas, a terra costuma ser especialmente salgada, o que contribui para a escassa produção agropecuária e para o êxodo populacional.

Janaúba é o segundo maior município do Semiárido mineiro em tamanho e importância, atrás apenas de Montes Claros. Ali, o regime de chuvas é irregular e, por vezes, brutal, privando a região de qualquer sinal de garoa entre abril e novembro. A cada ano, são pelo menos oito meses de seca. As águas costumam retornar em dezembro e, eventualmente, se despedem novamente após duas ou três semanas de alívio e esperança, para novo intervalo de um mês ou dois de estiagem.

O clima é ainda mais seco na zona rural, particularmente nas áreas mais afastadas do Rio Gorotuba. Chove, em média, 760 milímetros por ano, metade dos 1.400 milímetros registrados em São Paulo. A taxa de evaporação, por sua vez, ultrapassa 2.000 milímetros, quase três vezes o índice pluviométrico, o que evidencia o déficit hídrico a que a região está sujeita. É como se, a cada gota que toca o solo, três tivessem que evaporar.

Em 1969, nove anos antes da inauguração da barragem do Bico da Pedra, que viabilizou a construção de canais de irrigação pelas fazendas ao redor da represa, a situação era muito pior. Apesar do calor de 40 graus, Gabriel mantinha o sorriso ao sobrevoar o deserto. E salivava, com o apetite dos pioneiros, disposto a desafiar aquele clima, aquele solo, aquela seca. Decidiu subverter as estatísticas e cultivar progresso onde havia resignação. Reconheceu Janaúba como o lugar ideal para realizar, aos 43 anos, o sonho de criança: criar também gado de corte.

Foi o dentista de Flávio, seu filho, quem sugeriu a aquisição de terras na região. Seu nome era Helvécio. Também proprietário de terras no norte de Minas, o dentista soube como convencer Gabriel.

— Não tem lugar melhor para quem gosta de pilotar avião — ele disse. — A região é plana, sem risco de uma montanha surpreendê-lo no percurso, e muito seca, o que reduz praticamente a zero a possibilidade de cerração. É só seguir pelos vales do Rio da Velha e do Rio São Francisco.

Desconfiado, Gabriel tentou relativizar os argumentos de Helvécio.

— Escolher fazenda em razão da qualidade do céu… Não seria mais lógico considerar a qualidade da terra?

— Mas a terra lá é muito boa. É uma terra fértil, com muito calcário, e o relevo é pouco acidentado. As fazendas são amplas e planas, praticamente prontas para o plantio. O que falta é chuva. Mas é só saber manejar o pasto.

Helvécio também era fazendeiro, dono de terras na região do Jaíba, não muito longe dali. E produzir gado de corte, em sistema extensivo ou semi-intensivo, ambos sabiam, nunca exigiu tanta chuva quanto as lavouras de verduras ou frutas. Boi sertanejo sabe se virar.

— Além do mais, Gabriel, transporte é coisa importante demais para ser desprezada.

— É mesmo — ele concordou. — Essas estradinhas mineiras são muito mixurucas. A gente acaba indo pra todo canto de aviãozinho.

— E vira e mexe aparece a notícia de que algum conhecido morreu por conta da neblina, que cobriu a visão de alguma montanha.

— Isso é verdade. Outro dia morreu um colega no Vale do Mucuripe. Pegou uma ventania brava.

— Além disso, no Semiárido tem apoio da Sudene.

O dentista referia-se à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, autarquia criada pelo Governo Federal dez anos antes, em 1959, para estimular a instalação de empresas, fábricas e lavouras naqueles Estados. Suas bênçãos se estendiam ao norte de Minas, tão carente de recursos e urbanidades quanto o interior da Bahia, do Ceará ou de Pernambuco. O pacote de benesses previa incentivos fiscais e crédito facilitado do Banco do Nordeste a quem se dispusesse a instalar algum empreendimento ao norte de Montes Claros. Quando presidente, Juscelino Kubitschek criara o órgão na esperança não apenas de desenvolver os grotões, mas também de gerar empregos, ampliar a participação dos Estados mais pobres no Produto Interno Bruto (PIB) e, por extensão, frear as ondas migratórias que, nos anos 1950, inchavam as metrópoles do “Sul Maravilha”.

Na ponta do lápis de Gabriel, os benefícios do programa superavam os eventuais prejuízos com combustível ou irrigação e o investimento que ele teria de fazer em pesquisa e desenvolvimento até encontrar a melhor pastagem e a melhor técnica de ordenha, entre outros. A Sudene não apenas facilitaria o crédito para aquisição de glebas, formação de pastagens e construção de currais — tudo a juro zero, com dez anos de prazo, numa época em que a inflação beirava 20% ao ano –, como abateria impostos e compensaria as perdas de produção ao longo de mais de uma década. Sopa no mel para um fazendeiro experiente que teria recursos próprios para correr riscos, se fosse preciso.

Em 1969, enquanto muitos se mandavam para a fronteira agrícola da Amazônia, abrindo pasto e canaviais no Mato Grosso e em Goiás, Gabriel instalou propriedade no Norte de Minas. Serra Colonial, sua primeira fazenda naquelas bandas — à qual mais tarde se somariam outras cinco fazendas, totalizando 25 mil hectares –, pertencia a uma senhora, viúva recente de um expoente da pecuária local. Tinha 8 mil hectares, quase seis vezes mais do que a Calciolândia, a fazenda de 1.400 hectares que herdara em 1962 do pai, em Arcos, e que era parte da antiga São Miguel, onde nascera. Naquele ano, o velho Donato, já um senhor septuagenário, optara por dividir suas terras entre os três filhos. A porção recebida pelo caçula ganhou o nome de Granja Bela Vista e, mais tarde, foi rebatizada como Calciolândia.

Gabriel comprou a Colonial com tudo dentro. E demorou dois anos para descobrir o tamanho do rebanho. Criado solto entre capoeiras e touceiras de capim colonião, o gado local era predominantemente nelorado, como na maioria das propriedades vizinhas, sem investimento em seleção, nem para leite nem para corte. Pecuária extensiva tradicional, comprava-se bezerro para vender depois de engordá-lo, sem levar dar a devida atenção à genética do pai, às qualidades da mãe.

A falta de zelo era tamanha naquele promíscuo sertão mineiro que intrusos sem raça definida percorriam descaradamente a propriedade, a se refestelar com as novilhas. À medida que o novo patrão se inteirava da situação, foi preciso carregar a cartucheira e correr a fazenda. Mestiços, cruzados, gabirus, tucuras, de todas as cores e tamanhos, sucumbiam em nome da ordem. Gabriel preferia assim. E nada de vira-lata a se engraçar para cima de suas reses.

Apenas em 1972, Gabriel transferiu para lá o rebanho de nelore que comprara anos antes, mantendo-os provisoriamente na Calciolândia, e, junto com Vera, deu início à construção da sede. Era ela quem escalava arquiteto, discutia o projeto, decidia o estilo da fachada, o desenho das janelas, a madeira usada nas colunas. Enquanto a edificação subia, assobradada, com planos sobrepostos e um jardim central, Vera se dedicava à seleção das plantas que comporiam o projeto paisagístico.

