O butiquim entre os poderes executivos e o novo álbum de Xande de Pilares

Daniel Borges
na calçada
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3 min readAug 10, 2023

Após levar um tapa fortíssimo da vida — na verdade, da Casa do Silencioso — e perder 500 cruzeiros numa descarga nova pro carro (como o tricolor Gilberto Gil diz na canção que até hoje rubro-negros entendem ser uma homenagem, alô, Rafael, aquele abraço!), me coloquei naquele dilema que todos nós, trabalhadores, nos deparamos quando queremos nos dar um presentinho pós-trauma, por puro consumismo safado. Resumindo: fui ao butiquim.

Não no primeiro pela frente, sem desespero. Após oito anos, volto ao Bar do Itamar, na Cidade Alta, que há 41 anos está no comando, herdado do pai — que agora me foge o nome, mas estampa, em foto, um relógio de ponteiro, logo na entrada. Certamente, é uma das melhores cozinhas de pés-sujos, bares e afins do centro. De caldo de feijão no copo americano a bolinho de carne e torresmos gorduchos, passando pelo bem-servido escudiguim.

O relógio está em pleno funcionamento, juro.

O Bar do Itamar está exatamente entre o Palácio Anchieta e a Catedral de Vitória — seria a faixa-de-gaza dos poderes executivos, de Deus e dos Homens?! O espaço público mais democrático que há é o butiquim. Todo o restante está em segundo lugar.

E foi no Itamar, logo ao chegar, que presenciei uma cena que retrata isso. Em pouco mais de três metros quadrados, conversavam sobre a compra de produtos na internet, como tênis e roupas, um homem-armário, barbado e tatuado da unha encravada do dedão até a precoce calvície que o atinge, dois discretos maçons que compraram maços (sem trocadilhos), uma carioquíssima e expansiva senhora vaxxxcaína — mostrava o escudo tatuado nas costas com um ‘amor eterno’ — e três garis que encerravam o expediente com torresmaços e coquinha gelada pra rebater.

E a modernidade me tem feito sentir numa espécie de Conversa de Botequim — salve, Noel Rosa! — versão EAD. Não na relação professor x aluno, o caso tá mais para colegiado Cotovelo no Balcão. É que eu, cá do centro de Vitória, passei os detalhes — e fotos — da cena descrita acima para o amigo Felipe Bezerra, vulgo Bezerra, lá de Cachoeiro de Itapemirim (e, às vezes, de Marapé, vulgo Atílio Vivácqua — e não o contrário). Esse malandro-capoeira é referência no escrever, vão por mim. Além disso, nosso assunto do dia foi o lançamento do disco que nasceu clássico: “Xande (de Pilares) canta Caetano (Veloso)”.

O samba é diferente. Dois homi véi, eu cá e ele lá, falando, escutando e se emocionando com esse álbum, que tem tudo para ser o disco do ano no Brasil. Poderia fazer um faixa a faixa aqui, mas ficariam previsíveis os comentários, de tão bom que está o trabalho. “Muito Romântico”, “O Amor” e “Gente” são faixas que, nascidas MPB, transcenderam a arte em forma de samba.

É muito bom ainda se surpreender com quem é talentoso. Com esse disco, Xande de Pilares entra de vez, na minha modesta opinião, no panteão do samba e senta à mesa com os imortais. Mesmo após o que poderíamos entender ser o ápice dele enquanto artista, no Revelação, e mesmo após os 50, Xande comprova evolução e limite desconhecidos a explorar. Mais afinado do que nunca, inclusive.

Xande de Pilares não é “só” um excelente intérprete (que mais parece ter metais vocais ao invés de cordas). Ele é um dos melhores cavaquinistas, além de grande divulgador de sambas antigos. É muita responsabilidade que vou colocar, mas Xande, com esse disco-homenagem, se coloca, mesmo sem querer ou perceber, seja pela bagagem e nítido talento, como o principal grande nome do samba no país em plena atividade.

Ouça.

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