Cercado por filhos e netos, e ao lado de Vera, no aniversário de 80 anos, em 2006. Há muitos deles nos retratos distribuídos pelos aparadores em sua casa. São sete filhos, 19 netos e dez bisnetos. Talvez mais. A produção não para, é difícil acompanhar

9 | Fazendeiro do ar

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
18 min readDec 3, 2015

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GABRIEL ABRE A PORTA DE CASA e desce os degraus para me receber. Através do parabrisa, observo seus passos miúdos, cadenciados, amparados numa bengala. Sua postura, sempre ereta, jamais denota arrogância ou presunção. Aos 87 anos, Gabriel é um homem que olha nos olhos. Costura mediações com suavidade e constrói consensos com gentileza e diplomacia, nunca com arbítrio ou dissimulação. Se um dia perdeu as estribeiras, deve ter sido há muito tempo, em outro século.

Com um gesto automático, quase um tique, Gabriel espicha o olhar para o céu, como quem interpreta nuvens e adivinha as horas: hábito de sertanejo empenhado em saber se vem chuva. Num instante, abaixa novamente o rosto, confere o chão onde pisa, apura os sentidos e segue em frente. Nenhuma pedra no caminho, apenas as retinas cansadas.

Acho graça na livre associação. Seu aspecto — deveras discreto, absorto, introspectivo — remete a outro Andrade, também mineiro, com o qual não se conhece qualquer parentesco: o poeta Carlos Drummond. Já na minha primeira visita, anos antes, notara a semelhança; e ela parece se intensificar à medida que mais poesia se desgarra dos gestos e das palavras desse velho construtor.

Aproxima-se até quase tocar meu carro enquanto estaciono. Veste calça jeans e camisa social, fechada até o último botão. Apesar do calor, enverga um leve casaco de tecido sintético, cinza claro, abotoado até a metade. Um dos botões mais baixos, que deveria ter sido fechado, permaneceu aberto por descuido ou distração, apartado da casa que seria sua por direito. Gabriel nem repara. Tampouco faz diferença para ele o alinhamento do colarinho ou o conflito de ritos e cores entre as peças de roupa: azul com marrom, xadrez com listrado, cinto social com tênis. Não importa. É tempo de conciliação. Estende-me a mão com um sorriso, me chama pelo sobrenome e me conduz para o interior da casa, ombro com ombro.

Gabriel entre jabuticabeiras. Viúvo, ele mora sozinho na casa que Vera construiu.

Gabriel mora numa casa bastante espaçosa, com três pavimentos, pomar, piscina e quadra de vôlei, no alto do bairro Gutierrez, vizinho ao Círculo Militar. Foram Gabriel e Vera que a construíram, nos anos 1980. Menos Gabriel do que Vera, sempre às voltas com croquis, plantas em papel vegetal, catálogos de produtos e orçamentos de materiais.

Ao conceber o projeto, optaram por cobrir com janelões de vidro toda a lateral do pavimento principal: cerca de 30 metros de paisagem, repartidos em três salas. Um vistaço: o olhar pode transgredir a parede, transpor as ladeiras do bairro e cruzar o centro da cidade até se perder no horizonte, junto à Serra da Piedade, a leste, e à Serra do Cipó, a nordeste. Os primeiros prédios começaram a arranhar o céu e o cenário nos anos seguintes, sem jamais roubar-lhe totalmente a graça. Em 1991, a rua ganhou o nome de João Furtado, em homenagem ao pai de Vera.

Quando o casal chegou aos 80 anos, os dois se mudaram para um apartamento, próximo do Minas Tênis Clube, por insistência dos filhos. A casa parecia grande demais para o casal, e os filhos os queriam num lugar que lhes permitisse passear a pé. Também corria na família a hipótese de vender a casa para uma incorporadora, que ergueria ali uma torre enorme, um condomínio de luxo, revertendo aos Andrade uma quantia considerável pelo terreno. A mudança durou pouco. Vera e Gabriel preferiram voltar, incapazes de dar as costas para três décadas de história.