A casa ficou pronta em 1973. Aos poucos, Gabriel passou a se dedicar mais à Colonial do que à Calciolândia, transformando-a em seu maior xodó no final daquela década. A distância, o calor, o clima extremamente seco, a poeira das estradas, a rusticidade de uma sede construída com vocação administrativa, sem piscina nem área de lazer, tudo contribuía para que Vera se mantivesse apartada, preferindo visitar a fazenda de Arcos, onde comandava a produção de goiabada e supervisionava a criação de mangalargas, sua principal ocupação. Por isso reclamava, com certo ciúme, da nova predileção do marido. Mas Gabriel, embora adorasse os passeios a cavalo e se deliciasse com o doce de goiaba, via as fazendas sobretudo como negócio. E precisava estar por perto para torná-las rentáveis. O olho do dono, como todo mundo sabe.

NO COMANDO DAS FAZENDAS, Gabriel sempre foi um cientista, um pesquisador. Viajava com frequência para conhecer novas tecnologias, firmava parcerias com universidades de agronomia, como a Federal de Viçosa, a UFMG e a USP, e também com as agências nacionais e estaduais de desenvolvimento rural, como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), a Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) e a Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural).

Principalmente, lia. Lia muito. Vez ou outra mandava uma revista, um artigo ou um estudo para os gerentes das fazendas. Uma vez, em meados dos anos 1980, uma dessas publicações foi o pivô de uma bronca que Ronaldo Santiago, então gerente da Colonial, jamais esqueceria. Uma semana antes de ir para a fazenda, o patrão enviara uma edição da revista Globo Rural aos cuidados de Santiago. Lá chegando, perguntou se ele lera determinada reportagem, que abordava o assunto sobre o qual queria tratar.

— Estou meio sem tempo para ler — Santiago respondeu, imprudente.

A espinafrada foi imediata, na frente de todo mundo.

— Sem tempo para ler? Se você não tem tempo para ler, é melhor se aposentar.

— Ô, Dr. Gabriel, se for importante eu leio hoje mesmo…

— Não, meu caro — quando Gabriel usava a expressão “meu caro”, era porque o caldo havia entornado. — Tem que ler sempre, Santiago. Para se atualizar, saber das coisas, e não porque eu mandei ou deixei de mandar.

Gabriel lia. O tempo todo. Lia e enviava o que merecia ser lido para o pessoal da produção. Quando chegava, tinha tudo na ponta da língua, entusiasmado para discutir e colocar em prática o que houvesse de sugestão inovadora. E não adiantava conversar com ele sabendo das coisas pela metade. Precisava estudar cada tema a fundo.

No Semiárido, Gabriel dedicou mais de dez anos a pesquisas para formar as melhores pastagens. Muitas delas absorveram um volume considerável de dinheiro, algumas patrocinadas pela Fundação Laura Andrade, que organizara anos antes, de olho no desenvolvimento social das comunidades instaladas nas regiões em que atuava, tanto em Arcos quanto em Janaúba. Se em Arcos os principais objetivos eram combater a esquistossomose, levar atendimento médico e odontológico às famílias que viviam perto da Calciolândia e, em determinado momento, instalar uma escola e um centro cultural na região, no Semiárido, região de pasto muito seco, o foco da instituição se voltara para um lado essencialmente econômico, buscando maneiras de fazer com que o pequeno produtor pudesse se beneficiar, junto com Gabriel, de pastos melhores e rebanhos mais produtivos.

Além de investir em pesquisa e levar cientistas à região, Gabriel exerceria importante influência política em favor, por exemplo, da construção da barragem do Bico da Pedra. Inaugurada no final dos anos 1970, ela permitiu a implementação de um sistema barato de irrigação, indispensável para o progresso de Janaúba nas décadas seguintes, baseado na fruticultura.

Ao se instalar no município, Gabriel fez o diabo para reduzir o efeito negativo dos elementos hostis e se beneficiar dos aspectos favoráveis do clima seco. Antes mesmo de adquirir as terras, ele já sabia, por exemplo, que o gado dificilmente teria problemas com bernes e carrapatos. O rebanho que pastava solto era saudável, vistoso, forte o bastante para suportar longos períodos de seca. E seu pelo liso, curto, intacto, revelava resistência a doenças como a carrapatose.

O maior desafio seria a formação de pastagens. Por incrível que pudesse parecer, até nisso o clima acabaria ajudando. Uma vez encontrada a espécie mais adaptada ao clima, sobraria pouca preocupação. Porque, para o gado, capim desidratado pode ser tão benéfico quanto capim verde. Com uma vantagem: seu prazo de validade é muito mais longo. Terminada a época das chuvas, em março, o capim da Colonial costumava se desidratar em poucos dias, mas não perdia a qualidade. A ausência de geada ou sereno e a pouca umidade durante o dia faziam com que o pasto não apodrecesse, como acontece em áreas de clima tropical. Seu aspecto é o de uma plantação de feno, mantendo volume e nutrientes por meses. Por isso mesmo, o gado da Colonial passava o ano inteiro a base apenas de capim e sal, enquanto o gado de regiões mais úmidas costumavam exigir a silagem e a administração de concentrado durante algum período.

O empurrãozinho foi dado pelo destino. Assim que comprou a Colonial, uma seca mais severa do que as anteriores fez Gabriel perder toda a pastagem. E já que era preciso plantar tudo de novo, escolher o melhor capim virou obsessão. Uma coisa Gabriel sabia: o futuro da fazenda não estava em nenhum dos capins que encontrou ali. Os pastos usados até 1970 no Norte de Minas haviam sido importados de regiões tropicais, não adaptados à estiagem. Já em 1972, Gabriel arrumou as malas e, junto com Vera, passou um mês na Austrália, visitando as mais modernas fazendas de clima semiárido do mundo. De lá, trouxe diversas soluções, com as mais diferentes aplicações.

Trouxe, por exemplo, arame liso para substituir o arame farpado nas cercas: igualmente seguro, evitaria acidentes que poderiam lesar o gado. Trouxe, ainda, bebedouros de chapas de zinco, orientando a troca imediata dos velhos bebedouros de alvenaria pelos novos. Além de serem facilmente transportados de um canto a outro do piquete conforme a necessidade, evitando quebra-quebra e desperdício, os bebedouros de zinco aqueciam naturalmente a água, facilitando a digestão do boi e, consequentemente, o ganho de peso.

No que se referia à pastagem, chegou entusiasmado com uma nova proposta de manejo e bibliografia suficiente para que sua equipe implementasse o tal do campo agrostológico. Em resumo, a orientação era para que se plantassem leguminosas nos intervalos das espécies forrageiras, seguindo determinados padrões de distância e altura, testados e aprovados no primeiro mundo. As leguminosas, segundo a literatura, retiram nitrogênio do ar e o colocam no solo, tornando-o mais nutritivo. Por fim, começou a testar diversos tipos de capim. Em sua bagagem, vieram sementes de dois tipos de buffel (blioela e grass) e de urocloa, um capim originário da África que se adaptara muito bem na Oceania. Teria dado certo na Colonial se não houvesse as cigarrinhas-das-pastagens (sempre elas!), que liquidaram os novos pastos e ainda se aproveitaram deles como vetor de proliferação.

