Brasil e a chacina trans

Francine Oliveira
Nada Errado
Published in
4 min readNov 16, 2015
Laura Vermont, assassinada neste ano

Não é novidade: o Brasil é o país com maior número de assassinatos de pessoas trans no mundo.

A idade média das mulheres trans no Brasil é de apenas 35 anos — trata-se de praticamente a metade de anos que um cidadão brasileiro vive!

Segundo o “Relatório sobre violência homofóbica no Brasil”, publicado em 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos — que hoje se tornou o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos –, foram divulgados na mídia, apenas no ano de 2012, 511 atos de violência contra pessoas inseridas na chamada população LGBTT, sendo 310 homicídios. As vítimas travestis correspondem a 51,68% do total.

De acordo com o monitoramento da organização Transgender Europe (TGEU), entre 2008 e 2014 foram contabilizados 770 assassinatos de pessoas transgênero no Brasil. Até o momento, foram registrados 81 assassinatos em 2015.

Não nos esqueçamos, esses números estão inseridos em uma realidade de que muitas mortes não são reportadas como assassinatos (ou nem sequer reportadas), em diversos casos a família não reclama o corpo, em tantos outros o “sexo” reportado diz respeito à genitália e a vítima tem sua identidade de gênero totalmente ignorada.

No Brasil, a maioria das travestis e mulheres trans não encontram outra saída diante da exclusão a não ser ir para as ruas se prostituir, uma vez que não têm nem mesmo suas identidades sociais respeitadas e se veem juridicamente impedidas de ter carteira assinada ou serviço médico decente simplesmente porque seus corpos não estão em conformidade com seus documentos — e, para mudar os documentos, um processo longo e ardiloso, é preciso, antes mudar o corpo e apresentar laudos médicos… São vítimas de violência diária.

Expostas, na rua, à prostituição, estão inerentemente expostas também à violência, ao risco muito real de serem assassinadas.

Ademais, quando agredidas não têm a coragem de procurar ajuda pela ameaça de, na delegacia, serem tratadas como causadoras do ato contra elas mesmas. Não há proteção institucional alguma para essas pessoas a quem os direitos mais básicos são negados.

De fato, alguns projetos estão sendo colocados em pauta, algumas conquistas devem, inclusive, ser comemoradas — a maioria delas diz respeito ao uso do nome social em universidades e no ENEM, apesar de tal garantia não ter evitado que pessoas trans fossem desrespeitadas por aplicadores e fiscais mal treinados.

Outro dia estive discutindo sobre a questão dos gêneros com um professor que não acha que pessoas transexuais tenham direito a usar o banheiro. Para provar seu ponto de vista, começou a fala ironizando a noção de que “ninguém nasce mulher”.

Ora, “Ninguém nasce mulher, torna-se”. Trata-se de uma afirmação clara: uma criança se torna mulher na medida em que cresce e que é criada para ser uma mulher. Essa frase de Simone de Beauvoir influenciou os movimentos feministas que viriam a surgir nos anos 1960.

Mas que relação isso teria com a transexualidade? Bom, podemos dizer que, mesmo quando a criança é criada para se tornar mulher isso não significa que ela se sinta, internamente, mulher. Sim, é algo complexo de se entender — e que a ciência ainda tem dificuldades de explicar. Contudo, também não se trata de algo absurdo e ininteligível; a transgeneridade existe desde que o mundo é mundo, basta fazer uma pesquisa por mitos e lendas da antiguidade.

Conforme observa Berenice Bento, a grande maioria dos assassinatos é peculiarmente violenta, revelando atos passionais — ou seja, ódio intenso das vítimas. São múltiplas facadas ou tiros, esquartejamento, não raro tendo havido agressão e/ou estupro antes da morte. Tratam-se de crimes sintomáticos, uma vez que o número de homens que procuram sexo com travestis não é pequeno. Talvez seja um sinal de que, desconfortáveis com sua sexualidade, julgam mais aceitável atrair-se pela figura feminina, buscando, então, uma mulher, digamos, “fálica” — ou dialética. Após o ato sexual, sentem um ódio provocado pela própria sexualidade recalcada no dia a dia… sua raiva é direcionada àquela pessoa pela qual sentiram desejo, como se fosse ela a culpada por uma sedução inexplicável.

Ao que parece, essas pessoas ainda são vistas como uma ameaça a nossa própria certeza de que somos “homens e mulheres de verdade”, colocando em xeque essa noção — ingênua, por sinal — de que a identidade é única e imutável ao longo de uma vida, de que há uma essência em cada ser humano determinada pela biologia.

Nessa situação calamitosa, em que não há empatia por parte de muitos que consideram a transgeneridade uma condição “anormal”, ecoa ainda a pergunta: e aí, quem é que chora pela travesti?

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Francine Oliveira
Nada Errado

Doutore em Estudos Literários e pesquisadore de Estudos Queer e extrema direita. Tradutore, revisore e escritore.