— Lá fazia muito calor no verão e muito barulho à noite, principalmente às sextas e sábados — ele justifica.

Gabriel consulta o visor do relógio, um modelo digital com pulseira de plástico e números enormes, e propõe:

— Chega para cá, vamos tomar um aperitivo.

Na cozinha, põe-se a escolher um rótulo de cachaça no armário. Salinas, Vale Verde, Claudionor. Coloca algumas garrafas sobre a mesa. Experimenta um gole de Germana, meio centímetro despejado no copinho, mas não se convence. Testa a Anísio Santiago.

— Essa é melhor.

Estende um copo, ainda pensando na pinga.

— Verinha gostava desta aqui — e exibe uma velha garrafa de Motinha.

Na casa de três pavimentos, há sempre uma funcionária de plantão e um segurança checando as áreas externas. Desde a morte de Vera, em 2011, após seis anos de luta contra o Parkinson e um AVC fulminante, salas e corredores parecem ainda mais amplos.

Os filhos que ainda moram em Belo Horizonte o visitam frequentemente — quarta-feira é o dia do jantar familiar. De vez em quando, via Skype, Gabriel mata a saudade da filha Luciana, radicada nos Estados Unidos, e revê de tempos em tempos alguns dos netos, hoje espalhados pelo mundo. O piano de cauda está lá, mas nunca é tocado. A piscina voltou a receber o disciplinado Gabriel há pouco, depois de um período sem nadar.

Nas paredes, os quadros continuam os mesmos, escolhidos por Vera. São muitos. Há obras de Di Cavalcanti e de Enrico Bianco. Três telas de Portinari. Algumas pletoras de cores assinadas por Chanina, polonês radicado aos 9 anos em Belo Horizonte. Alguns gatos. Outras telas rubricadas por Guignard. Junto à escada, uma seção inteira tomada por representações de Dom Quixote e Sancho Pança, em óleo, carvão ou gravura. Há, ainda, esculturas e cerâmicas de Leda Gontijo, amiga íntima de Vera.

Sobre as mesas e os aparadores, dezenas de porta-retratos, abarrotados de rostos familiares. São sete filhos, 19 netos e dez bisnetos, ele enumera. Talvez mais. A contagem muda depressa, é difícil acompanhar. Aos retratos, somaram-se dezenas de imagens de Verinha após sua morte, muitas delas improvisadas com scanner e papel sulfite, fixadas com durex nos armários da copa, com percevejo no mural, com ímã na geladeira. A ausência da companheira — com quem completou bodas de diamante, em 2009, e por apenas dois meses não conseguiu completar 70 anos de namoro, em 2011 — faz-se presente nessas cópias e, de alguma maneira, o conforta.

— Ajuda a encher a casa — ele diz, referindo-se mais ao próprio vazio do que ao vazio da residência.

De repente, Gabriel pousa os olhos num canto qualquer da casa, como se observasse algo por trás da parede, além do horizonte, e solta uma frase tão prosaica quanto lapidar:

— A morte é uma coisa muito difícil para quem fica.

Levanta-se sem dizer nada e, assertivo, vai buscar algo na sala de TV. Manuseia os DVDs, até encontrar o que procura.

— Petra fez esse filme. Gostei muito.

Gabriel traz nas mãos o estojo do DVD da neta Petra Costa, um longa metragem delicado e dilacerante intitulado Elena. Nele, a diretora empreende uma jornada pessoal e catártica em busca da memória da irmã — para, no final, tentar encontrar a si mesma. Elena, primeira neta de Gabriel e Vera, a filha de Li An, que viveu até os 6 anos na clandestinidade e tornara-se atriz na adolescência, morrera em Nova York, em 1990, aos 20 anos, após ingerir uma combinação letal de álcool e aspirina. Os avós tinham acabado de voltar de lá, na mesma semana. Petra tinha 7 anos.

PARA ACOMPANHAR A CACHAÇA, Gabriel decide beliscar alguma coisa. Tira uma torrada de um pote de vidro e abocanha um pedaço. Retalha em cubos um naco de queijo da Serra da Canastra, curado na medida, e me oferece um pedaço.