Pouco tempo depois, a Embrapa montou uma extensa cartela de capins, com mais de uma centena de tipos, e cedeu sementes de 30 deles para a Colonial. Todos os capins tinham de ser testados, cada um em determinado número de piquetes. E, por orientação do cientista Gabriel, a produtividade nesses piquetes deveria ser verificada com diferentes densidades. Ou seja: como o pasto se comporta com 0,6 cabeça de gado por hectare, com 0,8 cabeça, com 1 cabeça, com 2 cabeças e assim por diante, até se concluir pela combinação mais produtiva e lucrativa. Uma das sementes, catalogada pela Embrapa com o código buffel 131, foi adotada na fazenda após toda a maratona de testes e, mais tarde, ficaria conhecida nacionalmente como buffel colonial. Junto com o buffel aridus, desenvolvido por um agrônomo de Sobral (CE) e perfeitamente adaptado aos solos rasos, e com a braquiarinha, utilizada nas áreas de solo mais profundos, o buffel colonial continuou sendo largamente empregado na propriedade pelas década seguintes.

Em cada época, cabia ao administrador — primeiro Ivonei e depois Santiago, transferindo-se o bastão para José Aparecido Mendes Santos nos anos 1990 — viabilizar todos os experimentos encomendados por Gabriel. Ivonei, por exemplo, foi responsável por montar os torrões de leguminosas que seriam plantados na pastagem, dando início ao campo agrostológico, ainda em 1973, seu primeiro ano na propriedade. José Aparecido, em seu segundo mês como funcionário da Colonial, em 1984, viu-se armando fogueiras de 15 metros de altura, com restos de madeira, para produzir fumaça e atrair chuva. Não, não era trote. Gabriel havia lido em algum lugar que seria possível trazer chuva bombardeando as nuvens com fumaça. E resolveu tentar, como era de seu feitio.

O APREÇO PELA PESQUISA APLICADA não era coisa recente na trajetória de Gabriel, muito ao contrário. Testes, experimentos, projetos, relatórios e memorandos eram constantes em sua vida de produtor rural desde 1962, quando começou a selecionar matrizes da raça gir de olho na produção de leite na fazenda Calciolândia. Ou seja: manipular os cruzamentos de modo a obter crias cada vez mais leiteiras, sem abrir mão da resistência e da rusticidade.

Tradicionalmente, os animais da região eram quase sempre mestiços, com sangue europeu, gado suíço ou holandês, caracu ou zebu, vindo da Índia. Raramente eram animais de raça pura. Seu pai criava gado de leite desde 1915, mas sem o devido cuidado com a seleção. Desde que a SaMiGue fora criada, em 1940, Donato se esforçava para aumentar a produção de leite de modo a abastecer a indústria de laticínios da família. Como apenas uma pequena parte do leite consumido na fábrica era de produção própria, sua estratégia de negócios passou a incluir maneiras de tornar mais produtivos o rebanho dos vizinhos.

A preferência de Donato era por gado suíço e holandês, campeões em volume de leite, o que o obrigava a gastar quantias consideráveis em vacinas e remédios, uma vez que as vacas européias, da subespécie bos taurus, eram muito pouco resistentes ao calor e a doenças tropicais, especialmente febre aftosa. Já o gado zebuíno, da subespécie bos indicus, originário da Índia e reconhecido pela presença de cupim e da barbela, já era muito mais adaptado ao calor e às doenças tropicais. Por essa razão, a maioria dos pequenos produtores do entorno vinha trocando o gado europeu pelo gado indiano, já desde o início do século, e passara a preferir zebuínos, como o guzerá ou o próprio gir, seduzidos por sua resistência, sua rusticidade e sua expectativa de vida. Grosso modo, o gado europeu produzia bem mais leite do que o gir, mas vivia bem menos e custava mais caro. Além disso, os animais adoeciam com facilidade, de modo que a principal vantagem do gir, na época, era sua resistência e sua alta expectativa de vida: produzia menos, mas por mais tempo, e com menos gastos em medicamentos, vacinas e manejo.

O gir é muito antigo. Desde quando eu era rapazinho, lembro dos vizinhos tirando leite de gir. Mas não era seleção, era ao acaso. A seleção mais antiga do gir leiteiro foi do senhor Francisco Barreto, em Uberaba (MG), e de João Batista Oliveira Costa, em Casa Branca (SP). Esses, eu fui conhecer quando comecei a procurar, em 1960. O Rubens Peres era outro criador muito adiantado. Ele tinha um irmão que escrevia no jornal O Globo, o José Rezende Peres. Papai gostava das crônicas dele. Fui ao Rio com o papai visitar a fazenda deles para conhecer o gir leiteiro. Nós queríamos melhorar os rebanhos dos nossos fornecedores de leite, para que passassem a produzir em maior quantidade e também nos períodos de seca. Com o gado comum que havia por ali, ruim de leite, eles não conseguiam manter um fornecimento à altura. Então o volume de leite era razoável na estação das águas, mas sofrível na seca, entre junho e agosto, quando o pasto seca, vem geada e o capim queima.

A capacidade de adaptação ao clima também era uma vantagem importante que o gado indiano tinha sobre o europeu. Na época da seca, por exemplo, muitos fazendeiros tinham de confinar o gado europeu para não matá-lo de fome. Os zebuínos, por sua vez, podiam permanecer no pasto mesmo com o capim seca, criavam bezerros, davam leite, tudo normalmente. No período das chuvas, algumas matrizes, embora poucas, tinham lactações comparáveis às das vacas européias. A estratégia seria investigar essas matrizes com produção excepcional, sair à cata de exemplares de gir com vocação leiteira e fazer os cruzamentos mais adequados, investindo no desenvolvimento da espécie. Gabriel estava disposto a mergulhar nisso. E mergulhou, como muito poucos fizeram, tornando-se um dos patronos da criação da raça gir leiteira, logo transformada numa categoria específica de seleção e comercialização. Para chegar nisso, porém, foi preciso trabalhar muito e duro, durante muitos anos. Foi preciso trazer mais técnica, mais esforço na pesquisa, melhorar o capim, investir em genética, em tecnologias de irrigação, em formas de adubar melhor o solo, em incrementar a ração. Foi preciso método. Muito método.

Na década de 1930, duas fazendas paulistas se destacavam nessa busca de gir para leite, embora essa seleção não fosse tão rigorosa quanto viria a ser mais tarde, já nos anos 1960: a Campo Alegre, de Casa Branca, e a Santana da Serra, em Mococa. A primeira delas iniciara a criação de gir em 1932, a segunda, um ano depois. Na Campo Alegre, o próprio dono, João Batista Figueiredo Costa, viajava à Índia para comprar gado. Nos anos 1950, uma das vacas da Campo Alegre, chamada Barcelona, chegou a produzir 11 litros de leite por dia, em duas ordenhas. Onze litros diários de leite era um recorde para a época; uma vaca gir dificilmente conseguia produzir mais de 5 litros.

