Transamazônica

6 | Anos de chumbo e asfalto

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade
51 min readDec 3, 2015

--

TODOS PARECIAM AGITADOS naquela manhã.

O rádio estava ligado desde cedo, coisa rara naquela casa. Gabriel acompanhava as notícias com atenção, enquanto seu café esfriava na mesa. O pão permanecia intocado.

Vera, grávida de oito meses — e pela sétima vez –, quase não abria a boca. Ninguém abria. Muito de vez em quanto, trocavam duas ou três palavras apressadas, numa semi-conversa truncada, que os filhos não conseguiam decifrar.

Quando um reclame entrava no ar, Gabriel corria para mudar de estação, à procura de outro boletim extraordinário. Os locutores e repórteres embaralhavam informações sobre tropas insurgentes, marinheiros amotinados, reformas de base e certo discurso proferido pelo presidente no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, no dia anterior. A profusão de patentes e termos bélicos empregados no noticiário indicavam que algo muito grave estava acontecendo.

Aos poucos, os filhos mais velhos começaram a unir os pontos e a compor o cenário. Principalmente Marília, que, aos 13 anos, acompanhava os jornais e não perdia um debate político na televisão.

Num movimento brusco, Gabriel bebeu o que ainda havia de café em sua xícara e se levantou. Buscou no quarto a papelada do CPOR que o identificava como subtenente da reserva e, já perto da porta, encarou o filho Flávio com um olhar grave.

— Meu filho, eu não sei se voltarei — discursou, com a formalidade característica. — Vou até o Círculo Militar me colocar à disposição do Exército. Caso não retorne, peço a você, na condição de filho homem mais velho, que assuma o comando da casa.

Flávio, com seus quase 13 anos, arregalou os olhos e por pouco não engasgou com a instrução.

— Está bem — consentiu.

Era 1º de abril de 1964, e aquele diálogo ficaria para sempre registrado na memória do garoto.

AO LONGO DAQUELE DIA, Marília foi diversas vezes à porta de vidro para assuntar a rua, tentando enxergar o movimento descrito na rádio Mayrink Veiga. Mas nada acontecia naquele bairro. Em outros locais de Belo Horizonte, brucutus circulavam, militares exibiam suas armas, políticos discursavam e alguns poucos militantes de esquerda ensaiavam atos esparsos de resistência. Mas a falta de articulação entre os aliados do presidente João Goulart, o Jango (PTB), e a inépcia do governo em lidar com a insurreição indicavam o fracasso iminente.

Àquela altura, a campanha deflagrada na véspera pelo general Olímpio Mourão Filho, então comandante da IV Região Militar, em Juiz de Fora, arregimentara o apoio não apenas de setores das Forças Armadas, mas também da imprensa, da opinião pública, da classe empresarial e do governo norte-americano. Havia muita gente interessada em frear as tentativas reformistas de Jango e impedir o que os conservadores insistiam que iria acontecer, o avanço do vírus do comunismo. Se o Brasil cedesse à febre vermelha, como Cuba, outros países latino-americanos fatalmente o seguiriam, como um dominó.

Desde que empreendera uma inédita e ousada viagem oficial à China, em 1961, Jango jamais conseguira convencer os americanos de que suas convicções eram essencialmente democráticas. Sociais, sim, mas não socialistas. Após a renúncia de Jânio Quadros, Jango tivera que engolir quase um ano de regime parlamentarista, improvisado pelo Legislativo de modo a reduzir seu poder e coibir eventuais medidas exageradas, e apenas em 1962, após um plebiscito restaurar o regime presidencialista, pudera lançar seu programa de governo. Entre outras coisas, sua plataforma prometia reformar o sistema educacional, nacionalizar empresas privadas em setores estratégicos, e fazer a reforma agrária. Bastou para que sua cabeça entrasse em leilão — e seu governo, em contagem regressiva.

Como a maioria de seus colegas empresários e quase todos de seu convívio, Gabriel associava o comunismo ao que havia de pior. Menos por ideologia do que por pragmatismo. Filho e neto de produtores rurais, não via com bons olhos qualquer projeto de distribuição de terras, até porque aprendera cedo que produzir com eficiência exigia experiência e investimentos cada vez mais pesados, coisa escassa nas tais ligas camponesas. Nenhum país comunista crescia tanto, e se desenvolvia tanto, com tamanho investimento em infra-estrutura, quanto os Estados Unidos, donos das melhores estradas e da melhor tecnologia para fazê-las. Seguir o caminho de Cuba e aliar-se à União Soviética, então maior adversário do governo americano nos tempos de Guerra Fria, poderia ser fatal para os negócios.

Quando John Kennedy foi assassinado, por exemplo, em 22 de novembro de 1963, a reação de Gabriel foi a mais pragmática possível. Ele estava sozinho em sua sala quando as primeiras notícias chegaram de Dallas, no Texas. A cena dos disparos que atingiram o presidente americano no automóvel oficial, com a capota rebaixada, logo começaram a se repetir na TV. Foi o engenheiro Júlio Ferreira Neto quem resolveu adentrar o escritório do chefe para informá-lo.

— Doutor Gabriel, o Kennedy morreu.

Gabriel levantou a cabeça, sem demonstrar alteração, e apenas comentou:

— Puxa. E quem é o vice dele?

— Lyndon Johnson — Júlio respondeu.

— Ah, tá.

Embora estivesse surpreso com a morte do presidente americano, era de sua personalidade agir assim, de forma racional e lógica, mais preocupado com o impacto que aquela notícia poderia ter em sua empresa, em sua vida pessoal e no futuro do Brasil e do mundo. Essencialmente, o que interessava era saber quem seria seu substituto. O que viria agora? O que esperar?

Foi com a mesma visão de futuro, mais prática do que ideológica, que Gabriel saíra de casa naquela manhã. A ele, não interessava marchar ao lado de Mourão Filho, veterano do movimento integralista e redator do Plano Cohen (documento atribuído falsamente à Internacional Comunista no qual se expunham supostas estratégias para instalar o comunismo no Brasil), para colocar os militares no poder. O que lhe interessava era garantir a manutenção do regime democrático, o direito à propriedade, essas coisas que pareciam fadadas a desaparecer sob o governo de Jango.

O último estrilo do presidente tinha sido a promessa de nacionalizar as refinarias de petróleo, anunciada por ele no dia 13 de março, durante comício na Central do Brasil. Agora, até os sargentos e os fuzileiros o apoiavam. Onde tudo isso iria parar?

Os boletins radiofônicos explicavam que, ao adentrar o Rio de Janeiro durante a madrugada, a tropa de Mourão Filho já tinha recebido reforços de outros regimentos, vindos de Belo Horizonte e de São João Del Rei, e contava com o apoio de grande parte do Exército, da UDN e de uma multidão de civis, tão assustada com o fantasma do comunismo quanto a família de Gabriel.

No fim da tarde, horas depois de partir para o Círculo Militar com o patriotismo à flor da pele, Gabriel voltou aliviado para casa.

— Nem precisei me alistar — contou. — Já ganhamos. Sem dar um tiro sequer.

A família de Vera era religiosa e eu achei bonito. Acho que a gente fica muito orgulhoso com essas leituras ateístas e que um pouco de simplicidade e fé seria muito bom. Tive, então, uma fase católica. Ia à missa na igreja de Lourdes. Depois, na igreja de Cidade Jardim. Matriculei os filhos no Colégio Loyola. Deve ter contribuído para que os mais velhos rompessem com a Igreja.

Flagrado no contrapé, sem ter elaborado um plano de resistência, Jango descartou a hipótese de renúncia e voou do Rio para Brasília. No avião, teria confessado a um assessor a sensação de viver “um novo 24 de agosto”, referência ao dia do suicídio do então presidente Getúlio Vargas, em 1954. Mas não repetiria o ato. Em vez disso, optou por se refugiar em Porto Alegre, onde esboçaria uma última tentativa de retomar o governo ao lado do cunhado e colega de partido Leonel Brizola, um dos favoritos a sucedê-lo na eleição prevista para o ano seguinte.

Já no dia 2 de abril, uma quinta-feira, 800 mil pessoas tomaram as ruas do Rio de Janeiro na Marcha da Vitória. Estimulado pelas imagens que chegavam a Brasília, transmitindo o que parecia ser um clima de euforia popular, o senador Auro Soares de Moura Andrade (PSD), presidente do Congresso, foi à tribuna e declarou a vacância do cargo, alegando que Jango deixara o país (o que só aconteceria de fato no dia 4, com a mudança do presidente deposto e sua família para Montevidéu):

Atenção!

O senhor presidente da República deixou a sede do governo. Há, sob a nossa responsabilidade, a população do Brasil, o povo, a ordem. Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República.

Ranieri Mazzilli (PSD), presidente da Câmara, foi nomeado presidente da República no próprio dia 2. Seu sucessor no Palácio do Planalto, a partir de 15 de abril, quando acabou o governo provisório, seria o então chefe do Estado-Maior do Exército, Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro dos cinco presidentes fardados que ocupariam o cargo até 1985.

O GOLPE MILITAR DE 1964 — ou Revolução de 1964, como Gabriel costumava dizer — fez com que os planos da família mudassem diametralmente.

Até o final de março, o empresário estava tão convencido de que os comunistas tomariam o poder que, desde o ano anterior, deixar o país lhe parecia a opção mais segura — e a Bolívia seria a primeira parada nesses planos. Ele temia ver a Andrade Gutierrez estatizada e as fazendas invadidas. Muitos tinham os mesmos temores. Até em oração as famílias mineiras se uniam para exorcizar o demônio do comunismo, estimuladas pelo movimento Cruzada do Rosário pela Família, mais conhecido pelo slogan “família que reza unida permanece unida”.

Criado pelo padre irlandês Patrick Peyton, pároco de Los Angeles apelidado de “o padre de Hollywood” em razão de sua afinidade com o showbizz, o movimento pregava a união das famílias em torno do rosário. Por meio de missas campais realizadas em diversos países, quase sempre com patrocínio da CIA, Padre Peyton ajudou a difundir uma eficiente campanha anticomunista na primeira metade da década de 1960. Inclusive no Brasil, onde mais de um milhão de fiéis assistiram ao megaevento apresentado por ele em dezembro de 1962, no Rio de Janeiro. Esse mesmo movimento fez parte da gênese das diversas edições da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que tomavam as ruas de diversas capitais às vésperas do golpe, a primeira delas reunindo 500 mil pessoas em São Paulo, no dia 19 de março.

