Sobre Raja, drag queens e pioneirismos

Francine Oliveira
Nada Errado
Published in
4 min readJun 17, 2016

De nada adianta uma “montação” altamente elaborada sem o conhecimento de que o ato drag é também político e questionador de identidades e normas de gênero.

Foto: Lucas Chagas (Underlight)

Estou achando cada vez mais complicado escrever sem reproduzir um estilo acadêmico que me persegue. Reviso tantos artigos e escrevo outros tantos por causa da pós-graduação, que na hora de produzir um texto menos formal os vícios predominam. Daí minha demora em publicar aqui…

Em maio, após uma série de shows, a drag queen Raja, vencedora da 3ª temporada de RuPaul’s Drag Race, encerrou sua breve turnê no Brasil em Belo Horizonte, com a casa cheia, apesar de ser um domingo. Simpática e sempre com um sorriso no rosto, disse que estava um pouco cansada, mas muito feliz.

Em seu primeiro número, vestia a réplica da icônica roupa de Madonna com a qual compareceu ao palco na coroação da 8ª temporada. Obviamente, a música escolhida para a performance foi “Express Yourself”.

Exalando carisma, do alto de seus quase 2 metros de altura com os saltos, elogiou a beleza dos brasileiros e saiu do palco para se trocar.

Foto: Vitor Pirolli

Para o segundo número, Raja cantou sua nova música, uma homenagem a Divine. Seu discurso com certeza é um dos motivos de ela ter sido vencedora da temporada em que participou: ao dizer que todos ali deveriam agradecer aos reais pioneiros da cena queer, citou Grace Jones, Boy George (nome que não foi reconhecido pela plateia), Madonna e sua drag queen favorita — “não, não é RuPaul” –, Divine. Ao fim, tomou um shot de cachaça, novamente agradeceu à receptividade, e então se despediu.

Como artista, é difícil traçar uma linha clara que separa Raja de Sutan. A consolidação tanto da drag queen quanto do maquiador ocorreu bem antes de RuPaul’s Drag Race mas, se não fosse o programa, nós, brasileiros, por exemplo, não teríamos a chance de vê-lo no palco pessoalmente.

Quando fala, no primeiro episódio da 3ª temporada, que drag queens deveriam ser pioneiras, ela resume sua personagem e suas influências de uma forma inédita no reality show; mas que parece até hoje não ser muito bem compreendida pelos fãs de RuPaul’s Drag Race e por aqueles que, apesar de celebrar a arte drag desde o surgimento do programa, não se esforçam por resgatar o que a história rica e conturbada que o movimento LGBTTTQIA+ tem a passar adiante. O que se passou fora dos holofotes, em becos, bares e casas noturnas mal iluminadas, onde o glamour se misturava ao suor de quem se apresentava sem esperar por um cachê ou mesmo pelo reconhecimento de admiradores, hoje, continua acontecendo, ainda que juntamente a conquistas impensáveis.

Que drags tenham alcançado status de estrelas merece ser comemorado, mas, por vezes, não são aquelas que sobem ao palco por quantias significantes de dinheiro que representam o movimento. Algumas nem mesmo demonstram consciência da importância de estarem ali, veneradas por jovens que finalmente gozam de modelos “alternativos” para aspirar.

Ao entrar no palco em Belo Horizonte para seu segundo número, Raja colocou sua “purse first”, lembrando da vitória de Bob The Drag Queen. Quando discursou sobre pioneirismo, isso imediatamente me remeteu ao quanto a coroação de Bob foi alvo de crítica por fãs do programa, por não se tratar de uma fishy queen que ostenta visuais elaborados nem leva a “ilusão feminina” a seu último estágio.

PURSE FIRST! — Foto: Lucas Chagas (Underlight)

Ora, de nada adianta uma “montação” altamente elaborada sem o conhecimento de que o ato drag é também político e questionador de identidades e normas de gênero. A lenda do acrônimo “dressed as a girl” — que permanece, até hoje, justamente uma lenda, pois não há evidências de que Shakespeare o tenha cunhado — deveria ser encarada como uma mera proposta, pois determinar critérios fixos para drag queens seria matar a própria arte drag.

RuPaul é uma figura de extrema importância por ter trilhado um caminho no mainstream pop como drag queen, conseguindo algo inédito. Mas não podemos ignorar que, para despontar na música, assumiu uma estética bastante comercial, com suas perucas loiras, maquiagem e roupas impecáveis. Foi preciso que adotasse uma aparência bem diferente daquela que apresentava quando era um club kid, tornando-se a verdadeira ilusão de uma bela mulher que pudesse ser “consumida” pelo público geral.

Foto: Lucas Chagas (Underlight)

Apesar de manter seu discurso sobre como fazer drag significa questionar os limites do gênero e brincar com as normas, não é possível dizer que o próprio RuPaul tenha se mantido tão subversivo ao longo de sua carreira. Ainda assim, suas escolhas para as campeãs das 8 temporadas de RuPaul’s Drag Race são exemplos de sua fala: questionar as regras é uma essência da arte drag, que o faz sem cair em uma seriedade entediante. Raja, Bob The Drag Queen e todas as outras vencedoras mostram que, se o programa tem uma mensagem principal a passar, é a de que o entretenimento pode, definitivamente, ser também ativismo político.

Clique no botão Recomendar (o❤ ali embaixo)e ajude a levar este texto para mais pessoas. Siga o Nada Errado nas redes sociais:

Facebook | Twitter | Instagram

--

--

Francine Oliveira
Nada Errado

Doutore em Estudos Literários e pesquisadore de Estudos Queer e extrema direita. Tradutore, revisore e escritore.