Fogo Azul

Daniel Borges
na calçada
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4 min readApr 24, 2021

Sempre ouvi que certas experiências nos transformam. Essa aconteceu na Rua Barão de Monjardim, no Centro Histórico de Vitória, no dia dez de fevereiro de 2021, às 8h15. E não tem nada de boa.

Primeiro tenho que recapitular: janeiro de 2020, ainda vivíamos o velho e bom normal — de anormalidade apenas o presidente da República — quando me mudei para uma bucólica rua num acalorado bairro, o centro. Uma região que no passado era referência no comércio — quando ainda se grafava commércio — , abrigava grandes empresas, sedes dos poderes judiciário, legislativo e executivo, (este último ainda por lá, o Palácio Anchieta, sede do governo).

Porém, com o avançar implacável dele, o tempo, o encanto se desfez. Empresários expandindo seus negócios para novos bairros, as sedes citadas idem, inclusive formando um novo ‘centro empresarial e de negócios, bem próximo dali. Enfim, não vim relatar mudanças sociogeográficas da cidade, nem tenho capacidade. Nos dias atuais, o centro é sinônimo de concentração cultural — até a chegada da pandemia pelo menos. Espaços de eventos independentes, restaurantes e bares com apelos musicais, teatrais, de performance artística e etc, etc e etc. Mas a Barão é diferente.

manhãs comuns na Barão

Pra quem veio do interior como eu, é como estar em casa. Uma rua desconectada na maneira do possível de festas, agitos, aglomerações (no bom sentido), mas ao mesmo tempo envolvida muito por conta da transpiração de artistas residentes na localidade. Enrolei até aqui, mas agora desenrolo.

No dia 10 de fevereiro a minha paz e a de minha companheira de jornada, Maíra, acabou. Era 08h15, minutos antes, três no máximo, estava no corredor do prédio, saindo para o trabalho, chamando o elevador. Retorno pro apartamento pois havia esquecido de pagar a conta de gás. Fui pra cozinha, bem próximo à porta da entrada, me sentei à mesa, apontei a câmera do celular e paguei a fatura. Em seguida, respondo uma mensagem de meu irmão, agradecendo o sonho de doce de leite que havia me dado um dia antes, comprado numa padaria ali perto. Neste exato minuto, ao enviar a mensagem, sinto um calor inexplicável e volto o olhar em direção a porta: uma enxurrada (não pensei em outra palavra) de FOGO AZUL invade minha porta, adentra em minha sala e escapa pela janela da sala (aberta, ainda bem!).

Em choque por segundos, sem entender direito o que rolava, tive um pensamento e uma ação. Gritei por Maíra que dormia no quarto e pensei em cortar a tela de proteção da janela pra pularmos (era segundo andar, mas com laje abaixo). Tinha certeza que se tratava de um incêndio. Ao entrar na cozinha pra pegar a faca pra cortar a tela, um grito e solavanco na porta, emperrada, me faz perceber que foi uma explosão e não um incêndio. Era um homem na faixa dos 40 e uma senhora logo atrás, ambos com cabelos em chamas. Pediam por socorro. Dali em diante não tenho muita memória do que falei/fiz. Pude entender que foi um acidente com gás encanado, eles haviam acabado de se mudar. Sei que eu e Maíra saímos do apto e acredito ter tentado conversar ou ajudar. Estavam queimados, não podíamos sequer encostar. Eram mãe e filho. De pé, aparentemente conseguiriam sair do condomínio andando. Claro, analisando apenas o físico. Estava ele transtornado e a mãe, em estado de choque, calada. Não vou detalhar mais, em respeito aos dois. Principalmente à senhora, que três dias depois não resistiu e faleceu. O filho, até onde sei, segue internado em estado grave, estável.

Como fugir dos clichês: “não desejo pra ninguém” e também perceber como a vida “não vale nada”, ou “como somos frágeis diante do mundo e suas intempéries”. Sei que passei perto da morte. Vi o fogo na minha frente, olhos queimando, garganta seca, pelos dos braços e peito queimados. Com o perdão da palavra, é coisa pra caralho para se assimilar.

Deixei a rua que me acolheu no último dia 10. Foram um ano e três meses onde vivi o final do velho normal, carnaval, fiz 29 anos, reencontrei meu amor, parceira e amiga Maíra. Foi lá que tive a sorte depois ser vizinho de meus irmãos Thiago e Lara, que seguem por lá.

Vou sentir falta da Barão. Mais ainda da versão 2020. Mesmo com a pandemia, e olha que foi lá que contraí covid-19. Mas foi lá que voltei a me sentir em uma comunidade, como na adolescência, antes de sair de Guaçuí. Tive o boteco pra chamar de meu, virei amigo do dono, o dono virou vizinho, virou sócio por pouco tempo em outra frente, e ainda segue por lá.

Vista do sossego pra inquietação

Sigo por aqui, há menos de dois quilômetros da Barão. O Centro é diferente. Te maltrata de algumas formas, mas te acolhe de outras.

Tô pra escrever isso tem um tempo, mas só consegui agora, numa tacada só, digitando no notebook em cima de uma tábua de passar roupas (ainda ajeitando o ap), com a companhia inseparável da gatinha Cristal, que parece gostar do som das teclas. E escrevendo agora, me fez perceber como também gosto. Só não estamos em total silêncio pelo barulho das ruas vivas e do ronquinho gostoso de Cristal. A paz de volta.

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