Vera, católica mais praticante do que Gabriel, sentia-se representada nesses eventos. E seguia a cartilha da Igreja na criação dos filhos: punha-os na catequese, matriculava-os em colégios católicos. Era preciso dar o exemplo, afinal.

O plano de migrar para os Estados Unidos surgira nesse ambiente, primeiro como sonho, alimentado em conversas prosaicas, para logo galgar o status de projeto. Disposto a fazer o que fosse preciso para preservar o patrimônio e a integridade da família, Gabriel estudou o mercado americano, as grandes obras em andamento no país de Lyndon Johnson, as leis que regulamentavam a atividade de construção civil em cada Estado. Quando João Goulart foi destituído, Gabriel já tinha estipulado o destino e, em linhas gerais, a data da viagem.

Havia se decidido pela Califórnia, o Estado mais industrializado dos Estados Unidos, dono do maior PIB. A fase era de economia aquecida, e além disso, o clima na região parecia o do Brasil, uma característica que ajudaria no período de adaptação e permitiria a Gabriel retomar a atividade rural se eventualmente tomasse a decisão. A hospitalidade da população, com muitos imigrantes latinos, também contribuía para a escolha.

Faltava definir a cidade. A predileção de Gabriel era por São José, a terceira maior da estado, onde o mercado justificava a instalação de uma empresa de construção pesada. Além disso, São José ficava a apenas 30 quilômetros da Universidade Stanford. Entre os meses de maio e junho, Gabriel faria um MBA na Escola de Negócios de Stanford e aproveitaria para percorrer a região. Seriam oito semanas dedicadas ao Programa de Formação de Executivos (Executive Development Program). Gabriel viajaria um pouco antes, no final de maio, para três semanas de aulas de inglês, uma orientação feita pela coordenação do MBA para que ele ampliasse seu vocabulário e ganhasse fluência no idioma.

— Falar inglês para comprar é fácil; quero ver falar inglês para vender — ele dizia.

Seriam pelo menos 80 dias na Califórnia. Se tudo desse certo, alugaria casa e obteria todas as orientações burocráticas necessárias para abrir um escritório da Andrade Gutierrez e transferir parte da operação para lá. Voltaria a Belo Horizonte em meados de agosto apenas para buscar Vera e as crianças.

Logo após o golpe de 1964, Gabriel foi aos EUA cursar um MBA na escola de Negócios da Universidade Stanford. Seus colegas eram executivos de grandes empresas, como Boeing, Arthur Andersen, Campbell Soup, United Airways, e Bank of America.

Agora, os filhos eram sete. Paulo havia nascido em 1959, Álvaro em 1960, e Luciana, a sétima e última na linha sucessória, nasceria pouco depois do golpe, no dia 25 de abril de 1964.

Marília era a mais entusiasmada com a mudança. De tão eufórica, arrumaria as malas em 20 minutos assim que a mãe anunciasse a data da partida. Não suportava o provincianismo de Belo Horizonte e, desde muito nova, ouvia elogios aos Estados Unidos. Tanto o pai quanto os tios e o avô viviam falando bem da América. Dois anos antes, Marília fizera sua primeira viagem internacional, justamente para os Estados Unidos, na companhia dos pais e da amiga Ângela Gutierrez, filha do sócio de Gabriel, sua colega de turma no colégio. Agora, não via a hora de voltar para lá, dessa vez em caráter permanente.

Ângela, a amiga, sempre se impressionara com os eletrodomésticos que Gabriel e Vera mandavam trazer da América. Quando visitava Marília, reparava no liquidificador incrementado, na batedeira de bolo miraculosa, no fogão que funcionava a gás mas que também era ligado na tomada, e achava tudo sensacional. Sem contar o café da manhã, reforçado com ovos e bacon, enquanto na sua casa o normal era pão com manteiga e queijo. No máximo, pães de queijo e broa de milho.

Também vinha dos Estados Unidos o que havia de mais moderno em cultura e entretenimento, dos filmes de Hollywood às músicas mais ouvidas naquela casa. Vera era fascinada por Judy Garland e Frank Sinatra. Gabriel, embora preferisse Bach, Beethoven e os fados de Amália Rodrigues, adorava colocar na vitrola um compacto de rock n’ roll que trouxera dos Estados Unidos: Rock around the clock, com Bill Haley & His Comets. A música, de 1954, estourou nas paradas de sucesso no ano seguinte ao entrar na trilha sonora de Blackboard jungle, um western estrelado por Glenn Ford intitulado Sementes da violência no Brasil. Outros discos que Gabriel gostava de ouvir eram uma coletânea de discursos do presidente Abraham Lincoln e outra com peças de Shakespeare. Apenas Laura quebrava a monotonia daquele indefectível sotaque ianque nas tardes em que conseguia driblar a patrulha dos irmãos e emplacar seu cantor mais querido: Mario Lanza, tenor italiano cujos discos Marília e Flávio buscavam esconder, irritados com o gosto peculiar da irmã.

Fato é que, consumada a queda de Jango e implantado o regime militar, o projeto de mudar para os Estados Unidos se esvaneceu imediatamente. Gabriel fez o curso em Stanford e voltou a Belo Horizonte sem alugar casa nem investigar uma possível transferência da empresa. Voltou confiante no futuro, certo de que o fantasma do comunismo já não existia mais e de que os militares acabariam por restaurar a ordem.

DESDE O FINAL DA DÉCADA ANTERIOR, a construtora havia galgado degraus importantes em sua trajetória. Especialmente no que tange à profissionalização. A experiência de construir no Paraná, uma região de serra envolta em mata nativa onde o frio era brutal e chovia a cântaros, ensinara muito a Gabriel, tanto em relação à rotina de um canteiro quanto no que se referia à administração. Ali, ficou claro para ele a importância de se cercar de profissionais talentosos e criativos.

Dada a complexidade da obra, Gabriel chegou a reunir quatro engenheiros em Quatro Barras, nos arredores de Curitiba. Ainda assim, havia ocasiões em que a obra empacava e ele tinha de se virar para tirar da cartola alguma solução milagrosa que colocasse os trabalhos novamente nos trilhos. Uma vez, havia chovido tanto que o canteiro virou um imenso atoleiro. Parecia areia movediça, do tipo que os roteiristas de bangue-bangue adoravam inserir em seus filmes quando o objetivo era evitar a fuga de bandidos ou liquidá-los com crueldade. Dos 15 tratores lotados na obra, 14 estavam atolados quando Gabriel chegou.

Normalmente comedido e bem educado, dessa vez Gabriel não se conteve. Gritava com todo mundo, desqualificava a inteligência dos encarregados e engenheiros, tirava satisfação com os tratoristas. José Mário, o mais experiente dos engenheiros, só havia presenciado tamanha irritação de Gabriel uma vez, num dia em que ele flagrou um tratorista sair da estrada e passar com o veículo por cima de umas pedras, arriscando a integridade do equipamento. Imediatamente, mandou o rapaz descer do trator e passar no departamento de pessoal. Agora, no trecho da São Paulo–Curitiba, o único trator que ainda não havia sucumbido perante o lodaçal puxava desesperadamente os demais, ora um e ora outro. Gabriel interveio:

— Espera. Vamos jogar água.

Ninguém entendeu nada. Tratorista olhava para encarregado, que olhava para engenheiro, que olhava de volta para Gabriel. Com tanta lama, o patrão queria jogar ainda mais água? Gabriel exigiu que buscassem na cidade umas bombas de água enormes, movidas a diesel, e mandou disparar jato d’água no leito da estrada em construção, com a máxima pressão possível, até que a lama se dissolvesse e o atoleiro sumisse. Funcionou.

A experiência em Quatro Barras intensificou em Gabriel um desejo que ele já vinha cevando desde que a Andrade Gutierrez completara dez anos, em 1958: era hora de começar a pensar num substituto, alguém capaz de assumir seu lugar e desempenhar a função de dirigir as obras na sua ausência. Em 1961, após a entrega do trecho da BR-2, ele ainda não tinha um nome em vista, mas estava decidido a encontrar. O que ele ainda não sabia é que essa pessoa já trabalhava na empresa. Tinha acabado de ser contratada como estagiário, no recém implantado departamento de custos, e Gabriel o conhecia desde o dia em que nasceu. Seu nome era Eduardo Borges de Andrade, seu sobrinho, filho de Maurício.

FALTAVAM TRÊS MESES para Eduardo se formar, no final de 1961, quando Gabriel o chamou em sua sala e lhe deu uma tarefa inédita.

— Preciso que você cuide da obra em Caxambu.

O jovem de 23 anos imaginou que houvesse algum problema com os custos da estrada. As contas não estariam fechando por algum motivo. Possivelmente, o pessoal de lá estaria gastando mais do que deveria, talvez com combustível, quiçá com alimentação. Afinal, Eduardo estagiava no setor de custeio.

— Não, Eduardo, preciso que você vá até a obra e fique lá, como engenheiro responsável.

Desde o início do ano, o estagiário havia demonstrado ser alguém muito organizado, e conduzia suas atividades com disciplina e correção. Parecia a pessoa ideal para substituir o engenheiro responsável por aquela rodovia, que fora obrigado a se mudar para outro trecho, de gestão mais delicada, entre Pouso Alegre e Itajubá, também no sul de Minas. Os sócios, e não apenas Gabriel, já tinham percebido que Eduardo estava sendo subaproveitado em sua função. E era alguém em quem valeria a pena investir. Sobretudo, Eduardo era muito confiável.

Único filho homem de Maurício, irmão mais velho de Roberto e Gabriel, Eduardo trabalhava nos negócios da família desde os 16 anos, primeiro como vendedor de leite em pó, e em seguida numa concessionária de caminhões. Até 1956, Maurício era responsável por distribuir o leite em pó fabricado pela SaMiGue em Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Eduardo atuava na área comercial, numa época em que o produto ainda não tinha o mesmo mercado que viria a ter décadas depois. Era consumido essencialmente como alimento para crianças, usado no preparo de mamadeiras, de modo que todo o marketing era focado nos pediatras, para que os médicos o receitassem às suas pacientes. Eduardo planejava ações de marketing, campanhas publicitárias, e procurava Gabriel para apresentar suas ideias antes de levá-las a Roberto, presidente da indústria. Sua intenção era que Gabriel o ajudasse a convencer Roberto da importância daquelas ações.