Foi por essa época, nos anos 1950, que as experiências com o gir começaram a se espalhar pelo Brasil. Donato, que transmitiu a Gabriel a compulsão por estar sempre antenado nas pesquisas e nas revistas especializadas, interessou-se pelo tema de tanto ler as colunas publicadas por José Resende Peres no jornal O Globo, na virada da década de 1960. Especialista em zebuínos, o autor narrava o sucesso de seu irmão Rubens Peres, que desde 1955 vinha selecionando gir para leite na Fazenda Brasília, na mineira São Pedro dos Ferros, pleno Vale do Rio Doce. Dizia, em seus artigos, que muitos cálculos haviam sido feitos, cruzando dados de produção anual com vida útil e resistência a ectoparasitas, entre outros, e que os melhores resultados tinham sido alcançados pelo gir. Interessado em aumentar a produção dos fornecedores da SaMiGue para que passassem a colher leite o ano inteiro, e não apenas na época das chuvas, Donato foi visitar a fazenda Brasília junto com o filho, em 1960. Dali a dois anos, Gabriel compraria seu primeiro rebanho da raça.

As primeiras reses de gir leiteiro da Calciolândia foram adquiridas em Franca (SP), do criador Continentino Jacintho da Silva, mais conhecido como Tenente Jacinto. Continentino era um entusiasta da raça, e havia introduzido em sua propriedade um método de controle bastante rígido: pesava diariamente a produção de suas melhores vacas desde 1956. Um mascate, João Feliciano Ribeiro, foi quem fez a ponte entre os dois. Gabriel comprou as vacas e manteve a rotina de pesar o que elas produziam, registrando no primeiro ano uma média de 18 litros diários com sua melhor matriz. Em menos de dez anos, a produção diária de uma boa vaca leiteira gir já aumentara quase 70%.

Acompanhar a produção era obviamente essencial, não só para acertar no acasalamento, no cruzamento entre os animais, mas para ter certeza (ou ao menos, mais certeza) de que o resultado esperado seria alcançado: produzir mais leite, a partir de rebanhos zebuínos, e assim assegurar que os clientes das fazendas ficassem satisfeitos. Ciente disso, Gabriel foi um dos líderes que propôs, em 1963, a oficialização do controle leiteiro entre os produtores que tinham rebanhos de zebuínos, das raças sindi, guzerá e gir. Entre os criadores receptivos a esse controle mais estrito estavam, inclusive, os pioneiros Francisco Barreto, da fazenda Santana da Serra, e José Lúcio de Oliveira Costa, filho de João Batista, da Campo Alegre. O sistema foi implementado também na Fazenda Experimental Getúlio Vargas, em Uberaba, pela Secretaria de Agricultura de Minas Gerais, sob a supervisão de Hugo Prata.

Em poucos anos, Gabriel apresentaria suas armas para, em parceria com outros criadores, dar início à cruzada pelo desenvolvimento do primeiro teste de progênie do Brasil.

O TESTE DE PROGÊNIE é uma técnica que permite aos produtores aferir o potencial genético de seus touros, com base na comparação do desempenho de suas filhas com o desempenho médio das filhas dos demais touros. O que se pretende descobrir com esse recurso, grosso modo, é até que ponto seu sêmen poderá beneficiar determinado rebanho, orientando a seleção por meio das inseminações seguintes. No caso do gado de leite, os touros melhor classificados nos testes de progênie têm o poder de aumentar a produção leiteira de suas descendentes. Assim, as vacas nascidas de um cruzamento entre ele e determinada matriz costumam produzir mais leite do que as vacas nascidas de um cruzamento dessa mesma matriz com outro touro, menos qualificado.

A metodologia consiste em recolher sêmen dos touros que serão avaliados e inseminar um grande número de matrizes com ele, mais de 50, de forma aleatória e codificada. As vacas resultantes desses cruzamentos são acompanhadas ao longo de sua primeira lactação, com controle leiteiro oficial, a fim de se observarem suas estatísticas de produção. Por causa desse ciclo, os primeiros resultados podem demorar mais de cinco anos para sair, e são consolidados num índice, o chamado PTA, sigla em inglês para Habilidade Prevista de Transmissão. Ao fim do processo, os touros que se destacam no teste — os pais das vacas mais produtivas — são logo valorizados no mercado de sêmen.

Em 1976 foi realizada a primeira reunião de produtores de gir leiteiro em torno da proposta de se fazer um teste de progênie em parceria com a Embrapa. Em nome da instituição, postulava um pesquisador uruguaio chamado Fernando Madalena, egresso da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Entusiasta do controle leiteiro e do melhoramento genético da raça, Madalena defendia políticas de seleção e desenvolvimento do zebu com vistas ao aumento da produção de leite em terras tropicais. Do lado dos produtores, o interesse pelo instrumento reunia os mesmos criadores que, uma década antes, apoiaram a sistematização do controle leiteiro.

Lúcio Costa, da fazenda Campo Alegre, e Francisco Barreto, da Santana da Serra, ambos selecionadores de gir para leite, visitam Gabriel na Calciolândia e discutem a criação de uma associação de criadores, a ABCGil (acima, à esquerda). Graças aos resultados no teste de progenie, a partir da década seguinte, a marca CAL virou referência em genética e fez aumentar o interesse de produtores e estudantes por conhecer o rebanho de Gabriel. Em 2014, a fazenda registra uma média de quatro visitas por semana

O time tinha, entre seus líderes, expoentes como Rubens Peres, da Fazenda Brasília, e José Lúcio de Oliveira Costa, herdeiro da Campo Alegre e proprietário recente da Fazenda Tabarana. Ao mesmo tempo em que incentivaria a competição entre os criadores, todos ávidos por emplacar seus touros no topo do ranking, o teste desempenharia um importante papel na área comercial, funcionando como um pedigree da linhagem premiada. Também ofereceria elementos para a definição de metas.

Foi precisamente para viabilizar o teste de progênie que se formou, em 1980, a Associação Brasileira de Criadores de Gir Leiteiro, a ABCGil. Formada dentro da ABCZ (Associação Brasileira de Criadores de Zebu), tinha como principal função garantir representatividade junto à Embrapa e, assim, tornar os testes possíveis. Sem uma associação de produtores, dotada de personalidade jurídica e apta a representar os interesses dos membros junto à Embrapa, o programa jamais seria lançado.

A nova entidade tinha 12 associados no ato de fundação. Seu primeiro presidente foi José João Salgado Rodrigues dos Reis. Em menos de uma década no manejo do gir, José João havia formado um excelente rebanho, sob a orientação de Hugo Prata (da Fazenda Getúlio Vargas), que o convencera a adquirir um filho do touro Naidu, exemplar trazido da Índia pela fazenda Campo Alegre, e emprenhar com ele as fêmeas que fora buscar em Franca, com o mesmo Tenente Jacinto que vendera as primeiras reses de gir para a Calciolândia. Na Embrapa, quem estava à frente do projeto do teste de progênie já não era o uruguaio Fernando Madalena, mas outro pesquisador, Mário Luiz Martinez, que acabara de voltar de um doutorado nos Estados Unidos, impressionado com os testes semelhantes conduzidos lá.

A maioria dos diretores da ABCZ acompanhava com desconfiança aquele movimento. Preocupados quase que exclusivamente com o nelore de corte — até porque o rebanho de gir selecionado para leite era exponencialmente menor do que a população de nelore, como continuaria sendo muitos anos depois — eles não punham fé na ABCGil, certos de que suas lideranças fariam melhor negócio se deixassem a teimosia de lado e continuassem criando gir para corte. Não chegou a haver uma cisão na entidade, uma vez que a ABCZ manteve o monopólio do registro do gado zebuíno no Brasil, incluindo os da raça gir, o que também ajudava a garantir receita para sustentar sua estrutura e suas operações. Mas a divergência de interesses e vocações foi acentuada nos anos seguintes. A partir da década de 1980, toda novidade no mercado e na ciência do gir leiteiro seria assunto da ABCGil, e não mais da ABCZ.