— O povo costuma comer mais novinho — diz, referindo-se ao queijo. — Mas assim é melhor, mais curado.

Gabriel entende de queijo da Serra da Canastra. Desde 2007, apoia e colabora com a ONG Sertãobras, fundada naquele ano em parceria com a filha Li An com a missão de defender o desenvolvimento justo e sustentável do sertão. A ONG promoveu a valorização de diferentes tipos de queijo de leite cru, produzidos de forma artesanal em várias regiões do Brasil. Divulgou também o uso de meios de transporte alternativos, em especial o tuk-tuk, um triciclo motorizado muito usado no Extremo Oriente e no Peru.

A Sertãobras surgiu antes mesmo de encontrar seu foco. Gabriel se entusiasmou com a ideia de fundar uma ONG, algo que lhe permitisse manter uma atividade de caráter social, e pôs-se a procurar um tema, uma área de atuação. Sua primeira ideia foi conceder microcrédito em Minas Gerais, estimulado pela leitura de um livro do banqueiro Muhammad Yunus, de Bangladesh, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2006. Em seguida, surgiu a ideia de apoiar os produtores de queijo da Canastra.

— Vamos ver se descobrimos por que o queijo de lá não chega a São Paulo.

Na Serra da Canastra, a apenas duas horas de viagem da Calciolândia, ficaram sabendo de uma lei que proibia comercializar queijo de leite não pasteurizado fora do Estado. A batalha foi longa, mas a legislação acabou sendo alterada. As bactérias encontradas nesses queijos não oferecem os perigos apontados pela antiga legislação — ao contrário, podem ser benéficas.

A causa do queijo motivaria uma curiosa e divertida conversa com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem Gabriel tinha sido eleitor. Ao longo de 2008, por ocasião do aniversário de 60 anos da Andrade Gutierrez, foram organizados alguns jantares, em diferentes cidades, com a intenção de celebrar a efeméride com funcionários, diretores, clientes, investidores e acionistas. Um dos jantares aconteceu em novembro, em Brasília, na casa de Flávio Machado, diretor da AG, e contou com a presença de alguns expoentes do governo federal. Além do presidente, compareceram o vice, José Alencar, e alguns ministros, entre eles a então titular de Minas e Energia, Dilma Rousseff. O ex-ministro Delfim Netto e o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, também passaram por ali. Na mesa principal, Lula, Alencar e Dilma sentaram-se ao lado de Gabriel, Sérgio Andrade e Ângela Gutierrez. Completavam a mesa um dos diretores da Globo e Carlos Jereissati Filho, sócio da AG na Oi, empresa de telecomunicações.

Como sobremesa, foi servido queijo da Canastra com a goiabada cascão produzida por Vera na Calciolândia e por Nenén Gutierrez na fazenda Morada Nova: um romeu-e-julieta digno daquela audiência. Li An, que estava lá, aproveitou a oportunidade e explicou rapidamente a Lula que aquele queijo não poderia ser vendido fora de Minas em razão da legislação antiquada. Contou também da ONG que haviam criado para discutir o tema e pleitear uma nova postura do ministério da Agricultura. O presidente fez que não entendeu a indireta e, como resposta, disse que ela deveria abrir uma empresa, e não uma ONG.

— Presidente, escolhe — a filha de Gabriel, disse baixinho. — Ou o senhor legaliza o queijo ou a maconha.

Rápido e bem humorado, Lula retrucou:

— Eu legalizo o queijo. A maconha deixo pra Dilma.

Pré-candidata à Presidência da República, Dilma disse “legalizaremos”. O chiste virou assunto no dia seguinte, comentado entre Lula e os ministros.