Em 1956, Maurício foi eleito deputado federal e teve de se mudar para o Rio de Janeiro. Eduardo, aos 18 anos, assumiu a distribuição no ano seguinte, aprendendo na marra tudo o que precisou saber sobre administração e vendas. Já em 1960, quando a família vendeu a fábrica de laticínios, Eduardo foi trabalhar no departamento financeiro de outra representação, na qual Gabriel tinha sociedade: uma empresa chamada Minas Diesel, que comercializava caminhões e era a única concessionária da Mercedes Benz em Minas Gerais. Ali, Eduardo pôde aprender alguma coisa da área financeira, ampliando o repertório que tanto o ajudaria ao entrar para a Andrade Gutierrez, em 1961.

Gabriel confiava tanto naquele garoto que o levou para Caxambu, mostrou o canteiro, apresentou as pessoas, e o largou lá por três meses. Depois voltou para ver o resultado. Nos anos seguintes, manteria a mesma postura. Dava liberdade e, de tempos em tempos, ia conferir o que Eduardo estava fazendo. Em geral, ficava satisfeito com o que via. Muitas vezes, era surpreendido positivamente. Atribuía o ótimo desempenho do rapaz à sede com que buscava se informar e aprender nos livros. Aos 20 anos, Eduardo já havia montado uma pequena biblioteca, com alguns títulos importantes nas áreas de equipamentos e construção pesada, em geral catataus em inglês, importados dos Estados Unidos, como o Handbook of Heavy Construction, que ele manteria em seu escritório para o resto da vida. Eduardo também lia muito sobre mecânica do solo e terraplenagem, o que lhe garantiu, desde a faculdade, uma base teórica bastante sólida. Os sócios da construtora reconheciam. Em 1962, quando Donato foi submetido a uma cirurgia e Roberto veio do Rio para visitar o pai, Eduardo o encontrou no hospital e recebeu um elogio que nunca mais esqueceria.

— Eu queria lhe dar os parabéns — disse o tio. — Gabriel me contou que você é um grande autodidata.

Eduardo foi engenheiro de obras no trecho da futura BR-267, que ligava Caxambu à Rodovia Fernão Dias, e, em meados de 1962, foi transferido às pressas para a cidade de Alfenas, onde desempenharia a mesma função na construção de uma estrada contratada pela empresa Furnas Centrais Elétricas.

Aos 23 anos, Eduardo teria de lidar diariamente com um pessoal mais velho e calejado, todos com mais de 40 anos, gente conhecida pelo preciosismo e pelo nível de exigência. A primeira surpresa, ao chegar ao local, foi descobrir que o cliente exigia relatórios diários e pedia para que todos os assuntos fossem tratados por escrito, algo que fugia completamente ao estilo de trabalho dos engenheiros rodoviários. Manula já comprara briga por conta disso, reclamando da quantidade de relatórios e afirmando que tudo aquilo era perda de tempo, desperdício de papel sem necessidade. Eduardo adotou outra estratégia.

— É carta que eles querem? — pensou. — Então é carta que eles vão ter.

Contratou um datilógrafo e entupiu os contratantes com uma papelada sem fim, atualizada diariamente. Algo que nunca ninguém no setor havia visto, mas que encaixava muito bem na personalidade organizada e detalhista do jovem engenheiro.

Informalmente, as duas experiências de Eduardo como engenheiro de obras serviram como um teste prático para a missão que Gabriel reservava para ele. Já em 1964, Eduardo foi nomeado diretor adjunto de obras. Em vez de morar no trecho e responder por uma obra específica, agora Eduardo coordenava todas as três obras mantidas simultaneamente pela divisão A, sempre em dupla com Gabriel, o diretor de obras titular. Agora, ele já não precisava morar em acampamentos nem nos vilarejos onde os canteiros eram instalados, embora ainda passasse grande parte do tempo viajando, de uma obra para outra. Não demoraria mais do que dois anos para Eduardo substituir Gabriel no cargo de diretor de obras, permitindo que o patrão simplesmente parasse de viajar toda hora.

A regra de ouro era a valorização da equipe, e Eduardo tratou de levar adiante algo que era prioritário para Gabriel: formar dentro da empresa tanto o pessoal especializado quanto os funcionários de gerência e outros gestores, por meio de um programa interno de seleção, acompanhamento de desempenho, plano de carreira, cursos e treinamentos. A seleção de estagiários era anual. O programa de estágio previa mobilidade entre os diversos setores da empresa, conforme o cronograma que parecesse mais adequado às suas habilidades. Segundo Eduardo, essa formação possibilitou a criação de uma equipe uniforme, harmônica e motivada, e, por extensão, permitiu que a enorme expansão da AG fosse sustentada essencialmente por pessoal interno, com raros casos de contratação no mercado.

No período em que atuou como adjunto de Gabriel, Eduardo aprendeu muito sobre a personalidade do chefe. E pôde incorporar ao próprio repertório alguns de seus métodos e técnicas administrativas. Um deles foi justamente a capacidade que Gabriel tinha de orientar um engenheiro sobre seus objetivos e metas e, em seguida, soltá-lo na obra por um longo período, voltando apenas para verificar os resultados obtidos. Em vez de ficar em cima, dizendo passa a passo como determinado serviço deveria ser feito, Gabriel delegava e, ao delegar, permitia que o funcionário buscasse por conta própria os recursos necessários para dar conta da tarefa. Estimulava, dessa forma, não apenas a criatividade, mas também o senso de responsabilidade do colaborador, uma maneira bastante eficiente de formar pessoas.

Diga-se de passagem que, até com Vera, Gabriel adotaria postura semelhante. Em 1982, ele compraria a fazenda Serrinha, em Betim, e, após as primeiras orientações, deixaria a administração na mão da mulher. Aos 55 anos, ela ansiava por isso. Vera já tinha alguma experiência com pecuária, uma vez que cuidara de um rebanho de gado holandês nos idos de 1963. Agora, com os filhos adultos, após mais de 30 anos como dona de casa, Vera se entusiasmava para pôr em prática sua veia de mulher executiva. Assumiu a fazenda e permaneceu à frente dela praticamente sozinha, quebrando a cabeça para aprender os macetes e dar conta do recado.

Outro traço da personalidade de Gabriel que contagiaria seu futuro sucessor na Andrade Gutierrez foi o perfil inovador. Da mesma forma que, aos 22 anos, tivera a iniciativa de fundar a construtora, Gabriel implementara na empresa um sistema de controle de custos que não existia em nenhuma concorrente, nem na divisão comandada por Flávio. Foi preciso adotar como referência um manual de contabilidade da General Motors, uma vez que o setor de engenharia carecia em absoluto de bibliografia sobre o assunto.

Ao mesmo tempo, a capacidade de inovação de Gabriel sempre foi fundamentada em muita análise, muito estudo. Ele jamais tomava qualquer iniciativa por intuição ou corria riscos que não tivessem sido profundamente avaliados. Antes de investir num ramo novo, ou abrir uma nova empresa, ou firmar contrato para construir em outro país, Gabriel a vida toda encomendaria estudos aprofundados e dossiês detalhados, destrinchando o que fosse possível destrinchar para jamais fazer um movimento errado. Inclusive porque sempre foi caxias, detalhista, organizado, regido por um espírito científico, um olhar de pesquisador, nada impulsivo, nunca subjetivo ou intuitivo.

O segredo, como em tudo o que se faz no universo das ciências e da pesquisa, era fazer as perguntas certas. E, a partir das respostas obtidas, formular a pergunta seguinte. Funciona na química, na biologia, na medicina, haveria de funcionar também na construção pesada, na engenharia, na mecânica dos solos, na produção de manta asfáltica ou na construção de barragens.

Na virada da década de 1970, Eduardo assumiria o cargo de diretor de operações, passando a atuar também no departamento comercial e em áreas como contabilidade, suprimentos, jurídico, concorrências e recursos humanos como uma espécie de primeiro-ministro de Gabriel. Em 1976, a empresa criaria o cargo de diretor-superintendente e Eduardo seria o primeiro a ocupá-lo, passando a atuar não apenas nas operações da divisão A, mas em toda a empresa. Já no final dos anos 1970, seguro com a condução de Eduardo, Gabriel começaria a se afastar da rotina da AG, restringindo sua atividade às questões estratégicas e às reuniões do Conselho de Administração, formado pelos três sócios com a prerrogativa de definir metas, discutir resultados e orientar propostas a serem apresentadas em concorrências.

Para que todo esse caminho fosse aberto, Eduardo passaria por outro teste importante, já em 1965, ainda no papel de diretor adjunto: construir o primeiro trecho da Andrade Gutierrez no Estado de São Paulo, precisamente na Auto-Estrada do Oeste, aquela que viria a ser a primeira autoestrada do Brasil. Segundo as normas internacionais, para reivindicar o título de autoestrada, uma rodovia precisaria cumprir determinados requisitos, entre eles a ausência de acessos por vias municipais ou locais (como entradas de fazendas), e especificidades técnicas, como limites máximos de inclinação e gradação nas curvas.

Atuar naquela obra, ao lado de empresas bem maiores e mais experientes, foi uma prova de fogo importante para a Andrade Gutierrez. Em meados dos anos 1960, nenhuma estrada em construção no país merecia tanto destaque na imprensa ou despertava tanta expectativa quanto a Auto-Estrada do Oeste. Iniciada pelo governador Ademar de Barros em 1963, seria inaugurada em novembro de 1968 pelo então governador Roberto de Abreu Sodré, já com o nome definitivo: Rodovia Presidente Castelo Branco, homenagem ao primeiro governante pós-64. A ditadura militar começava a redefinir não apenas os rumos do país, mas também o futuro dos filhos de Gabriel.

FOI PAIXÃO À PRIMEIRA VISTA. Ao ver aquele rapaz com pinta de forasteiro dando sopa na Praça da Liberdade, Marília não conteve a curiosidade.

— Quem é? — perguntou às amigas, surpresa por nunca tê-lo visto antes.

— Irmão da Eliane — uma das meninas respondeu. — Acabou de chegar de Nova York.

— É ele! — a adolescente de 16 anos deixou escapar, para deleite das colegas.