FUNDADA A ASSOCIAÇÃO, foi preciso aguardar mais cinco anos até que o teste saísse finalmente da gaveta, em 1985, como parte principal de uma estratégia maior, o Programa Nacional de Melhoramento do Gir Leiteiro. Cinco anos foi o tempo necessário para que os associados desistissem de pedir dinheiro ao Ministério da Agricultura, insistindo na conveniência de promovê-lo por meio da Embrapa, e assumissem eles mesmos as despesas. Novamente, a Fundação Laura Andrade, por intermédio de Gabriel, desempenharia papel significativo nesse processo e no patrocínio às pesquisas.

A primeira bateria de testes foi feita com nove touros. Cada associado tinha direito a sugerir um único animal por ano. Eles sempre indicavam os que, de forma empírica, lhes pareciam ser os donos da melhor genética. Os touros eram submetidos a uma apreciação prévia por parte da Embrapa, que, com base no histórico e na filiação do animal, definia os exemplares a ser testados. Em razão das limitações de estrutura e logística, não era possível que todos os associados estivessem representados no teste. Fazia-se um rodízio. Mesmo dali a 30 anos, o problema permaneceria, tornando-se ainda mais grave: com cerca de 400 associados, a ABCGil só conseguiria testar 25 touros por ano em 2010. Em 1985, foram nove. No ano seguinte, outros oito touros foram incluídos nos testes. Em 1987, mais nove.

À medida que os primeiros testes eram feitos pela Embrapa, a ABCGil crescia lentamente. Eram 18 sócios em 1990, e nenhum resultado do teste de progênie tinha sido anunciado até então. Os primeiros números foram finalmente publicados em 1993, contendo informações dos 26 animais que integraram as três primeiras baterias de exames. Além desses, outros 72 touros continuavam em análise, tendo fornecido sêmen após 1988, mas seu estudo permanecia inconcluso.

No dia da divulgação da primeira planilha, ninguém teve tanto motivo para comemorar quanto José Lúcio, da Campo Alegre. Seu touro CA (de Campo Alegre) Everest fora o campeão, e voltaria ao topo do ranking por mais três anos. Sua linhagem marcaria para sempre o futuro do gir leiteiro. Um de seus filhos, CA Sansão, seria hexacampeão no teste ainda na década de 1990, e muitas de suas filhas seriam recordistas em volume por lactação. Anos depois, o sêmen de Everest seria utilizado na própria Calciolândia, num lance promovido pelo então administrador José Aparecido, que decidiu passar por cima de Gabriel e do primeiro diretor da fazenda, Francisco Raphael Ottoni Teatini, ambos ainda resistentes a utilizar material de outra fazenda.

CONFIANTE NOS TESTES feitos na Embrapa por iniciativa da ABCGil, e ciente do valor que poderia ser agregado ao rebanho pela genética do CA Everest, Aparecido foi com Jordane até a Campo Alegre para buscar o sêmen do mito. Chegando lá, quis ver o animal e quase caiu para trás quando o conduziram através do curral em direção a um bicho desconjuntado, de orelhinha pequena, pelancudo, com o umbigo arrastando no chão, largado junto a um cocho no fundo do corredor. Aparecido teve a sensação de que, de tão feio, o touro tinha sido escondido ali de propósito.

— É esse o famoso Everest?

Era.

— De jeito nenhum — Teatini esbravejou. — Endoidou? Vai estragar nossa seleção com esse bicho feio.

Aparecido fingiu que não ouviu a bronca e usou o sêmen assim mesmo. E, graças a ele, mais especificamente ao cruzamento das filhas do Everest com o touro Benfeitor da Calciolândia (também ele tetracampeão do ranking da ABCGil), nasceram algumas das melhores doadoras da fazenda de Gabriel na segunda metade dos anos 1990. Definitivamente, quando o assunto é gado de leite, quem vê cara não vê produção.

O episódio alerta para um dos mais transformadores e rigorosos efeitos do teste de progênie. Agora, o valor de um touro poderia ser conferido com base em estatísticas, e estaria para sempre vinculado ao fator genético. No caso do gado leiteiro, à capacidade de produção láctea.

Nos leilões, foi preciso separar o gir leiteiro do gir de corte. Se os compradores de gado de corte buscavam porte e tônus, os compradores de gado leiteiro estavam mais atentos aos úberes das fêmeas, por exemplo. O padrão visual passava a valer cada vez menos no mercado do gir leiteiro. Os números atraíam mais do que o aspecto.

Formação e manejo de pastagens na Colonial, em convênio com a Epamig.

Essa mudança tornou-se ainda mais evidente com a popularização do comércio de sêmen a partir da fundação dos primeiros centros especializados na armazenagem e na venda desse material, acirrando a concorrência já na década de 1980. Desde então, o animal inteiro passou a ser dispensável. O comércio de touros foi aos poucos sendo substituído pelo comércio de material genético, o que praticamente bania o “doador” de esperma do processo. Ninguém mais precisava sequer ver seu rosto. Bastava o que ele tinha para entregar.

Em pouco tempo, somaram-se à inseminação artificial outros recursos, como a sexagem, a transferência de embriões (TE) e, desde 2000, a técnica de fertilização in vitro (FIV).

Se, no começo da criação de gir leiteiro na Calciolândia, ou da produção de nelore na Colonial, alguém duvidava da conveniência de se investir em pesquisa e desenvolvimento como Gabriel costumava fazer, o tempo se encarregou de mostrar que ele estava certo. O sucesso do teste de progênie e a consolidação do gir leiteiro em razão do seu potencial produtivo devem muito a Gabriel. Seu mantra, no entanto, sempre foi pela eficiência, pelo foco, pela assertividade dos experimentos feitos, jamais pela pesquisa intuitiva ou pela ciência aleatória.

— Quem quiser fazer uma pecuária moderna tem que ficar atento aos experimentos da Embrapa e da Epamig — Gabriel dizia. — Mas isso vale para quem estiver realmente disposto a fazer algo mais avançado, ou ter uma produção em grande escala. Para a pecuária comum, fazer o que o vizinho faz já é o bastante. Ou o que o pai fazia. Não precisa ficar inventando.

Sua convicção obedecia à lógica de qualquer bom administrador de empresas, acostumado a olhar para a coluna de receita e para a coluna de despesas com a certeza de que, em hipótese alguma, os números da segunda podem ficar maiores do que os da primeira.

— O segredo não é investir em novidade, mas naquilo que já está comprovado, ou que seja recomendado por instituições que tenham experiência e credibilidade — ele dizia. — Fazendeiro não pode ficar buscando novidade, porque a rentabilidade na pecuária é pequena e não se pode correr risco. Novidade traz risco. E qualquer perda é muito difícil de recuperar.