Durante o jantar, Sérgio fez um discurso comparando o Brasil e a Andrade Gutierrez de 1948 com o Brasil e a Andrade Gutierrez de 2008. Números, conceitos, estatísticas. Em janeiro, a revista Piauí traria uma entrevista com Lula, feita dias depois do jantar, na qual o entrevistador, Mário Sérgio Conti, chama atenção para o fato de o então presidente se isolar nos fins de semana e quase nunca se encontrar com políticos ou jornalistas. Lula, na resposta, admitiu certa resistência a participar de eventos sociais durante o mandato, e citou o jantar da AG como uma rara exceção:

— O mandato parece longo, mas é curto. Então veja, eu estou aqui há seis anos. Eu nunca fui a uma festa, eu nunca fui a um restaurante, nunca fui a um aniversário, eu nunca participei de nenhuma atividade. Para não dizer que eu fui a duas festas, eu fui a duas. Eu fui a uma dos 60 anos do Pão de Açúcar em São Paulo, a convite do Abílio Diniz, terminei não jantando, e fui a uma aqui esta semana, eu e o José Alencar, dos 60 anos da Andrade Gutierrez. Foram as duas coisas a que eu fui nestes seis anos de governo. Não vou nem em aniversário de companheiros.

— E por quer essas duas, presidente?

— Essas duas porque são simbólicos 60 anos — ele arrematou. — Eu acho importante uma empresa que dura esse tempo inteiro.

GABRIEL VAI ATÉ A ADEGA climatizada e escolhe um vinho chileno: um cabernet sauvignon do Vale do Maipo para acompanhar o almoço. Como num ritual, abre a garrafa meia hora antes da refeição e despeja parte do conteúdo num decantador. Para respirar.

— Verinha preferia os vinhos de Bordeaux e os da Borgonha — anota. — Mas esses do Novo Mundo são muito bons. E os portugueses também.

O anfitrião leva jeito para receber. Não gostava muito, mas passou a gostar de uns 20 anos para cá, principalmente depois de se aposentar das tarefas cotidianas da AG, nos anos 1990, e deixar também o conselho, nos anos 2000. Manteve a mania de bater ponto no escritório, a poucos minutos de casa, onde uma secretária lhe organizava a agenda e onde podia ler, diariamente, o clipping de notícias, os principais jornais do dia e os informes internos, sempre interessado em acompanhar o andamento da empresa. Também fazia esteira e musculação, na academia montada no trabalho, antes de voltar para casa a tempo de pegar o almoçar.

Aposentado na AG pouco depois de completar 70 anos — e antes de a AG Concessões se juntar com a AG Telecomunicações na recente AG Participações —, o sobrinho Eduardo foi convidado em 2010 pela família para assumir a presidência do conselho e da diretoria da holding São Miguel, empresa que representa seus interesses e os de seus herdeiros junto à AG.

— Quase não vou à AG — diz Gabriel. — Não tenho mais nenhuma função. Virei desnecessário.

Na AG, ele é o GDA. Era assim, com as iniciais, que Gabriel Donato de Andrade assinava suas missivas. Até hoje o faz. Com o tempo, as três letras maiúsculas transbordaram as fronteiras do mundo corporativo e foram incorporadas com carinho pelos amigos e familiares. GDA fez isso, GDA fez aquilo.

Dos filhos, o único que tem cargo executivo na AG é Álvaro, membro do comitê executivo e do conselho de administração. Os demais tomaram outros rumos.

EM 1984, O CONSELHO DA AG ERA FORMADO por Gabriel, pelo sobrinho Sérgio Lins Andrade — filho e sucessor de Roberto —, e por Roberto Gutierrez — filho e sucessor de Flávio. Gabriel era o único membro da primeira geração, o único sócio-fundador que ainda permanecia à frente do conselho.

As famílias se mobilizaram, na primeira década do século XXI, em torno de uma estratégia capaz de preparar as próximas gerações para a condução da empresa. A percepção dessa necessidade foi reforçada em 2006 pelo falecimento precoce de Roberto Gutierrez, aos 53 anos, na época um dos três conselheiros, que morreu sem deixar sucessor. Laura assumiu as rédeas desse processo, cujo resultado foi o ingresso do primeiro neto dos fundadores no novo conselho, agora ampliado para nove cadeiras, com três conselheiros de cada uma das famílias.