— Ah, é? — elas riram. — Imagina se ele vai dar bola para uma moleca.

Era inverno de 1966, e o rapaz, irmão de uma colega de Marília no colégio, esbanjava uma certa deselegância moderna, com sua barba e jeans desfiados.

Manoelzinho. Eliane quase não falava dele. Contou apenas que o irmão, que como ela, era filho de um deputado do PSD mineiro, gostava muito de ler, o que deixou Marília ainda mais interessada. Leitora contumaz, ela se ressentia por não conhecer nenhum rapaz que gostasse de ler. Os meses se passaram e o encantamento crescia. Quase no fim do ano, Marília tomou coragem e jogou um verde para cima da amiga.

— E o Manoelzinho?

— Vai para Cuba — Eliane contou, com a audácia de quem revela um segredo. — Ele diz que vai haver uma revolução no Brasil nos próximos anos. Por isso decidiu ir para Cuba.

Como pode? Marília não encontrava explicação. Tudo que ouvira falar sobre o assunto a fazia crer que comunismo era coisa de gente errada, corrupta, violenta, no mínimo ignorante. Como pode um homem como aquele ser comunista? Intrigada, a menina se isolou na livraria em busca de algum título que a ajudasse a decifrar o enigma. O pouco que encontrou era bibliografia “reacionária”, de repúdio às experiências recentes de Cuba e China, consideradas totalitárias.

No último dia do ano, enfim, Marília encontrou Manoel na festa de réveillon do Pampulha Iate Clube e foi falar com ele. Ficou sabendo que ele fora iniciado na política por um livreiro do Greenwich Village, em Nova York, que misturava budismo e marxismo em suas pregações.

Logo de cara, Manoel lhe perguntou:

— Por que você é católica?

Alienação pra lá, ópio do povo pra cá, a conversa engrenou com tamanha fluência que a jovem romperia com a igreja naquele 1º de janeiro de 1967. Nas semanas seguintes, Marília travou contato com importantes leituras de esquerda e foi se aproximando do marxismo. Em abril, Manoel finalmente embarcou para a América Central, com a promessa de chegar a Havana e permanecer três anos fora. Voltou em quatro meses, sem conseguir embarcar para Cuba. Quando chegou, em agosto, encontrou Marília transformada. Nas férias de julho, ela havia trocado o Santa Dorotéia pelo Colégio Estadual, fizera um curso de educação popular pelo método Paulo Freire e começara a trabalhar com alfabetização de adultos. Participava de passeatas e frequentava um grupo maoísta, a Ação Popular (AP). Agora, aos 17 anos, era ela quem influenciaria o namorado. Os dois entraram oficialmente na AP e passaram a estudar intensamente os textos de Mao, ir a passeatas todo santo dia, participar de comícios, ajudar na panfletagem e na pixação dos muros.

Vera e Gabriel não gostaram nem um pouco do envolvimento da filha mais velha com um rapaz comunista. Quiseram tirar a filha do Colégio Estadual e colocá-la novamente num colégio de freiras. Pior, Vera chegou a ameaçar matriculá-la num internato.

O pai quase sempre se ausentava desse tipo de discussão. Na divisão de tarefas da casa, sempre confiara a Vera a educação dos filhos e os assuntos da casa, preferindo se concentrar na condução da empresa e das fazendas. De vez em quando, Vera reclamava, cobrando maior envolvimento. A posição política de Marília foi um dos tópicos que obrigaram o pai a se posicionar.

O pai indagava, cobrava, fazia perguntas em série, repetindo o método socrático, com a intenção de fazer Marília cair em contradição. Confiava na força da boa argumentação e sabia que, cedo ou tarde, lançaria mão de algum argumento capaz de abalar os alicerces do pensamento da filha. A vida toda, Gabriel ensinara aos filhos a importância de argumentar. Herdeiro de Descartes e Auguste Comte, dizia que tudo pode ser justificado e que qualquer um pode convencer o interlocutor se usar argumentos coesos, consistentes e bem costurados. Método e ordem, as bandeiras máximas dos dois pensadores, funcionariam como alicerce de qualquer discussão.

Naqueles meses, no entanto, por mais que tentasse, Gabriel não foi bem sucedido. Acabava ele mesmo falhando na escolha dos argumentos, favorecendo a sensação de que a aprendiz havia superado o mestre. Na tentativa de convencer Marília de que os regimes comunistas eram sempre autoritários, por exemplo, citava Moscou. Erro estratégico, já que a filha era maoísta, alinhada com a linha chinesa, e não com os russos. Bastava isso para sua lógica cair por terra. Se argumentasse que Marx formulara sua teoria pensando em aplicá-la em países pequenos e desenvolvidos da Europa, e não em países pobres e colossais como o Brasil, onde jamais o regime poderia dar certo, bastava a ela mais uma vez lembrar ao pai que a China era ainda maior e mais pobre do que o Brasil, e que a revolução vinha tendo bons resultados por lá.

Finalmente, quando Gabriel percebia que a conversa não levaria a lugar nenhum, desistia de argumentar e encerrava o debate com rudeza:

— Fanática!

Cada um à sua maneira, estavam ambos condicionados pelo pensamento da Guerra Fria. Como num tabuleiro de um jogo de estratégia, reproduziam na sala de casa a polarização entre países comunistas e Estados Unidos. De um lado, a tradicional família mineira, a burguesia, o capital. Do outro, a filha rebelde, subversiva, engajada, partidária da linha chinesa. Opressores versus oprimidos. Os atritos eram tão recorrentes que, no final de 1967, Marília não via a hora de sair de casa.

— Só casando, e maior de idade — os pais decretaram.

Marília fez 18 anos em maio de 1968 e se casou com Manoel em julho. Não houve festa, somente a assinatura no cartório. Pouco depois, o casal mergulhou definitivamente na militância política, entrando na clandestinidade em novembro. O mundo pegava fogo.

“MATARAM UM ESTUDANTE. Podia ser seu filho!” Inscrita em faixas penduradas na Cinelândia, impressa em panfletos distribuídos em passeatas e plenárias, a expressão se espalhara como palavra de ordem pelo Rio de Janeiro logo após a morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, em 28 de março de 1968.

O rapaz fora executado pela polícia militar dentro do bandejão do Calabouço, espaço no centro da cidade onde também funcionavam o Instituto Cooperativo de Ensino, onde ele estudava, a sede da União Municipal dos Estudantes, um teatro e algumas lojas. O restaurante era subsidiado pelo Ministério da Educação. Quando se ouviu o estampido do tiro que matou Edson Luís, frequentadores do local, a maioria com 16 ou 17 anos, organizavam uma manifestação relâmpago para protestar contra o aumento do preço da refeição. Edson Luís colava cartazes.

“Mataram um estudante. Podia ser seu filho!” não era apenas um slogan, uma frase de efeito. Por cinco anos, Vera e Gabriel conviveram com a sensação angustiante de poder perder um filho a qualquer momento. E, o que talvez mais os desesperasse, correndo o risco de não serem comunicados caso alguma fatalidade viesse a acontecer, em razão da clandestinidade da filha.

Nos meses que se seguiram à morte de Edson Luís, conflitos foram deflagrados em diversas partes do mundo, sempre envolvendo a juventude. Em abril, lufadas de democracia chacoalharam a Tchecoslováquia e levaram milhões de jovens às ruas para protestar contra a dominação autoritária da União Soviética na Primavera de Praga, período em que foram implementadas reformas importantes no sentido de garantir maior liberdade e mais direitos à população. Em maio, estudantes de Paris deram início às manifestações que ficariam registradas como “o Maio de 68”. Em junho, o Rio seria o cenário da Passeata dos 100 mil, uma das mais calorosas manifestações de repúdio à truculência fardada. Em julho, membros do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, invadiram o teatro da PUC, em São Paulo, e espancaram os atores do grupo Oficina que montavam Roda Viva, de Chico Buarque. No mesmo teatro, Caetano Veloso recebeu a pior vaia da sua vida em setembro, ao defender a canção “É proibido proibir” no 3º Festival Internacional da Canção, improvisando um discurso avassalador entremeado de puxões de orelha como “vocês estão querendo policiar a música brasileira” e “se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos”.

Em 12 de outubro, dois meses antes do decreto do Ato Institucional n.º 5, que deu poderes extraordinários ao general-presidente de turno, Costa e Silva, e acabou com garantias constitucionais como o direito ao habeas corpus e à liberdade de imprensa, Marília e Manoel estavam entre os mais de 700 estudantes presos no 30º Congresso da UNE, realizado clandestinamente em Ibiúna, no interior de São Paulo. Os dois acabaram detidos por alguns dias.

Na volta de Ibiúna, o casal se estabeleceu em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, integrando um núcleo da AP. No ano seguinte, Marília e Manoel trocaram a AP pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e mantiveram a militância: ele, operário numa fábrica; ela, dando aulas de educação popular. Quando finalmente nasceu sua filha Elena, a primeira neta, mãe e filha foram passar um mês na casa de Vera e Gabriel, para que os avós pudessem conhecer e curtir o neném.

A temporada começou alegre, numa harmonia que havia muito não se via entre pais e filha. Ninguém mais parecia fanático como antes. O fim da convivência diária parecia ter sido benéfico para todos. Além disso, havia um bebê na casa, a primeira representante da nova geração. Quando pais e filha já respiravam aliviados, os atritos voltaram a acontecer. Um único atrito, na verdade, mas suficiente para fazer o tempo fechar. Durante o almoço, calhou de o assunto descambar novamente para a polarização ideológica. Marília defendia que os irmão mais novos estudassem em escolas onde a educação não fosse repressiva, baseadas no modelo da Summerhill norte-americana. Vera preferia as instituições religiosas. Quando o debate esquentou, Gabriel tomou as dores da mulher e soltou um cala-boca.

— Você não pode me mandar calar a boca — a filha respondeu. — Agora eu sou visita.

— Cala a boca assim mesmo — o pai se irritou.

Marília levantou da mesa e foi arrumar as malas. Pouco depois, a mãe foi lhe dizer que o pai estava arrependido.

— Se estivesse arrependido, teria vindo ele mesmo pedir desculpas.