Levei algumas práticas da AG para a fazenda. Por exemplo, uma coisa que meu pai não fazia era participação nos lucros. Eu apurava os lucros na fazenda e dava uma gratificação, uma porcentagem. Participação nos lucros é mais importante do que prêmio por cumprimento de meta porque, em pecuária, não dá para ter muita meta. O trabalho é rotineiro. A atividade produtiva de todo empresário é muito parecida. Seja varejo, atacado, construção ou pecuária. Na medida em que você tem empregados e cresce, tem que delegar, fazer organogramas, partilhar responsabilidades. E cuidar das finanças, sem dúvida. Ter dinheiro reservado para épocas em que não se consegue fazer dinheiro. É uma dinâmica complicada, por isso muita gente quebra.

Nem todos os experimentos de Gabriel foram bem sucedidos. Algumas coisas ele testou por um tempo, com base na literatura especializada, até perceber que era hora de dar o braço a torcer e desistir. Foi assim com diversos capins que importou para a Colonial, com o plantio de leguminosas entremeadas ao capim, com o uso de cana com uréia na alimentação do gado, e com diversos cruzamentos que foram feitos e que não emplacaram. Gabriel chegou a criar belmont red e indubrasil; até búfala ele trouxe para produzir leite. Por vezes idealista e sonhador, também investiu pesado em pesquisas para desenvolver um fungo supostamente capaz de matar a cigarrinha-das-pastagens sem a necessidade de usar pesticida. Com uma eficácia inferior a 20%, o fungo também foi abolido.

— É só alguém buzinar alguma novidade tecnológica no ouvido dele que o Gabriel já quer experimentar — resumia Santiago, à frente da Calciolândia.

A Calciolândia também ficou famosa pela premiada criação de cavalo mangalarga marchador de marcha picada. Mais do que Gabriel, era Vera quem cuidava do plantel.

De todos os projetos inovadores e ousados iniciados por Gabriel, o que mais o deixou frustrado foi a tentativa de desenvolver nelore de leite no Semiárido. A Colonial chegou a ter 250 vacas nelore na ordenha, algumas produzindo 5 mil quilos de leite por lactação, um período de cerca de nove meses. A meta era disseminar a genética leiteira nos rebanhos do Norte de Minas com o objetivo de engrossar a renda de seus proprietários, com a venda de leite e derivados, e também garantir que as vacas continuariam dando leite nos meses de seca. Para os pesquisadores da Embrapa, o nelore poderia ser tão leiteiro quanto o gir, desde que seguisse um processo semelhante de associativismo e melhoramento genético. Para a maioria dos fazendeiros de Janaúba e arredores, no entanto, criar nelore de leite não passava de mais uma esquisitice do Dr. Gabriel. No final dos anos 1990, ao notar que seu projeto não encontrara eco depois de duas décadas pregando no deserto, o engenheiro acabou cedendo.

— Ninguém faz nada sozinho — ele lamentava.

Ao mesmo tempo, para atender à demanda crescente, Gabriel incentivaria, na década de 1990, cruzamentos como o nelorando e o girolando (de nelore com holandês e gir com holandês), e, a partir de 2000, o cruzamento tríplice entre gir leiteiro (25%), nelore de corte (25%) e gado holandês (50%), somando 50% de sangue indiano e 50% de sangue europeu. Isso resolvia duas questões: atendia aos anseios do pequeno produtor, em especial no Semiárido, pela rusticida de e por ser, simultaneamente, bom de carne como o nelore, e com farta produção leiteira, como o holandês e o gir — este com herança genética testada nas baterias feitas pela Embrapa e pela ABCGil. E tinha a vantagem de aumentar o número de possibilidades: no Brasil, há cerca de dez vezes mais gado nelore do que gir. Em 2014, o rebanho bovino brasileiro chegou à casa de 209 milhões de cabeças, segundo o IBGE; destas, 80% são de raças zebuínas, e entre estes, 90% são de gado nelore, ou seja quase 150 milhões de cabeças; todas as outras raças de bos indicus chegam a 15 milhões de animais.

O resultado desse cruzamento, batizado inicialmente como nelogirolando, passou a ser chamado simplesmente de zebulando na primeira década do século XXI.

FAZENDA DE ENGENHEIRO. O conceito não existe. Nunca existiu. Mas, se fosse preciso formulá-lo, defini-lo ou exemplificá-lo, bastaria atentar para a gestão das fazendas de Gabriel. Fazendas, não: empreendimentos agropecuários. Suas terras sempre foram, acima de tudo, empreendimentos.

— A atividade produtiva do empresário, seja comércio a varejo, atacado, construção ou pecuária, é sempre semelhante — dizia Gabriel. — Na medida em que você tem empregados e seu empreendimento começa a crescer, tem que delegar responsabilidades, fazer organogramas, controlar o fluxo de caixa, montar um planejamento estratégico.

Se muitos dos primeiros funcionários da AG foram recrutados na roça, entre moradores de Arcos e Iguatama ou nas famílias de alguns empregados da Fazenda São Miguel, como Pedro Berto e José Felisbino, nos anos 1950, agora Gabriel promovia o caminho inverso, trazendo da AG, em especial do departamento de finanças, pessoal qualificado para pôr ordem na roça. Foi assim com Jordane Silva, por exemplo, que deixou a área de controle da AG, por recomendação de Álvaro Andrade, para implementar um sistema de custeio na Calciolândia, sob a orientação de José Aparecido. Era para ser um trabalho temporário, mas Jordane foi ficando. Em alguns anos, seria nomeado gerente, um indício do quanto Gabriel valorizava quem soubesse lidar com custos e receita, gestão e planejamento. Coincidência notável: o primeiro serviço de Jordane, ainda garoto, foi justamente na fazenda, capinando as margens do canal.

Certa vez, o jornalista e criador Carlos Alberto da Silva, editor da revista Gir Leiteiro, foi visitar a Calciolândia e notou um calhamaço de 100 páginas sobre a mesinha de cabeceira.

— Planejamento estratégico? — ele estranhou o título.

— Pois é — Jordane respondeu. — Aqui a gente tem um desses atualizado a cada ano.

Conjuntura econômica, tendências do mercado, principais informações sobre a concorrência, pontos fortes e fracos do próprio rebanho, detalhes sobre as matrizes, tabela de preços e número atualizado de doses de sêmen vendidas de cada touro certificado, metas de produção, objetivos, estatísticas, cronograma, tudo era minuciosamente descrito no planejamento estratégico de cada fazenda. No catatau também constavam todos os eventos dos quais a fazenda participaria ao longo do ano, entre feiras e leilões, a fim de se organizar o calendário de confinamento dos animais e viagens. Também trazia as diretrizes das áreas comercial e de produção.

Com base nesse planejamento, montavam-se programações semestrais, mensais e semanais, e definiam-se as tarefas e metas de cada funcionário, conforme o cargo. Os gerentes tinham suas programações; os encarregados e os vaqueiros também tinham as suas. A agenda era repassada e conferida sistematicamente. Para manter as fazendas sob controle, Gabriel cobrava memorandos semanais, no princípio por escrito e, mais tarde, gravados em fitas K7. Embora haja um consenso de que suas técnicas administrativas foram trazidas da AG — entre elas a política de participação nos lucros e gratificação por desempenho, implementada nos anos 1990 para parte dos funcionários –, muitas das estratégias empregadas por Gabriel tinham sido herdadas de seu pai. Foi Donato, por exemplo, quem estabeleceu a cobrança de relatórios diários e semanais de seu staff. Gerentes e encarregados eram convidados a ir até a sede da São Miguel, após o jantar, para transmitir o relatório diretamente ao patrão. Não todo dia, nem todos eles, mas alguns, com frequência. Na varanda, punham-se a discutir sobre o que havia sido feito no dia, na semana, e quais as prioridades para a manhã ou a semana seguintes.

