Sobre a identidade trans na infância

Nada Errado
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4 min readOct 10, 2015

Por Francine Oliveira

Há alguns anos, quando John Jolie-Pitt começou a aparecer em público com roupas masculinas, a imprensa rapidamente se dispôs a questionar os pais pela forma como deixaram o filho se comportar. Por ter sido designado com o sexo feminino ao nascer, John (antes Shiloh) chamou a atenção de todos por, desde cedo, não se conformar com a identidade de gênero que dele se esperava.

Não faltou quem criticasse os pais, nem quem achasse que John estivesse apenas passando por uma fase — na verdade, essa poderia ser até uma possibilidade; há crianças que passam por experimentações com o gênero, não se identificando necessariamente como trans no futuro.

Porém, o comportamento da criança que desde muito cedo pode ser identificada como transgênero tem uma diferença grande em relação àquela que tem um gosto pelas coisas associadas ao gênero oposto, como um garoto que gosta de usar vestidos: a assertividade. Afinal, “ser” e “gostar” são verbos bem diferentes.

Segundo estudo realizado pela Universidade de Washington, liderado pela psicóloga Kristina Olson, fundadora do projeto Trans Youth, crianças trans identificam seu gênero ao mesmo tempo em que crianças cisgênero.

Olson conduziu o estudo com 32 crianças entre as idades de 5 e 12 anos, nenhuma tendo atingido a puberdade ainda. Usando um Teste de Associação Implícita, os pesquisadores mediram a velocidade com que os participantes associavam aspectos do gênero com sua própria identidade, o que acontece de forma mais automática e inconsciente. Os dados revelaram que não há diferença significativa entre nenhuma das crianças, ou seja, trans e cis se identificaram com os aspectos do gênero que expressavam ao mesmo tempo: garotas trans e cis se identificaram como do gênero feminino ao mesmo tempo; garotos trans e cis se identificaram como do gênero masculino também ao mesmo tempo. Dessa forma, podemos afirmar que a identidade de gênero é uma característica consistentemente mantida pelos indivíduos desde muito cedo.

A iniciativa de Olson demonstra que encorajar o filho a expressar sua identidade de gênero não é um erro, nem uma negligência por parte dos pais. Essa descoberta retifica um estudo feito em setembro de 2014 na Holanda, que demonstrou que pessoas trans que tomam medicamentos para atrasar a puberdade — fazendo com que não precisem enfrentar o desenvolvimento de características do sexo oposto ao gênero com o qual se identificam — têm uma vida feliz e satisfatória na idade adulta. A partir dessa escolha, indivíduos trans apenas passarão pela puberdade quando começarem o tratamento hormonal adequado para sua identidade de gênero.

Uma das questões que merece ser levantada aqui é a da própria criação dos filhos cisgênero. Afinal, se para muitos é errado “incentivar” a criança que demonstra ser transgênero, por que deveríamos pensar que é certo incentivar a cisgeneridade? Se uma criança é muito nova para definir se é trans, ela também não seria muito nova para se definir cis? Como nos apegamos a expressões que devem estar de acordo com a aparência dos genitais, ou com a configuração genética, somos levados a crer que agir de acordo com o gênero designado ao nascer é algo natural.

Ao longo da criação, fazemos de tudo para que a criança corresponda às expectativas do gênero que determinamos para ela. Chegamos a aplaudir o garoto que age como “macho” ou a garota que é vaidosa desde pequena. No entanto, se percebemos o contrário — um garoto excessivamente vaidoso ou uma garota “masculinizada” –, rapidamente procuramos motivos para justificar o que “deu errado”.

A percepção que a criança trans tem de si mesma e sua expressão de gênero são majoritariamente subestimadas como “uma fase” ou uma “confusão” pela qual estão passando.

A mensagem deixada por Leelah Alcorn antes de seu suicídio, em dezembro de 2014, é sintomática desse tipo de reação que prontamente nega a descoberta da transgeneridade pelas crianças e adolescentes. A família religiosa da garota jamais aceitou sua condição, como a própria Leelah escreveu:

“Quando eu tinha 14 anos, eu aprendi o que queria dizer transgênero e chorei de alegria. Depois de 10 anos de confusão, eu finalmente compreendi quem eu era. Eu imediatamente contei para minha mãe, e ela reagiu de forma extremamente negativa, me dizendo que isso era uma fase, que eu nunca seria realmente uma garota, que Deus não comete erros, que eu estava errada. Se vocês estiverem lendo isso, pais, por favor não digam isso para seus filhos. Mesmo se você for cristão ou contra pessoas transgênero não diga isso jamais para alguém, especialmente seu filho. Isso não vai realizar nada além de fazê-lo odiar a si mesmo. Foi exatamente isso que aconteceu comigo.” (Fonte: Lado Bi; a página de Leelah foi desativada)

Não existe um registro preciso de quantas pessoas transgênero se matam a cada ano — em partes, porque o suicídio não é reportado ou a transgeneridade não é revelada. Porém, segundo uma pesquisa realizada no Reino Unido, 48% dos jovens trans (com até 26 anos) disseram ter tentado suicídio entre 2010 e 2014, sendo que 30% revelaram tê-lo feito no último ano! Além do mais, 59% dos jovens trans já tentaram se machucar de alguma forma (entre os demais jovens, esse índice foi de 8,9%).

Se esses números não nos assustam o bastante para mudar a forma como enxergamos a transgeneridade, principalmente entre crianças, não sei o que mais poderá nos fazer mudar…

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