Gabriel não foi. Marília foi embora com Elena e, desde então, só voltaria a pisar naquela casa uma vez por ano, por uma semana. Os três mudaram-se para Londrina em abril de 1970, enviados pelo comitê central do PCdoB, e lá permaneceram, clandestinos, até 1974. Em 1974, mudaram para São Paulo. Nem os pais nem os irmãos de Marília sabiam seu paradeiro. Para manter as aparências e evitar suspeitas, Vera e Gabriel diziam para todo mundo que o casal havia se instalado numa fazenda em Goiás. Em vão. Logo a notícia correra a cidade, e os comentários eram inevitáveis:

— Coitados da Vera e do Gabriel, tão ricos e com uma filha comunista… — circulava à boca pequena.

Quando a repressão à Guerrilha do Araguaia apertou, e as baixas passaram a ser amplamente divulgadas na TV, a aflição dos pais aumentou. Eles sabiam que os filhos militavam no PCdoB, o partido que, mesmo na clandestinidade, orquestrara aquela ação, e temiam o pior. Eles só podem estar no Araguaia, pensavam.

Desde 1967, militantes do PCdoB ou quadros recrutados pelo partido eram enviados à região amazônica, precisamente a cidades no entorno do Rio Araguaia, entre Xambioá e Marabá, no Pará, chegando a Imperatriz, no Maranhão, com a estratégia de se infiltrar, misturar-se à população local e formar um foco guerrilheiro, que pudesse no futuro deflagrar uma revolução socialista a partir do campo, inspirada na vitoriosa Revolução Chinesa. O movimento foi duramente reprimido pelas Forças Armadas entre 1972 e 1974, culminando no extermínio ou no desaparecimento de quase todos os cerca de 70 guerrilheiros que atuaram na região. A julgar pelas aparências, Marília e Manoel poderiam estar entre eles.

Vera apertava Flávio, convencida de que ele sabia o endereço da irmã, implorando para que revelasse a verdade. Gabriel temia que algo trágico pudesse acontecer com ela a cada novo conflito, atentado, prisão ou tentativa de fuga. No final de cada temporada em Belo Horizonte, Marília e Manoel iam embora com Elena, sem jamais dizer para onde iam. Os pais continuavam no escuro. Vera chorosa, Gabriel calado, sem traquejo para lidar com a situação.

“I’M TWENTY”. A frase foi grafada assim, em inglês, no cartão postal enviado por Flávio, no dia de seu aniversário de 20 anos, ao irmão Paulinho, o caçula. Era 1971 e o carimbo de Santiago do Chile lembrava à família a ousadia do estudante de Economia que, entusiasmado com o avanço da esquerda na América Latina, decidira trancar a matrícula no segundo ano da faculdade para conferir de perto o primeiro ano do governo revolucionário de Salvador Allende.

Coroinha e aluno do curso vocacional até os 13 anos, Flávio ficara boquiaberto quando a irmã mais velha parou de ir à missa, em janeiro de 1967. Naquele mesmo ano, e por influência da irmã, viveu um período de profundo questionamento existencialista que culminou com seu próprio rompimento com a Igreja. Trocou o colégio Loyola, católico, pelo menos careta Dom Silvério, e foi paulatinamente atraído pelo socialismo, passando a consumir com entusiasmo os livros marxistas e os textos de esquerda que caíam em suas mãos ao longo do turbulento ano de 1968.

Em certa medida, foi a influência daquelas leituras que o fizeram optar pelo vestibular de Economia no final de 1969. Em 1970, ao entrar na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, Flávio anda não tinha uma posição política clara, entre as muitas tendências de esquerda que já naquela época pululavam no movimento estudantil. Mas a experiência chilena o fazia vibrar. Fundador do Partido Socialista do Chile, Salvador Allende era não apenas o primeiro chefe de Estado marxista eleito democraticamente na América Latina, mas também o primeiro a demonstrar que seria possível chegar ao poder e implementar um governo socialista por meio do voto, sem a necessidade de golpe ou guerrilha.

Gabriel ainda tentou impedir que o filho viajasse.

— Santiago? Que bobagem. Você deveria ir para os Estados Unidos, fazer um MBA, aperfeiçoar seus conhecimentos em administração.

— Pra quê, pai?

— Ora, vai ser bom para a construtora.

— Mas eu não vou trabalhar na construtora nem com Administração — Flávio repetia, pela enésima vez. — Quero ser professor de Economia, você sabe. E mexer com política, lutar pelo fim da ditadura.

Gabriel não reprimiu, não xingou, não levantou a voz. Em geral, preferia não se comprometer nem provocar rupturas. Nas discussões polêmicas, ficava calado, se abstinha, em especial depois do episódio do cala-boca, exatamente um ano antes.

— Pode ser perigoso — o pai insistiu.

— Ficar no Brasil também é perigoso.

Os argumentos, sempre eles, já começavam a rarear no discurso de Gabriel, quando ele, quase nervoso, tentou uma última cartada:

— Quer saber? Acho essa sua viagem uma sandice e não vou financiá-la. Não vou custear essa besteira.

— Não precisa. Eu vendi meu bois.

Gabriel fez cara de surpresa. Donato, seu pai, sempre teve hábito de presentear cada neto, ao nascer, com algumas reses. Flávio era o único de seus filhos que demonstrava interesse e alguma afinidade com o assunto. Ao longo dos anos, ainda na adolescência, havia negociado parte dos bezerros e conduzido acasalamentos, movimentando seu rebanho com compra e venda de animais.

— Vendi o gado e tenho dinheiro para ficar mais de um ano no Chile.

Gabriel, teimoso, ainda tentou um último argumento, apelando para o legalismo autoritário:

— De qualquer maneira, você tem 19 anos, ainda não fez 21. Como seu genitor e responsável legal, não estou disposto a me responsabilizar pelas besteiras que você possa vir a fazer enquanto estiver lá.

— Não vou fazer besteira, pai.

— Prefiro não arriscar. Já pensou se eu, aos 45 anos de idade e na minha posição, for acusado de ser cúmplice em alguma loucura sua? Como eu vou saber se você não vai estar envolvido com terrorismo, assalto a banco, essas coisas que a gente fica sabendo pelos jornais?

— Me emancipa — interrompeu o filho.

— Como é?

— Me emancipa. Vamos até o cartório. Você assina uma certidão dizendo que não é mais meu responsável legal.

Ao voltar do Chile, depois de um ano lá, Flávio se matriculou no terceiro ano do curso de Economia e logo se envolveu com uma turma decidida a reconstruir o movimento estudantil na UFMG. Tanto o DCE quanto outras agremiações estudantis haviam se desarticulado em 1969, quando a linha dura dissipara o que ainda restava de interlocução entre estudantes e organizações armadas. Na virada dos anos 1970, as mais importantes em Belo Horizonte eram a Polop (Política Operária), que tinha entre seus quadros os futuros ministros Nilmário Miranda e Fernando Pimentel, e o Colina (Comando de Libertação Nacional), no qual atuou a futura presidenta Dilma Rousseff. Em dois anos, muita a coisa havia mudado, e não sobrara quase nada daquilo.

Virgínia Pinheiro, uma de suas colegas na faculdade de Economia, militava no mesmo grupo e logo se tornou sua namorada. Já no início de 1972, os dois trabalharam juntos para recrutar dez estudantes da UFMG, de diferentes unidades, dispostos a retomar as atividades do Diretório Central dos Estudantes. Sem adversária e cumpridora da burocracia eleitoral, a chapa pôde assumir o comando da entidade. Flávio foi nomeado tesoureiro.

Mais tarde, quando Flávio e Virgínia se casaram, apenas no civil como Marília e Manoel haviam feito em 1968, Vera dessa vez não se assustou. Agora, casar apenas no cartório lhe parecia uma coisa moderna, ousada, “pra frente”.

Diretor do DCE, Flávio viveria sua primeira experiência no jornalismo, produzindo um pequeno jornal alternativo vinculado ao diretório, com um nome estapafúrdio: Gol a gol se pegá com o pé é dibra. O título non sense camuflava uma edição séria e competente, focada em temas culturais e de política estudantil. Para surpresa dos redatores, surgiram encomendas de diretórios de outras faculdades, inclusive de outros Estados, em geral afinados com Trotsky, como o próprio pessoal do DCE. Agora, após retornar do Chile e ingressar no movimento estudantil, Flávio finalmente se encontrara politicamente: dizia-se trotskista.

Influenciada por teóricos vinculados à Quarta Internacional, organização socialista de inclinação trotskista presente em muitos países, entre eles o economista belga Ernest Mandel e o filósofo francês Daniel Bensaïd, sua turma fundaria em 1975 uma organização de esquerda chamada Centelha. Anos depois, o Grupo Centelha daria origem à Democracia Socialista (DS), que acabaria integrada ao PT como uma de suas tendências. Para assinar documentos e despistar membros de outras organizações, Flávio adotaria na DS o codinome Felipe. Virgínia usaria o nome da sogra, Vera.

A experiência na produção e na comercialização do Gol a gol motivou Flávio a investir na atividade de imprensa. Em 1975, passou a colaborar com a redação do Movimento, jornal sem patrões dirigido por Raimundo Pereira, e caprichou na sua distribuição, ajudando a transformar a sucursal mineira do jornal na mais lucrativa do país. Três anos depois, ele e Virgínia, agora radicados em São Paulo, coordenavam o também semanal Em Tempo, fruto de um racha no Movimento. Entre os colaboradores do jornal estavam jornalistas e intelectuais como Chico de Oliveira, Maria Rita Kehl, Guido Mantega, Ricardo Maranhão, Bernardo Kucinski, Flávio Aguiar, Inimá Simões, Carlos Alberto Dória, Dagomir Marquezi, Laís Tapajós, Emir Sader, Maria Moraes, Marco Aurélio Garcia, Raul Pont, Emiliano José, Tibério Canuto e Juarez Magalhães, entre outros.

Em julho de 1978, o Em Tempo publicou a manchete mais explosiva de sua história: “Presos denunciam 233 torturadores”. A edição trazia, na página 6, o “listão completo dos policiais e militares acusados”. Na semana da publicação, membros da organização de extrema-direita Comando de Caça aos Comunistas (CCC) puseram fogo em bancas que exibiam cartazes com a primeira página do jornal. Em outra reportagem polêmica, denunciou os endereços secretos usados pela ditadura para torturar presos políticos. Em 1980, publicou uma segunda lista de torturadores. Dessa vez, a redação de São Paulo amanheceu com as portas arrombadas, ácido espalhado nas mesas, e a parede pichada: “abaixo os comunistas”.

Em 1982, já desvinculado do Em Tempo, Flávio comprou uma gráfica em sociedade com Marília, que se mudara para São Paulo dois anos antes. A Joruês publicaria outros títulos de imprensa alternativa ao longo dos anos seguintes, como o Brasil Extra, que durou apenas um número e trazia, em meados de 1985, matéria de capa sobre a carreira e a intimidade do então candidato à presidente pela Arena, Paulo Maluf, além de um pôster central com uma montagem na qual o então ministro do Planejamento, Delfim Netto, aparecia com orelhas de burro. Já naquela época, desde meados de 1984, Flávio e Marília produziam o Leia Livros e o jornal de bairro Gazeta de Pinheiros.

COM OS DOIS FILHOS MAIS VELHOS seduzidos pelos ideais socialistas, Vera e Gabriel começaram a perceber a necessidade de rever princípios e regras de comportamento a fim de buscar outras maneiras de educar os mais novos. Não tinha como ser diferente com uma filha clandestina, correndo risco de morte num lugar que eles nem sabiam qual era, e outro envolvido com movimento estudantil, usando codinome e se dizendo trotskista. Não era apenas o envolvimento político dos filhos que os assustava. Havia algo de desconfortável nos hábitos e nas convicções pessoais daquela juventude, em especial na maneira como eles viam a religião e os bons costumes. Dos três filhos já casados, dois tinham feito apenas a cerimônia civil, Marília e Flávio. A exceção era Laura, que casara no religioso, mas em casa.

Quando viram que nenhum dos filhos ia à igreja, Vera e Gabriel ficaram céticos em relação à necessidade de “dar o exemplo” e colocaram em xeque certos dogmas que, claramente, não haviam funcionado naquela casa. Dia a dia, ficavam cada vez menos “caretas”. A pílula anticoncepcional passou a ser tolerada na família, e Gabriel foi fazer vasectomia — um rompante de modernidade para quem a vida toda baixara a cabeça para o discurso da Igreja e, mesmo sem intenção de ter tantos filhos, sempre combatera os métodos de controle da natalidade.

HELOÍSA, A QUARTA FILHA DO CASAL, também teria seus momentos de militância política. Sete anos mais nova do que Marília, tinha a irmã como heroína, em especial pela ousadia de sair de casa e entrar na clandestinidade, desafiando as convenções sociais em nome de um ideal. Tinha 12 anos quando a irmã deixou Belo Horizonte, no início de 1970, sem dizer para onde iria. Depois disso, a cada visita, pregava os olhos em Marília e aguçava os ouvidos para não perder uma história, um relato, uma polarização dela com os pais.

Ao longo da adolescência, na ausência da irmã-heroína, foi o irmão trotskista que assumiu o papel de mestre e tutor. Sugeria leituras, abordava assuntos políticos e, principalmente, passou a levá-la a diversos encontros do DCE, dos ciclos de cinema e MPB aos debates estratégicos. Não tardaria para que mais uma militante de esquerda surgisse naquela casa.

Ao ingressar, em 1975, na Faculdade de Medicina da mesma UFMG em que Flávio cursara Economia, Heloísa já conhecia quase todo mundo do DCE. Foi logo agregada à chapa nas eleições seguintes. Nesse período, embora Flávio já tivesse deixado a universidade, continuou estudando marxismo com ele. Convidada a se engajar na Centelha, para servir como célula da organização trotskista dentro da universidade, Heloísa relutou em aceitar. Ela discordava de algumas bandeiras do grupo e tinha restrições a algumas de suas práticas, que considerava opressoras, ou ditatoriais demais. Acabou se aproximando de outra organização, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), quando cursava o quarto ano da faculdade, em 1978.

O MR-8 exibia em seu currículo episódios importantes da luta armada, como o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, realizado em parceria com a Ação Libertadora Nacional (ALN), em setembro de 1969, no Rio. Agora, após ter sido dizimado na virada da década, com a morte e o exílio de seus principais líderes, o MR-8 voltava à cena seguindo outra linha de ação, avessa ao “bangue-bangue.

Uma vez, já em 1978, quando o Brasil caminhava para o último ano pré-anistia, sobrou para Vera a tarefa de salvar Heloísa das garras do Dops. A jovem fora a um encontro clandestino da organização num sítio próximo de Belo Horizonte e, dias depois, a militante que a havia recrutado e a conduzido à reunião foi presa. Submetida à tortura, entregou alguns nomes, entre eles o de Heloísa.

— Achei que você tivesse as costas largas e que não haveria problema — a delatora chegou a justificar, mais tarde.

Foi por causa disso que, numa tarde, Vera saía de casa com a caçula Luciana, então uma menina de 14 anos, quando foi detida. Um policial já se aproximou mostrando o distintivo e dando ordem de prisão à garota.

— Heloísa Andrade, você está presa por atentar contra a segurança nacional.

— Êi, alto lá — Vera intercedeu. — Essa não é Heloísa.

O que está acontecendo aqui?

— Tenho ordens de levar sua filha, dona. Sua filha é comunista, acusada de envolvimento em atividades subversivas.

Nenhum mandado foi exibido. Luciana precisou mostrar a identidade para provar que não era a irmã procurada. E Vera, agitada, teve de se desgastar numa longa argumentação para convencer os homens de que Heloísa estava na faculdade. Circo armado, ninguém entrava, ninguém saía. A família ficou ilhada, com a promessa de permanecer assim até que Heloísa retornasse. Também ficaram proibidos de usar o telefone.

Vera teve sangue frio e presença de espírito para articular um plano e, sem dizer palavra, transmitir sua ideia à empregada. Partiu da funcionária a iniciativa de, como quem não quer nada, tentar sair. Pegou dinheiro trocado e investiu em direção ao portão.

— Um momento — os agentes fecharam o caminho. — Onde a senhora pensa que vai?

— Preciso comprar pão — disse a funcionária. — Daqui a pouco é hora do lanche e meus patrões vão ficar uma arara se a mesa não estiver arrumada. Aí quem se complica sou eu.

Os policiais,mesmo assim, não a deixaram sair, mas a moça pulou o muro da casa do vizinho e saiu assim mesmo. A uma quarteirão de casa, plantou-se no meio da rua, num dos dois caminhos feitos por Heloísa para voltar. Teve sorte. Em poucos minutos, notou o Ford Corcel da moça se aproximar e pulou na frente do carro.

— Foge! Tem uns policiais esperando você.

Heloísa e o marido passaram alguns dias escondidos, hóspede na casa da artista plástica Leda Gontijo, amiga de sua mãe. Chegou a costurar planos de deixar o país. Os boatos de que uma lei de anistia estava por vir a faziam deduzir que a temporada no exílio seria curta, não mais do que um ano, no máximo dois. Mas não foi preciso. Vera foi até a delegacia no dia seguinte, conversou com um delegado, e conseguiu convencer as autoridades de que sua filha não era clandestina e que retomaria normalmente as aulas assim que voltasse para casa. As buscas foram canceladas.

A CAMINHO DE BELÉM, onde ficaria até 1979, Marília passou alguns meses em Belo Horizonte com Manoel e Elena, em 1976. Depois de uma temporada em Londrina e outra em São Paulo, sempre clandestina, encontrou a família com um astral renovado. Gabriel tinha acabado de deixar a diretoria da AG, mantendo apenas a função de membro do Conselho, após a mesma reestruturação que nomeou Eduardo Andrade diretor-superintendente. Pela primeira vez, conseguia reservar mais tempo para os filhos. Flávio e Laura já estavam casados, é verdade, e pouco conviviam com o pai. Laura, inclusive, já tinha dado à luz quatro vezes em cinco anos, desde que se casara com Bernardo, em 1970. Mas os irmãos mais novos — Heloísa, Paulo, Álvaro e Luciana — saberiam aproveitar a maior presença de Gabriel.

Eram tempos de casa na praia, divertidas temporadas em Cabo Frio, com direito a piscina, quadra de vôlei e viagens de motorhome.

A novidade surgira anos antes, em 1972, por iniciativa de Gabriel. Um dia, chegou em casa com um catálogo da General Motors e começou a mostrar para os filhos. Parecia um microônibus, uma lotação. Tinha lugar para dois passageiros na frente, ao lado do motorista. Em seguida, uma mesinha retangular, com um banco para duas pessoas de cada lado. Ao lado da mesa, um sofá para três pessoas. À noite, a mesa podia ser rebaixada e se transformava numa cama de casal. O sofá junto à parede virava cama de solteiro, e o encosto, reposicionado na transversal e à meia altura, compunha um beliche. Na sequência, uma cozinha compacta, semelhante à de uma lancha, com fogão, forno, pia, geladeira. Completam o ambiente um banheirinho, com pia, vaso e chuveiro; uma fileira de armários; e, por fim, o quarto principal: uma cama de casal enorme, que atravessava o veículo de lado a lado, na qual cabiam quatro ou cinco pessoas.

A compra do motorhome foi feita em sistema de importação direta. Diferentemente do Caterpillar D6 comprado por Donato em 1938, dessa vez o produto chegou rapidamente. Vera e Gabriel providenciaram carteiras de habilitação especiais, categoria D, que lhes permitiriam dirigir ônibus e caminhões, e pegaram a estrada. Passaram um feriado no Parque Nacional do Rio Doce, depois de Governador Valadares, para se habituar ao ambiente e, já no verão seguinte, seguiram para o litoral do Espírito Santo. Leda Gontijo, a mesma amiga de Vera que abrigara Heloísa quando ela precisou se esconder, tinha uma casa em Guarapari e convidou os Andrade para acampar em seu quintal.

Vera era mais animada, topava qualquer parada. Gabriel sentia-se desconfortável. Fora assim no comecinho da década, quando resolveram acampar com os filhos junto ao reservatório de Furnas. O lago ficava tão perto da Calciolândia, a apenas uma hora de viagem, que Gabriel se animou para providenciar um barco. Não gostou de dormir em barraca e não quis repetir a experiência. Muito frio, ele reclamava, maldizendo o clima de montanha e a altitude da Serra da Canastra.

Vera voltou com os filhos em pelo menos duas ocasiões. Levava frango com farofa e ia passear de lancha, visitar as deliciosas quedas d’água que desabavam sobre o lago. Os meninos gostavam de esquiar, equilibrando-se nas tábuas e deslizando sobre a água em alta velocidade. Gabriel chegou a esquiar ali, mas nunca com o mesmo entusiasmo e a mesma disposição de Paulo e Álvaro.

No final das férias, todos gostaram tanto de Cabo Frio que decidiram voltar no ano seguinte. Dessa vez, alugaram uma casa. A solução encontrada por Gabriel para aproveitar o motorhome sem se irritar com a falta de infraestrutura foi adquirir um lote de frente para o mar e providenciar a construção de um banheiro e de uma garagem. Agora sim: poderiam estacionar o veículo na sombra e tomar um banho decente, sem ter de se apertar como sardinha. Aos poucos, Gabriel foi se animando e, a cada verão, incrementava um pouquinho a área construída. Na temporada seguinte, construiu uma sala enorme para poder receber visitas e acomodar algum sobrinho. Depois, meteu logo quatro quartos no lote, fazendo uma casa de verdade. Em pouco tempo, seriam oito quartos e uma porção de banheiros. Por fim, Gabriel comprou o lote vizinho, onde Vera instalou uma quadra de vôlei.

Vera e eu tínhamos mania de viajar. E éramos aventureiros. Fomos acampar com os meninos no lago de Furnas, que era relativamente perto da fazenda. Dormíamos em barraca, passeávamos de barco. Depois, importamos um motorhome dos Estados Unidos. Vera era muito animada. Guiava. Mas era muito sem conforto: apertado, quente, difícil de tomar banho. Nessa fase, acho que apenas o Paulo, o Álvaro e a Luciana nos acompanhavam. Fomos para algumas praias. Até que chegamos em Cabo Frio e eu gostei tanto de lá que comprei um terreno. Compramos o lote e fizemos uma cobertura alta, para voltar outras vezes e estacionar o motorhome debaixo, como se fosse uma garagem. Fazia sombra, mas mesmo assim precisava ficar ligando o ar-condicionado. E, para ligar o ar, ligava-se o motor. Ou seja: era algo pouco econômico e muito barulhento. Aí fomos construindo, primeiro banheiro e cozinha, depois uma casa mesmo, e desistimos do motorhome. Cabo Frio foi muito bom.

Vera sempre foi apaixonada por vôlei. Estendia uma rede em cada casa que construía, na cidade ou na fazenda. Gabriel preferia natação. Desde os 9 anos, quando aprendeu a nadar na piscina do Minas Tênis Clube, nunca mais deixou de praticar, três ou quatro vezes por semana, chegando a nadar diariamente em muitos períodos. Além disso, todos os dias, fazia ginástica. No vôlei, sempre foi péssimo, e futebol não era algo que Gabriel praticasse depois de adulto. Nadava, caminhava, andava de bicicleta e fazia ginástica, copiando uma sequência de exercícios que ele aprendia num livrinho que fora de seu pai, um pequeno manual ilustrado de práticas de condicionamento físico publicado pela Força Aérea canadense.

Os filhos Paulo e Álvaro, na adolescência, gostavam mesmo era de andar de moto, seguindo o exemplo do irmão Flávio, que desde 1967 já usara uma. Tanto estorvaram o pai dizendo que queriam uma moto que Gabriel, numa viagem a Cabo Frio, passou em São Paulo antes e comprou duas, da marca Suzuki e com 90 cilindradas, em dezembro de 1972. Elas tinham pneus largos, de baixa pressão, próprios para andar em dunas. Terminadas as férias, as motos foram para a fazenda, onde os meninos continuaram pilotando. Já em 1973, o genro Bernardo, marido de Laura, que também gostava de motos, comprou uma Yamaha poderosa, modelo trail de 125 cilindradas, mais adequado às estradas de terra da Colonial. Paulo ficou doido com a moto e ganhou uma igual no começo de 1974. Álvaro ganharia outra no final do mesmo ano, e, juntos, passariam a fazer trilhas nos fins de semana. Durante dois anos, a diversão dos meninos era esta: moto na Calciolândia, esqui em Furnas. A mania, no entanto, duraria pouco. No início de 1975, Paulo sofreu um acidente de moto que o deixou internado por 25 dias, de 1º a 26 de março, os primeiros 20 em coma.

Era noite, e os pais haviam saído para ir ao teatro. As motos estavam circunstancialmente em Belo Horizonte, onde os meninos eram proibidos de pilotar, embora costumassem sair para percursos curtos e breves: davam uma volta no bairro, iam até a casa de um primo a três ou quatro quarteirões. Naquela noite, Paulo pegou a moto para dar uma volta com o vizinho, um colega do colégio Loyola que prometera lhe mostrar onde estava rolando uma festinha, no bairro de Santo Agostinho. O nome desse amigo também era Paulo. Paulinho Carioca, ou Carioca, simplesmente.

— Vamos lá — Paulo insistiu.

— Agora não dá, eu nem jantei ainda, nem tomei banho — Carioca respondeu, tentando se esquivar do compromisso. Passava das 20h, e ele costumava se sentar à mesa às 21h.

— A gente dá um pulo lá rapidinho, só para você me mostrar onde é — Paulo sugeriu. — Eu trago você de volta e depois vou pra festa.

Carioca montou na garupa do amigo, calçando chinelos. Ao virar uma esquina, bateram de frente com um ônibus. Nenhum dos dois usava capacete. Nem portavam documentos. Por sorte, o ônibus estava praticamente parado, reduzindo o impacto. Carioca teve ferimentos leves. Paulo foi levado ao pronto socorro João XXIII e permaneceu numa maca no corredor, sem ser reconhecido, até que os pais chegaram, avisados por um colega de Paulo que passou pelo local do acidente e reconheceu a moto. Feitos os primeiros exames, o médico chamado por Gabriel optou por transferir o paciente para o hospital Felício Roxo, onde o córtex frontal teve de ser aberto para a extração de um coágulo e a colocação de uma placa.

Ao voltar para casa, Paulo permanecia calado, de olhos fechados, semi-inconsciente. Mais uma semana se passou até que ele começasse a abrir os olhos. Via tudo fora de foco, embaçado. Gabriel sentou à sua frente. Paulo queria falar, mas nenhuma palavra saía. O pai perguntou se ele conseguiria segurar um lápis e estendeu a ele junto com um papel. “Onde estou?”, o rapaz rabiscou. Foi um alívio geral. Dissipava-se, com aquela pergunta, os dois maiores temores de Gabriel: que o filho ficasse paraplégico e que tivesse algum comprometimento das funções cognitivas.

Desde o dia seguinte ao acidente, as motocicletas foram banidas da casa da Rua Eduardo Porto. Vera mandou Gabriel se livrar de todas elas imediatamente. Eram quatro. Também disse que não queria mais ouvir falar em moto naquela casa. Foi prontamente atendida. Álvaro voltaria a pilotar dali a algum tempo, é verdade, e manteria para sempre a paixão pelo esporte, tornando-se dono de uma loja quando adulto. Paulo nunca mais subiu em uma. Com o tempo, aprenderia a gostar de carros esportivos. Vera, prevenida, continuaria preferindo o bom e velho vôlei.

Houve ocasiões em que Vera conseguiu reunir todos os filhos, netos, noras e genros na quadra de vôlei de Cabo Frio. Viajavam no finzinho do ano, passavam o réveillon na praia e continuavam juntos pelos primeiros dias de janeiro. Apesar das muitas discussões, o casal de patriarcas exultava de satisfação ao ver todos reunidos, sobreviventes à guerrilha, à imprensa nanica, ao acidente de moto, à ameaça de prisão.

Para Vera e Gabriel, era ótimo ter todos os filhos por perto.

QUINZE ANOS APÓS O GOLPE MILITAR, uma década e meia decorrida desde a manhã em que Gabriel reuniu os papéis do Exército e saiu de casa disposto a impedir a tomada do poder pelos comunistas, sua empresa deslanchara, inaugurando a década de 1980 no seleto grupo das cinco maiores construtoras do Brasil.

A despeito dos riscos corridos por seus filhos, da violência empregada pelos militares para manter o poder e da morte ou desaparecimento de aproximadamente 400 pessoas durante a ditadura, o período foi o mais fértil da história da Andrade Gutierrez. Tanto o faturamento quanto o lucro da empresa cresceram exponencialmente nos anos de chumbo: algo como 1.100% de aumento no faturamento e 2.600% de aumento no lucro entre 1970 e 1980.

— O país cresceu — entendia Gabriel.

Mirando o retrovisor, a escalada de recursos da companhia é ainda mais admirável. A década seguinte seria de crise, o que evidenciava ainda mais o pico alcançado em 1980.

A AG tinha 15 anos em 1964. O mundo vivia a Guerra Fria. E João Goulart, junto com alguns sindicatos, queria implantar no Brasil o regime comunista, que era muito ruim. Para mim, era. Alguém devia gostar. Eu não gostava. Então começou uma época muito boa aqui, com muito investimento. Os militares foram ruins em termos de democracia, mas, em termos de construção, eles trabalharam bem. O país cresceu. Os militares não tinham que fazer política, então eles tinham mais força. Era ditadura, e eles eram mais voltados para o crescimento econômico.

Ao longo da década de 1970, contribuíram para alavancar as atividades da empresa não apenas o milagre econômico e o projeto desenvolvimentista conduzidos pelo regime, com obras de grandes proporções como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica: a AG também precisou fazer sua parte. E, em certas ocasiões, arriscar passos que, à primeira vista, pareciam maiores do que a perna. Em mais de um momento, a empresa disputou concorrências importantes, para obras de grande porte, com um grau de dificuldade e especialização para o qual à primeira vista, talvez não estivesse capacitada.

O segredo era não se deixar intimidar. Conforme fosse, a construtora correria atrás e aprenderia na marra. Tinha sido assim com as primeiras estradas, o primeiro campo de pouso, as primeiras pontes. Haveria de ser assim com os desafios seguintes, principalmente com as estradas abertas na Amazônia, entre elas aquela que viria a ser sua obra mais difícil e heróica: a construção da Rodovia Manaus-Porto Velho (BR-319).

A região Norte entrou no radar da AG em 1966, quando o presidente Castelo Branco criou a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Inspirada na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), que já existia desde 1959, a nova autarquia prometia incentivos fiscais e financeiros para atrair empreendedores dispostos a promover o desenvolvimento da chamada Amazônia Legal: área que compreendia os Estados do Norte, a faixa ocidental do Maranhão e a porção setentrional de Goiás.