Mesmo os empregados que não se entendiam com lápis e caneta recebiam formulários concebidos especialmente para isso, de fácil compreensão. Alguns continham campos a serem preenchidos com dados numéricos pelos vaqueiros: quantos litros de leite, quantas ordenhas, quantas vacas prenhes. Essas táticas foram incorporadas por Gabriel num primeiro momento. Mais tarde, os formulários foram substituídos por gravadores.

Com a popularização dos gravadores portáteis, daqueles que funcionavam com mini-fitas e cabiam no bolso, Gabriel decidiu comprar mais de uma dezena deles e distribuir pelo pessoal das fazendas. Em vez de escrever relatórios, os funcionários passaram a gravar memorandos em áudio. Era um vai-vem de fitinhas que não acabava mais. Primeiro, o encarregado registrava seus comentários. Acusava alguma avaria na cerca, um pasto carente de irrigação, contava da vaca que pariu, do touro que morreu, da inseminação realizada, da novilha que teve o primeiro cio. Em seguida, o gerente ouvia aquela fita e gravava seus comentários na sequência, já contextualizando os episódios, sugerindo abordagens e propondo soluções para os problemas citados no boletim anterior. A fita seguia para Gabriel, que as ouvia no trânsito, às vezes até na esteira ergométrica, ou pedia para a secretária transcrever, para ler com mais calma.

O processo era bastante eficiente. Havia um único senão: esticava o tempo para decidir sobre assuntos que poderiam ou deveriam ser resolvidos rapidamente. Os gerentes ficavam ansiosos por causa do comportamento metódico e detalhista do patrão, com medo de perder a hora de um plantio ou mesmo de uma venda.

— Se for depender do Gabriel, o galpão não fica pronto nunca — comentavam. — Ele vai querer trazer um engenheiro, contratar escritório de arquitetura para fazer um projeto…

Intriga, é claro. Qual empresa não tem as suas? Mas, com telefone à disposição, o processo implementado por Gabriel não deixava de causar desperdício de tempo. Basta pensar num gerente que, todos os dias, tinha de receber as gravações de quatro ou cinco encarregados, ouvir todas elas para, só então, gravar seus próprios comentários.

Algumas gravações geravam não apenas decisões importantes para a gestão da fazenda, mas também boas risadas. Geraldo Bispo, um encarregado de origem muito simples e sem estudo, tinha o hábito de deixar mensagens curiosas, numa gramática só sua. Uma de suas manias era trocar o verbo “ter” pelo verbo “ser” ao quantificar o rebanho de determinada fazenda do grupo.

— Aqui nós somos um jegue, dois burros, oito cavalos…

Livre associação era com ele mesmo. A palavra patamar, por exemplo, ele usava para se referir a água empoçada, brejo, atoleiro. Talvez pela semelhança com pântano. E mais: De tanto ouvir a expressão melhoramento genético, concluiu que todo melhoramento tinha de ser genético.

— Choveu demais nessa parte da fazenda e a cerca está precisando de um melhoramento genético — anotava na fita. Gabriel também costumava andar de um lado para o outro com um gravador no bolso. Ou dois: era comum vê-lo gravar suas orientações num aparelho enquanto o outro reproduzia os boletins dos funcionários. Ao percorrer a fazenda, valia-se também de uma máquina fotográfica, usada para registrar o que visse de errado. Muitas vezes, embora o gerente estivesse a seu lado no momento do flagrante, Gabriel preferia ficar quieto e fazer a foto. Passavam-se dois ou três dias até que ele fazia chegar às mãos do administrador um relatório completo, ilustrado, oficializando suas reclamações e diretrizes.

Numa ocasião, percorrendo uma área de mata da Colonial com pessoal da fazenda, Gabriel flagrou um touro, tentando cruzar com uma vaca registrada, nelore excepcional de sua propriedade. Fotografou o intruso e foi embora sem dizer nada. Dias depois, chegou o memorando. Em destaque, a foto do animal e a seguinte legenda: “Eis a prova do crime”. Uma falha como aquela, deixar um animal circular pela propriedade, poderia causar prejuízos graves. Bastaria que ele emprenhasse uma daquelas vacas selecionadas para que se perdesse uma geração, gerando um garrote bem mais barato. E poderia emprenhar mais de uma vaca, por que não?

— O capim desse piquete está alto demais e já deveria ter sido consumido — Gabriel dizia, ao microfone. — Ponto negativo para quem deixou isso acontecer e não trouxe o gado para cá no momento certo.

Os visitantes gargalhavam. À noite, Gabriel tentava um afago, um convite afetuoso.

— Vera trouxe um vinho especial — ele dizia, ao telefone. — Dá um pulo aqui em casa pra gente tomar uma taça.

Não se tocava mais no assunto, nem havia pedidos de desculpas, mas todos sabiam que esse era seu jeito de se mostrar arrependido. Mesmo assim, a mensagem ficava: não havia um que voltasse a cometer o mesmo deslize.

Em geral, Gabriel ralhava na intimidade, olho no olho, longe do microfone, mas com a mesma assertividade. Tinha um jeito característico de se fazer entender. Se via um piquete com o pasto muito baixo, anotava:

— Ô, Jordane, peço que, doravante, não deixe o capim ficar tão baixo.

Bastava ouvir a palavra doravante para que o funcionário entendesse que o papo era sério.

Quando via um gado acelerar o passo ao sair do curral, sem que o ponteiro conseguisse conter o ritmo, reclamava:

— Não deixa correr, poxa.

Pronto. Usou a palavra poxa, não adiantava argumentar. Pior do que isso, só mesmo quando dizia “meu caro”.

— Não, meu caro, tem que andar devagar, que nem procissão de enterro, para não machucar o úbere.

EMBORA TENHA SEMPRE COLOCADO DINHEIRO nas fazendas quando fosse preciso, o bolso de Gabriel podia governar seu humor e suas atitudes com a mesma coerência com que a ânsia por inovação impulsionava suas ações, combinando o semeador de sonhos com o empreendedor disciplinado.

Para um homem que aprendeu a mexer com fazendas com a mesma racionalidade que orientava sua atividade na construtora, nada mais lógico do que fechar uma empresa que opera no vermelho. Lucro, mesmo, as fazendas só começaram a dar em meados dos anos 1990. Na Calciolândia, só depois que os resultados dos testes de progênie começaram a chacoalhar o mercado e a atrair o interesse de muita gente para o gir leiteiro. Até então, havia empate. Gabriel drenava o faturamento para financiar mais pesquisas e investir continuamente na propriedade.

— Chega de honras e glórias — passou a repetir, nas reuniões de planejamento, revelando pragmatismo e certo cansaço após uma vida inteira de ousadias e pioneirismo. — Eu quero é lucro. Deixa as honras e glórias para os outros.