A pequena empresa fundada por Gabriel, Roberto e Flávio em 1948, com apenas um trator e muita disposição para construir estradas, é hoje uma holding gigantesca, com obras em mais de 40 países e presença em diferentes setores de atividade, como o de telecomunicações e o de concessões rodoviárias. Parte do “Top 3” da construção nacional, ao lado da Camargo Corrêa e da Odebrecht, o Grupo Andrade Gutierrez participa de algumas das mais importantes obras de infraestrutura da década, como a Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo, a hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, e os trabalhos de ampliação e modernização de quatro estádios para a Copa do Mundo de 2014: o Beira-Rio, em Porto Alegre, o Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília, a Arena da Amazônia, em Manaus, e o Maracanã, no Rio de Janeiro.

Na condução das fazendas, o único filho a demonstrar real interesse em administrá-las como um negócio, sem falhar na assiduidade nem desprezar o foco na lucratividade, foi Flávio, que em 1991 passou a acompanhar Gabriel nas idas à Colonial, assumindo definitivamente sua direção anos depois. Flávio acabou comprando a Colonial em 2010, ao trocar um terço de suas ações da AG pela fazenda. A Fazenda Serrinha, em Betim, será loteada para a construção de um condomínio. E a Calciolândia, desde a morte de Vera, passou a ser propriedade de quatro irmãos, Laura, Heloísa, Álvaro e Luciana.

Há certa magia naquelas terras, já centenárias. Um emaranhado de memórias afetivas que vai muito além da atividade econômica, da criação de mangalarga ao melhoramento genético do gir leiteiro. Diante da sede, há uma palmeira com o nome de cada filho de Vera e Gabriel. Enormes tachos de cobre continuam soltando, todos os anos, deliciosas safras de goiabada cascão. Quem fechar os olhos e botar reparo poderá escutar ainda uma vez o constante assovio de Vera, o resfolego de sua sanfona ressonando no alpendre, a voz baixinha no lúdico exercício de botar nomes nos cavalos, a cada ano iniciados com uma letra, sempre remetendo de alguma forma ao nome da mãe. Em ano de letra B, por exemplo, a filha da égua Centelha poderia virar Brasa ou e a filha da Rocha ganharia o nome de Brita. Se fosse ano de letra F, Faísca e Falésia.

— Tenho ido menos, agora. Verinha é que gostava mais.

GABRIEL CONVERSA POR HORAS a fio. Antes, preferia ouvir.

Para justificar seu comportamento, Gabriel tinha ao menos um bom argumento:

— Deus nos deu dois ouvidos e uma boca — costumava dizer. — Então a gente tem que falar só a metade do que ouve. O bom é ouvir. Falar é perda de tempo.

Nas reuniões, tanto na construtora quanto nas fazendas, permanecia quase todo o tempo calado, estudando as palavras dos colegas. Espaçadamente, interrompia a exposição e interpelava o orador com alguma questão objetiva, pontual, ou trazendo um contraponto a ser considerado, como um advogado do diabo. Suas intervenções tinham como meta levantar problemas para que os interlocutores o convencessem. De qualquer coisa. A transferência de um rebanho de uma fazenda para outra, a construção de um novo curral, qualquer proposta passaria pelo crivo de Gabriel desde que passasse no teste da argumentação.

A vida inteira, ensinara aos filhos a importância de argumentar. E eram os argumentos que faziam a diferença. Se alguém à mesa sugeria a compra de uma construtora portuguesa, por exemplo, Gabriel desfilava suas questões até ser convencido da conveniência da transação. Se os argumentos não eram fortes o suficiente, permanecia agarrado às suas convicções, contrário ao que estava em debate.