Tudo o que faltava nesses lugares interessava à Sudam: indústrias, usinas, estradas, minas, projetos de colonização, cidades planejadas, obras de urbanização. No limite, o que o governo buscava era ocupar a Amazônia, objetivo que se tornou central depois que a doutrina de segurança nacional, arraigada no pensamento dos militares no contexto da guerra fria, foi convertida na lei de segurança nacional, em 1968. Buscava-se, ao mesmo tempo, levar “civilização” para os grotões e evitar que certos locais de difícil acesso e população rarefeita servissem de ninho para práticas ilegais ou, o que mais atemorizava os militares no período imediatamente posterior a 1968, focos guerrilheiros como o que se formou no Araguaia.

A mesma sagacidade que permitira a Gabriel antever um futuro promissor para a engenharia rodoviária em 1947, ao ouvir o irmão falar sobre a lei Joppert e o Fundo Rodoviário Nacional, fez com que ele vislumbrasse uma excelente oportunidade de expansão no programa da Sudam. Passar da teoria à prática seria função de Eduardo Andrade, que logo pôs-se a estudar os editais e a apresentar propostas. A estratégia era começar com obras mais simples e próximas e ir subindo no mapa conforme se adquirisse experiência.

A primeira oportunidade apareceu logo em 1967, com um contrato para construir um trecho da Belém-Brasília perto de uma cidadezinha de Goiás chamada Estrela do Norte. Ali o ecossistema dominante ainda era cerrado, e o clima, tropical. A construtora fez o trabalho e, em seguida, conseguiu pegar outra obra, na mesma rodovia, mas no Pará, agora num cenário de mata, com clima equatorial. Nessa obra, junto a uma vila chamada Vista Alegre, a equipe aprendeu a trabalhar em ambiente de floresta, com todas as dificuldades que lhe eram inerentes. Para se prevenir contra a malária, por exemplo, foi preciso providenciar potes e potes de medicamentos, e obrigar os trabalhadores a ingerir diariamente os comprimidos que lhes eram ministrados. Bastou espalhar o boato de que a droga poderia causar impotência ou perda da libido para que muitos se recusassem a tomar. Aí ficou parecendo rotina de hospital psiquiátrico: os encarregados tinham de obrigar os operários a tomar o comprimido, checar se eles tinham engolido, essas coisas.

Quando surgiu a concorrência para a Manaus-Porto Velho, a empresa já estava ambientada à região. Pegou a obra e montou canteiro em agosto de 1968. Na verdade, foram dois canteiros, um em Manaus e outro em Porto Velho. Estabeleceram-se desde o início duas frentes de trabalho, para que avançassem em ambos os sentidos, e, ao final, se encontrassem no meio do caminho: um longo caminho de 840 quilômetros a ser terminado em três anos. A equipe que havia feito o trecho de Vista Alegre seguiu para Porto Velho. Em Manaus, foi montada uma equipe nova. O trecho de Porto Velho progrediu bem e, em dois anos, havia chegado a Humaitá, a 200 quilômetros dali. Mas o trecho de Manaus não andava.

Ali, o canteiro era constituído por brejos, igarapés e pântanos. Na temporada da cheia, que em geral se estendia por três meses, as águas do Rio Amazonas transpunham as margens e cobriam uma área que alcançava um raio de 200 quilômetros a partir do leito. Até ser concluída, em 1973, a obra consumiria mais de cinco anos, quase o dobro do tempo previsto no contrato, e faria com que a empresa tivesse um prejuízo enorme nos dois primeiros anos, o que comprometeu metade do seu patrimônio.

A situação era dantesca. A maior dificuldade foi lidar com a chuva. Os temporais eram diários, e tudo alagava. A terra aflorada na fase de terraplenagem virava uma argila só, a ponto de, em vários momentos, a estrada se transformar numa estreita faixa cercada de água por todos os lados. Nessas horas, usavam-se barcos como meios de transporte. O relevo pouco acidentado, com apenas dez metros de declive em 840 quilômetros de pista, contribuía para a calamidade total.

Quase sempre, os temporais da tarde faziam com que o trabalho realizado durante o dia fosse perdido. Caminhões atolavam. A diretoria da obra chegou a comprar caminhões com tração nas quatro rodas especialmente para trafegar no leito da Manaus-Porto Velho, mas eles também atolavam. Tudo isso num lugar carente de infraestrutura, tão distante de São Paulo ou do Rio de Janeiro que qualquer equipamento poderia levar mais de um mês para chegar, após uma longa jornada de barco.

Outro detalhe: não havia brita por perto, nenhuma jazida que pudesse ser explorada por ali. Para fazer o concreto asfáltico, era preciso percorrer 200 quilômetros para chegar a uma pedreira, o que aumentava demasiadamente os gastos com transporte de insumos. Finalmente, numa região com forte incidência de malária.

As soluções foram aparecendo — e Eduardo teve participação na maioria delas. Embora não tenha morado ali, Eduardo a visitava com frequência e permanecia pelo menos dez dias a cada vez, sempre envolvido em soluções criativas e inovadoras. Para minimizar o problema da malária, por exemplo, a empresa criou, em parceria com a Bayer, um sistema que permitia borrifar inseticida armazenado em botijões acoplados a um caminhão adaptado. Todo fim de tarde, quando começava a escurecer, o veículo cruzava o canteiro de ponta a ponta e despejava quilos de veneno.

A dificuldade em conseguir brita foi solucionada de outra forma: em vez de viajar 200 quilômetros ao sul de Manaus para comprar o produto, técnicos da empresa foram orientados a desenvolver um material substitutivo, produzido com areia e asfalto. Para que os caminhões parassem de atolar, arremataram uma plataforma motorizada de lançamento de foguetes que estava sendo leiloada pelo exército americano: um veículo anfíbio com pneus enormes, de sete libras de pressão, concebido para trafegar em todo tipo de terreno, logo transformado em caminhão.

Em seguida, Eduardo teve presença de espírito para criar uma espécie de capa de chuva gigante, apta a proteger a estrada. Mandou produzir enormes rolos de plástico preto e concebeu uns carretéis com mais de 20 metros de altura. Antes da chuva, um trator passava pela pista desenrolando os carretéis e cobrindo de plástico trechos inteiros, com até quatro quilômetros de estrada. E como era difícil prever o início das pancadas, foi oficialmente instituída a função de vigia de chuva. Todos os dias, um funcionário subia ao topo de uma árvore e ficava lá em cima, com uma sirene, para avisar quando as nuvens carregadas começassem a se aproximar. Em vez de gritar “terra à vista” — ou “chuva à vista”, como seria apropriado à situação —, o rapaz tocava a sirene: era a deixa para que os carretéis fossem desenrolados e as capas de plástico entrassem em operação.

Fora do canteiro, a logística era igualmente complexa, os problemas eram frequentes, as condições de vida, sacrificadas, e o comprometimento da equipe, admirável. As famílias moravam em Manaus, uma cidade ainda bastante precária nos anos 1960 e 1970. Os maridos passavam a semana nas obras, em região de mata, insalubre, com temperatura na casa dos 40 graus, morando em casebres de palha ou em carretas móveis sem nenhum conforto. Sem a coragem e a dedicação de cada colaborador, disposto a manter-se motivado e motivar suas equipes a despeito das enormes dificuldades, a BR-319 não teria sido concluída.

Depois de pronta, a Manaus-Porto Velho habilitou a AG a disputar, com vantagem competitiva, todo tipo de obra planejada para a região. Não apenas a empresa havia adquirido um know how inédito para trabalhar em floresta, algo que nenhuma outra construtora tinha, como seria beneficiada pela presença, já nos Estados do Norte, tanto de equipes capacitadas quanto de equipamentos de construção pesada, podendo desprezar, nos orçamento que apresentava, parte dos gastos que as concorrentes teriam simplesmente com o transporte de tudo isso até lá.

A aventura de construir na Amazônia exigiu soluções criativas, como o sistema que cobria o canteiro com plástico para que a chuva não destruísse o que já estava pronto.

A AG soube aproveitar essa vantagem e, ao longo dos anos 1970, pegou uma obra atrás da outra, mantendo quase 10 mil empregados na região Norte durante alguns períodos. Primeiro, abriu algumas das principais avenidas de Manaus, ainda na primeira metade da década. Emendou com um trecho da Perimetral Norte, entre 1973 e 1976. Em seguida, fez praticamente do zero a implantação do ousado projeto de Porto Trombetas. Concebido em 1976 para servir de entreposto comercial e hospedar os operários da maior mina de bauxita do mundo, explorada pela Mineração Rio do Norte (MRN) na Serra do Saracá, Porto Trombetas foi uma importante intervenção numa área totalmente ocupada por mata, na qual a Andrade Gutierrez construiu tudo: um porto, as ruas, os alojamentos, a rodovia e até uma ferrovia, além da área de mineração e das plantas industriais. Em 1977, a operação local da AG já havia se tornado a maior empresa em atividade em toda a Amazônia. Contando todos os setores, e não apenas as empresas de construção.

Gabriel esteve poucas vezes na Amazônia, intimidado pela distância e pelo desconforto que sentia sob o calor úmido e intenso da floresta tropical. Em pelo menos uma de suas visitas, pousou junto com Vera na obra da Perimetral Norte, num Douglas DC3 que a AG havia comprado para servir às obras na região (em seguida, a empresa compraria outras três aeronaves do mesmo modelo). O casal fora conhecer a escola construída por Paulo Saliba anos antes. Aberta em 1974, não apenas para os filhos dos operários, mas também para os moradores do entorno, em sua maioria ribeirinhos que iam estudar de barco, a escola já comportava 250 alunos em 1978 e recebera o nome de Escola de Primeiro Grau Vera Andrade.

No final dos anos 1970, um balanço de tudo o que fora feito na Amazônia naquele período trouxe a certeza da missão cumprida: a região respondera por 60% do faturamento da AG na década. Dali a cinco anos, a empresa voltaria a realizar uma obra de grande porte na região Norte, a usina de Balbina. Mas, antes dela, houve outra hidrelétrica a construir: Itaipu.

--

--

Camilo Vannuchi
Na estrada com Gabriel Andrade

Jornalista e escritor, sou mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Escrevo também no www.facebook.com/camilo.vannuchi