— Conheci um velho que dizia que a inteligência mais rara que tem é a “ganhadeira” de dinheiro — ele contava. — Porque está todo mundo pelejando para isso, mas poucos conseguem ganhar.

Algumas de suas dicas são atemporais. Uma delas é sempre manter algum dinheiro reservado para os períodos em que não entra nada, como nos tempos de seca, quando a produção de leite cai sensivelmente.

— Essa é uma dinâmica complicada, principalmente em fazendas, que dependem de fatores naturais e climáticos e que operam em ciclos. Por não entender essa dinâmica, muita gente quebra, assumindo compromissos sem recursos para honrar.

Outra dica de Gabriel é planejar muito bem os investimentos que precisam ser feitos para jamais depender de agiota.

— Juros altos são o caminho mais curto para a falência.

Em suas fazendas, empréstimos foram feitos no início, normalmente para melhorias pontuais, mas a regra geral sempre foi empenhar recursos próprios, compatíveis com a receita e facilmente recuperáveis, e aproveitar as melhores condições do mercado de forma austera. Vale lembrar que a Colonial só foi comprada por Gabriel porque havia a Sudene, que lhe garantia adiantamento a juro zero.

GABRIEL NUNCA FOI UM ESTUDIOSO de estratégias de marketing. Mas o tino para os negócios fez com que ele se tornasse pioneiro também numa das mais básicas estratégias de divulgação agropecuária: os leilões de elite realizados em fazenda. O primeiro leilão de gado em fazenda de Minas Gerais foi feito por ele, na Colonial, em 1981.

Gabriel, ao microfone, abre o primeiro leilão da Fazenda Colonial, em 1981.

Antes disso, os leilões eram feitos exclusivamente em feiras e parques de exposição, tanto em Belo Horizonte quanto em Uberaba, organizados por associações de criadores ou entidades de pesquisa, como a Emater. Assim mesmo, eram eventos esporádicos, que agregavam produtores mais pela oportunidade de trocar informações e conferir palestras do que propriamente pelo potencial de venda. O comércio de gado ainda se dava majoritariamente por meio da relação direta entre vendedor e comprador, em visitas às fazendas ou mediante a intermediação de um mascate, ou em feiras de gado, nos quais os produtores alugavam piquetes para exibir seus animais como se montassem uma vitrine, mas sem o rito dos lances e das batidas do martelo.

Com Trajano Silva como leiloeiro, forró, cachaça artesanal, churrasco e comida típica de tropeiros, o evento inspira outras fazendas do Norte de Minas a organizar o próprio leilão. Acima, curral tomado por bois (e carros) em razão da festa e churrasqueiros contratados para servir os visitantes.

Gabriel se encantou com a dinâmica dos leilões de gado realizados no Rio Grande do Sul e trouxe de lá o melhor leiloeiro da época, Trajano Silva, para fazer o primeiro leilão de Janaúba, em outubro de 1980. Já no ano seguinte, teve a iniciativa de levar o leilão para a fazenda, uma prática comum nas estâncias gaúchas e incipiente no estado de São Paulo.

O sucesso foi estrondoso. Logo os leilões da Colonial viraram tradição no norte de Minas. Houve ano em que a propriedade sediou quatro leilões, tamanho o interesse. A cada edição, a fazenda se preparava para receber produtores de São Paulo, do Rio, da Bahia, gente que viajava mais de mil quilômetros para conferir a criação de Gabriel. Desembarcavam de seus aviõezinhos na véspera, passavam a noite espalhados pela sede e pelas casas dos funcionários, e invariavelmente arrematavam algum animal antes de voltarem para suas terras.

O campo de pouso ficava apinhado. As ofertas não se restringiam ao gado local. Bezerros das fazendas vizinhas, gerados com a genética da Colonial, também eram oferecidos. Todo o evento era pensado para seduzir o comprador.

O ritual começava com um forró na noite de sexta. Era a oportunidade de entrosar o grupo. Gabriel circulava animado, queria conhecer os criadores, saber das novidades. Tinha fazendeiro que arrumava namorada, o que tornava o fim de semana ainda mais animado. Quase nove da noite, toca o telefone:

— Estamos saindo daqui de Montes Claros e vamos chegar aí em menos de uma hora.

— Puxa, não vai dar — Gabriel respondia. — Nossa pista não tem luz, não opera à noite. Vem amanhã cedo.

— Mas de jeito nenhum! A gente não vai perder o forró por nada nesse mundo. Se vira. Dá um jeito de iluminar a pista.

E lá iam os automóveis de farol aceso se alinhar nas duas margens do campo de pouso para indicar a área de pouso.

Animado, depois de uma noite de festa, não tinha fazendeiro que não arrematava ao menos uma novilha. No sábado, antes mesmo do início do leilão, Ivonei começava a circular pelo pátio com uma garrafa de pinga.

— Tem uma cachaça boa aqui, quer provar? — Mas regrava a quantidade, punha um dedinho apenas no copo, não mais do que isso. Se alguém reclamasse, era a chance de Ivonei desfilar o discurso marqueteiro:

— Tá maluco? Não pode ficar bêbado antes do leilão.

Dali a meia hora, Ivonei voltava com a garrafa, para despejar mais um dedinho da bebida. E assim o dia seguia, ao som de viola, com comida típica de fazenda, preparada após um ritual cênico complexo, que simulava a chegada de uma tropa, com direito a toque de berrante e transporte de mantimentos em bruacas. O pessoal da Colonial ficou tão experiente nisso, e tão conhecido, que logo surgiram convites para que fossem montar o primeiro leilão em João Pinheiro, o primeiro leilão em Montes Claros. A turma ia, incentivada por Gabriel. Em cada lugar, estimulava-se mais e mais a venda de seus reprodutores.

Nessas ocasiões, quem era apresentado ao Gabriel pela primeira vez costumava se surpreender. Jeito simples, gestos comedidos, porte franzino, prosa delicada, em nada parecido com o estereótipo do rei do gado, inevitavelmente expansivo e falastrão. Faltavam em Gabriel a pança proeminente e o ar presunçoso.

Nas memórias de quem conviveu com ele nos tempos áureos dos leilões e exposições de gado, desfilam “causos” de peões e produtores que se punham a conversar com Gabriel, por longos minutos, sem fazer ideia de que o interlocutor era o famoso doutor Gabriel Andrade, pioneiro do gir leiteiro, dono da Calciolândia, fundador da Andrade Gutierrez.

Certa feita, a prosa se deu no hall de entrada de uma sofisticada casa de eventos onde acontecia uma dessas maçantes e enfadonhas cerimônias promovidas por empresas de fertilizantes, fábricas de trator ou associações de criadores para homenagear personalidades do mundo rural, por serviços prestados, reconhecimento à obra, esse tipo de coisa.

— Que evento chato! — o moço comentou.

— É mesmo — Gabriel concordou.

— Sempre essa falação. Patrocinador babando ovo, homenageado fazendo discurso. Tá louco. Vim tomar um ar aqui fora para não morrer de tédio.

— É, aqui fora é mais agradável.

Papo vai, papo vem, Gabriel interrompe delicadamente a conversa:

— O senhor me dá licença que agora tenho de voltar lá para dentro. Chamaram meu nome.

A mestre de cerimônia acabara de anunciar o homenageado da noite.

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Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi