Precisamos temer o “Estatuto da Família”?

.ricardo .laranja
Nada Errado
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4 min readOct 21, 2015

Ou “Ainda há muito pela frente, mas existem razões para acreditar”

No último mês, muito se tem comentado sobre o Estatuto da Família, projeto de lei que visa reconhecer como “Família” apenas grupos constituídos por “homem + mulher + filhos biológicos”. Pode parecer absurdo (e, de fato, é) que algo assim seja levado a sério em pleno século 21 — esse tal que a gente comenta tanto que é cheio de evoluções.

Apesar de inúmeros protestos e adiamentos, o projeto, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PP-RE) foi aprovado em primeira instância no último dia 24 de setembro. Mas, afinal, o que realmente significa este projeto?

Em primeiro lugar, precisamos entender que o projeto ainda não está aprovado em definitivo. Existe uma série de outras votações e passos para que um PL se torne, de fato, uma lei. Inclusive, em último grau, é necessário que a presidência do país aprove e assine a lei — o que ainda está longe de acontecer, especialmente considerando que o atual governo tem a causa LGBT como moeda de troca política.

Enquanto moeda de troca, também é importante ressaltar que o PL é, em linhas muito gerais, “apenas” isso. Uma grande e maciça moeda de troca para a bancada evangélica conseguir ainda mais relevância e votos em próximas eleições. Vale lembrar que as últimas eleições foram as que mais elegeram candidatos religiosos (especialmente evangélicos) que, em sua maioria, utilizaram campanhas que denegriam a população LGBT e nossos direitos — mesmo os já assegurados por lei.

Importantíssimo lembrarmos que, apesar de o nosso calo doer bastante, já que existe uma dificuldade social em aceitar nossas famílias, outros modelos sociais também seriam afetados diretamente pelo PL. Pais com filhos adotados, mães solteiras ou viúvas, por exemplo, não seriam considerados, legalmente, uma família. Importante salientar que o projeto não anula quaisquer relações ou inviabiliza o registro de união civil entre casais do mesmo sexo — ou mesmo dificulta processos como os de adoção, por exemplo. Mas, paralelamente, gera entraves sociais que são de impacto muito forte. Imagine uma criança que tem sua constituição familiar questionada e deslegitimizada. Como explicar que “nós não somos uma família”?

Essa entrevista com o advogado Frederico Oliveira, publicada no Lado Bi, é bastante esclarecedora quanto ao funcionamento do PL e o andamento dele na Câmara, e também sobre o impacto que o projeto tem sobre famílias já estabelecidas.

Aqui um trecho:

Em tese, acaso seja o Estatuto aprovado, não será possível, a partir dele retirar ou restringir direitos para a constituição de outros modelos de família. Por outro lado, a referida lei geraria insegurança jurídica porque poderia servir de justificativa para práticas discriminatórias no mundo dos fatos. Afinal de contas, as leis servem como instrumento para provocar uma mudança de cultura e se a lei é discriminatória, ela pode servir como escudo para práticas também discriminatórias, impulsionando o conflito nas relações sociais e, por consequência, na judicialização do direito como o meio para se combater essas hipotéticas práticas violadoras. Também convém salientar que o questionado Estatuto, nos moldes em que foi redigido define políticas públicas para promover uma disciplina a ser inserida nas grades curriculares denominada “Educação para a Família” e os “Conselhos da Família”, o que poderia ser a porta de entrada para a institucionalização de políticas que afrontam a laicidade do Estado, sobretudo diante dos princípios definidos na ordem constitucional pautados pela “liberdade” na “convivência familiar e comunitária” e proibitivos da “violência” e “opressão”.

Razões para acreditar

Na última semana, o Rio de Janeiro se tornou o primeiro estado brasileiro a reconhecer uma união estável entre três mulheres. O trio é o segundo, no país, a ter a união reconhecida e juramentada (o primeiro era formado por um homem e duas mulheres, em Tupã, interior de São Paulo).

A união foi formalizada pela tabeliã Fernanda de Freitas Leitão, que partiu dos mesmos princípios da união homoafetiva para registrar o caso. “A decisão do STF discriminou todo o fundamento e os princípios que reconheceram a união homoafetiva como digna de proteção jurídica. O princípio da dignidade humana e que o conceito de família é plural e aberto”, disse, em entrevista ao Estadão.

“Essas três mulheres constituíram uma família. É diferente do que chamamos de família simultânea. Há milhares de pesoas no Brasil que são casadas, mas têm outras famílias. Esses são núcleos familiares distintos. Essas uniões de três ou mais pessoas vivendo sob o mesmo teto nós estamos chamando de famílias poliafetivas”, disse Rodrigo Pereira, presidente do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito da Família)

No fim das contas, parecemos viver em um cenário onde a sociedade parece estar muito a frente do pensamento de seus gestores. E se enquanto, dificilmente, o projeto de lei do Estatuto da Família conseguirá ser aprovado, “aqui embaixo” as pessoas vão encontrando maneiras de sobreviver em meio a tanto preconceito e ignorância. Sorte nossa que existem pessoas como a tabeliã Fernanda de Freitas por aí.

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.ricardo .laranja
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.um ser humano fantástico, com poderes titânicos △△