Foi o que aconteceu no final dos anos 1990, quando entrou em pauta a entrada da AG no ramo das telecomunicações. O tema se encaixava no movimento geral da economia naquele momento, em que o governo federal era favorável à privatização das estatais. A proposta era encabeçada por Sérgio, que observava o faturamento das empresas de telefonia móvel nos Estados Unidos e, diante da notícia do leilão do Sistema Telebras, em 1998, se entusiasmava com a possibilidade de abocanhar parte desse filão. Parecia-lhe um segmento especialmente promissor em razão do tamanho do mercado a ser explorado, todo ele por se desenvolver no Brasil. E lhe agradava o fato de ser uma concessão de serviço público, com a chancela do governo federal, com o qual o grupo já estava acostumado a lidar. Não bastasse, o negócio teria a participação do BNDES, o que trazia certa segurança.

Gabriel era contra. O único fundador vivo da AG receava se meter numa área completamente nova, na qual a empresa não tinha experiência. Não seria a primeira vez que ela o faria. Já em 1969, por exemplo, a empresa construiu a fábrica da Titânio do Brasil (Tibrás), na Bahia, para produzir dióxido de titânio, um componente opacificante usado na indústria de tinta. Haviam sido feitos investimentos na área de mineração, ouro, cassiterita e extração de granito. Já no início da década de 1980, investiu num setor inédito, o de colonização, loteando terras e providenciando infra-estrutura para assentar três mil famílias no Projeto Tucumã, no Pará. A partir da política de diversificação de portfólio adotada nos anos 1990, a AG entraria em setores como saneamento, com a concessão da paranaense Sanepar, eletricidade, adquirindo parte da Cemig, e logística de material hospitalar, com a fundação da Logimed.

A telefonia, no entanto, lhe parecia uma área complexa demais para ser conduzida por uma empresa sem tradição.

— É um setor muito grande, com muita concorrência — ele argumentava, favorável a investir exclusivamente em áreas nas quais a AG tinha know how ou nas quais pudesse ser pioneira. — Além disso, é muito controlado pelas agências reguladoras. O governo privatiza, mas coloca muitas amarras para manter o controle. Por isso chama de concessão.

Em meio às divergências, Sérgio conquistou o apoio de Roberto Gutierrez, o outro conselheiro-acionista, também entusiasmado com o negócio, e aprovou-se a submissão de propostas no leilão do Sistema Telebras.

No dia do leilão, o consórcio integrado pela AG e outras empresas, entre elas a La Fonte, de Carlos Jereissati Filho, ganhou a concorrência pela Tele Norte Leste praticamente por acaso. Já convencido de que não seriam vencedores, e de que a concessão ficaria com algum consórcios formado por gente do ramo, o grupo ofereceu um ágio de apenas 1% sobre o valor mínimo. Sua concorrente ofereceu 30%, mas sua proposta foi rasgada imediatamente depois de ela ter faturado a Tele Centro Sul, cujo leilão precedeu o leilão da Tele Norte Leste. Pelas regras, cada consórcio poderia apresentar mais de uma proposta, mas ficaria com apenas uma das concessões, a que fosse leiloada primeiro, sendo automaticamente eliminada do leilão seguinte. Deu no que deu. A AG se tornou uma das sócias da Tele Norte Leste, futura Telemar/Oi.

Apesar dos rumores de que o grupo não conseguiria manter o negócio de pé, em razão da falta de experiência, sua presença no setor só fez crescer nos anos seguintes. Em 2009, a Oi anunciou sua fusão com a Brasil Telecom, antiga Tele Centro Sul, e, em 2013, nova fusão, agora com a Portugal Telecom.

— O negócio ainda é ruim — Gabriel insiste, passados mais de 15 anos. — Fui contra entrar nesse ramo, porque achava que não tinha nada a ver com a nossa tradição. E tive razão. Até agora não deu o lucro que se esperava.

A atividade é lucrativa, mas ainda representa menos de 10% do lucro do Grupo Andrade Gutierrez, enquanto construção e concessão são responsáveis, juntas, por quase 90%.

