Finalmente com tranças
Por Vitor Pereira
Não é apenas um coque, é o coque mais esperado de todos os séculos. É o que eu esperei para fazer enquanto adulta, colocar cabelo e fazer um coque. Só um coque. Não que eu esteja adulta. Eu não sei nem quem eu sou, quem diria saber se sou adulta. — o que é ser adulta? — Naquela época, eu só pensava em fazer um coque e passar a tarde toda com meus amigos jogando papo de fora. Fiz isso hoje e foi transformador.
|Pereira, Victor — a garota que não para de escrever nem quando está chapada, no caso eu tô chapada agora (tipo muito) e também sou a garota que aceitou que os problemas não estão nela e sim nisso que chamamos de sociedade|
Desde pequeno eu sonhava em ter cabelos longos, passava minhas tardes penteando os cabelos das minhas amigas e da minha mãe. Meu pai até me chamava de Zé do Cabelo. Desejava todos os fios que penteava. Sonhava em ter cabelos longos e lisos. Fui crescendo e essa vontade ainda continuou. Depois que comecei a militar no movimento negro, comecei a minha transição capilar. Desde janeiro desse ano não corto meu cabelo. Prometi que iria amar meu cabelo e me amar mais.
Aceitei o meu cabelo e ele começou a crescer. No início fiquei muito preocupado. As pessoas não se relacionam com negres, as pessoas não veem beleza nos negres. Tinha medo da solidão. Eu já sofria por ser negro e não conseguir me relacionar, pensava que se deixasse meu cabelo crescer a coisa iria piorar. Na verdade não pirou, mas também não melhorou. Ainda sofro com a solidão. Ainda sofro com o racismo. Mas aceitar o meu cabelo foi libertador. Foi mais que um ato político.
Queria mostrar para os meus amiges negres que eles também poderiam aceitar os seus cabelos e que devíamos fazer isso. A sociedade precisava ver como nosso cabelo é lindo sem alisamentos e químicas.
Depois da transição me reconheci como negro. A representatividade nunca existiu. Por isso vinha a vontade de ter cabelos longos e lisos. Desde sempre a sociedade me embranquecia chamando de moreninho, mulatinho, pardo… A transição foi a minha libertação. Os racistas que me rodeavam começaram a se afastar. Não deixava mais as pessoas zoarem o meu cabelo ou fazer piadinhas com o meu povo. Afastaram-se porque não reconhecem os privilégios que tem. Se incomodam com um negro falando que não vai tolerar mais racismo. Um negro que aceita o seu cabelo e aceita o seu corpo incomoda muito. E por favor, vamos continuar incomodando. Quero ver vários negres passando por transições e lutando para acabar com esse sistema que nos explora todos os dias.
Com o tempo fui percebendo o cabelo crescendo. Amava cada centímetro que crescia por mês. Depois de 6 meses decidi colocar tranças. A vontade de trançar o cabelo veio depois que a Candy Mel — vocalista da Banda Uó — apareceu com o cabelo trançado no clipe “Búzios do Coração”. Sou apaixonada pela Candy Mel e desde então fiquei me coçando para trançar o meu.
Trancei meu cabelo há três dias. E há três dias estou me sentindo a pessoa mais maravilhosa desse mundo. Fazem três dias que eu não paro de olhar no espelho e falar como eu sou linda. Fazem três dias que estou me sentindo liberta.
A luta contra o racismo não é nada fácil. A solidão não é fácil. A depressão não é nada fácil. A gente não consegue lidar com muitas coisas. E trançar meu cabelo fez com que eu ascendesse à chama que estava querendo apagar, levantar aquele corpo que estava quase caindo. Desistindo da luta por estar machucado demais. A luta é árdua. O processo de empoderamento me libertou. A transição me libertou. O movimento negro me libertou. Hoje, com os cabelos trançados me sinto outra pessoa. A minha vida mudou. Agora eu posso fazer o coque eu sempre sonhava usar. Não só coque, da para fazer mais de 50 penteados. Até agora só recebi elogios sobre minhas tranças e pra quem não gostou: foda-se. Eu tô linda e isso que importa. Aceitem.
Negres se amem mais. Somos lindos. Somos deuses e rainhas africanas. Se libertem. E quem ainda não trançou o cabelo, fica a dica: é a melhor experiência da vida.
A REVOLUÇÃO NÃO SERÁ ALISADA!