De uns tempos para cá, GDA passou a falar mais, a expor mais abertamente suas opiniões, a tecer comentários sobre todo tipo de assunto, da taxa de juros ao Bolsa Família, da obra de João Guimarães Rosa ao belicismo norte-americano. É capaz de recorrer a um verso de Shakespeare para jogar luz sobre determinado contexto banal, ou reconstituir todo o episódio da morte de Júlio César, incluindo o subsequente discurso proferido por Marco Antonio no Senado, para explicar a má interpretação de um ato seu pelos próprios amigos e parentes — capazes, segundo ele, de arriscar uma interpretação bem diferente do que de fato aconteceu.

Gabriel dá vazão ao fluxo de pensamentos. Uma história se engancha em outra como anéis numa corrente. Itaipu o faz lembrar de Furnas, obra de JK, que fora eleito com o binômio energia e transporte, e que ficava no caminho de Ribeirão Preto, e que tinha um lago formado pelo reservatório, e que virou destino turístico, onde a família costumava passear de barco nas férias, antes de Verinha comprar o motorhome, importado, e antes de fazer a casa em Cabo Frio, que depois virou uma pousada, do ex-marido de Laura, e bem antes do acidente de moto que deixou o Paulinho 20 dias em coma, coitado.

Mais cinco minutos de conversa e Gabriel desvia o assunto para contar da vez em que teve “xistose”, ainda criança, e, como se nada fosse, tira da cartola dois ou três termos científicos — molusco planorbídeo, hepatoesplenomegalia — para descrever o processo de contágio. A tradução dos conceitos vem em seguida. Em bom português, fica fácil entender que um caramujinho de forma espiralada serve de morada para um verme que ataca o fígado e o baço e faz o ventre dilatar.

Cartesiano e didático, Gabriel recorre ao senso comum para estabelecer contato, e hoje se expressa sem papas na língua: fulano é “um boçal”, sicrano “não faz nada que preste”, determinada coisa é “uma avacalhação”. De jovem positivista, tornou-se um octogenário humanista. Se interessa por alguns preceitos da medicina chinesa ensinados pela filha Heloísa; tem curiosidade em relação a técnicas de meditação e terapias holísticas; não tolera que os vaqueiros machuquem o gado com vara de ferrão; quase convenceu os filhos a não fazer missa de sétimo dia em homenagem a Vera, dizendo-se ateu.

Politicamente, mostra-se interessado no futuro da educação pública e comemora o acesso facilitado ao ensino superior por meio do ProUni, o crescimento da classe média, a redução dos juros, o aquecimento do setor de construção pesada em razão das obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Elogia as políticas de distribuição de renda, as cotas, os direitos civis, sempre envolto em pensamentos progressistas, quase de esquerda, impensáveis 30 anos atrás e aparentemente incompatíveis com seu patrimônio e sua tradição.

E dá-lhe ferroada:

— A política do Brasil República sempre foi muito malandra, movida pelos interesses dos grupos dominantes. Minha família teve culpa. Minha avó tinha um irmão que foi governador nessa política café-com-leite, que prestigiava os amigos.

— Itamar Franco foi um presidente notável. Mas, como ele era um pouco estranho, não lhe deram valor. Ele criou o Plano Real para salvar o país da inflação, só que teve um ministro da Fazenda que era muito hábil politicamente e nunca deu a ele o devido crédito. Tenho certa mágoa porque eu mesmo votei nele duas vezes para presidente, depois vi que ele não era tão patriota quanto aparentava.

De repente, Gabriel silencia. É o sono que bate, principalmente depois do almoço. Deita-se no sofá, sem hesitar. Faço menção de deixá-lo.

— Vai descansar na cama, Gabriel — eu proponho. — Depois retomamos.

— Não, fica mais. Vamos falar mais um pouco. Só quero esticar o corpo uns minutos.

Outras vezes, silencia por necessidade.

— Minha garganta não aguenta. Deixe-me buscar uma bala de mel.

E lá se vai o poeta, um outro Drummond, a passos miúdos pelo corredor, explorar mais uma vez os armários da copa. Fazedor de estradas e pontes, tocador de obra e boiada, cowboy de asfalto e estrelas: personagem em construção.

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Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi