A divisão entre “shoujo” e “shounen” é mesmo inútil?

Laura
nanicriticas
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5 min readJun 4, 2019

Essa é só uma reflexão que vai do nada a lugar nenhum.

Já há um bom tempo, leio por aí como a segmentação da indústria de mangás por público-alvo já está ultrapassada, que essa noção de “mangá de menino” e “mangá de menina” deveria ser abandonada. Se olharmos da perspectiva de que essa divisão serve (também) para ditar padrões de gênero, eu concordo. Mas, quando comecei a pesquisar sobre mangás, eu passei a ter uma compreensão dessas categorias um pouco diferente.

Primeiramente, vamos estabelecer duas coisas:

  1. Todo mundo hoje sabe que público-alvo e público real não são necessariamente a mesma coisa. A Shueisha não revela os dados do gênero do público de suas revistas shounen de maior circulação (a Shonen Jump e a Young Jump), mas, por essas terem sido as únicas revistas do relatório mais recente sem a relação homem:mulher revelada, isso me faz pensar se não tem a ver com um possível alto público feminino (a Jump SQ, terceira maior em circulação, já tem seus bons 30% de mulheres no público). Se for realmente isso, é só um dado do óbvio: público-alvo nem sempre é o público real.

2. Uma categorização dessa não é necessária para socialmente definirmos coisas como “de homem” e “de mulher”. Quando eu era adolescente, os livros da série Crepúsculo eram considerados “coisa de menina”. Não vinha escrito na capa “PARA MENINAS”, mas todo mundo sabia que era. Ai de qualquer menino que ousasse falar em público que lia isso aí, já seria chamado de “viado”. A segmentação por demografia não cria os estereótipos de gênero, eles já existem antes disso, ela formaliza esse binarismo, mas não é a única forma de sustentá-lo. O que eu quero dizer com isso é: não é porque a gente não usa essa divisão formalmente que estamos indo melhor no assunto num plano mais geral.

Eu não duvido nada que o uso desse tipo de divisão demográfica ainda esteja fortemente associado a esse binarismo homem x mulher, caso contrário, não desconfiaria que a Shueisha esconde essa proporção pras suas duas revistas de mangá mais rentáveis por medo de revelar uma quantidade muito grande de leitoras em revistas que, na teoria, deveriam ser predominantemente lida por meninos. Mas sabemos que, mesmo lá, esse tipo de divisão já perdeu, ao menos em parte, esse sentido, é o que possibilita a existência de revistas como a Comic Gene, uma auto-proclamada “revista shounen para o público feminino”.

A Comic Gene pode nos apontar que essa divisão é completamente inútil porque uma revista shounen para mulheres é uma revista shoujo quando se fala de demografia. Mas, então por que ela existe nesses termos? Na minha opinião, é porque esses termos não servem mais para simplesmente designar o gênero do leitor desejado: eles se tornaram estilos narrativos (lembrando que a narrativa em HQ é também gráfica, isso engloba as ilustrações). Eu não sei se são exatamente gêneros porque me parece algo mais amplo do que isso e algo meio sem critérios.

Eu comecei a assistir nessa temporada Senryu Girl, uma obra de romance fofinha que se for licenciada no Brasil, vai ser chamada de “shoujo”. Mas não é, ela sai em uma revista shounen. E sabe de uma coisa? Quando eu assisto, consigo sentir muito bem que ela dialoga com o espectador como um shounen. Não sei dizer o que é. Acontece o mesmo com Non Non Biyori e Ika Musume. Quando eu assisti Showa Genroku Rakugo Shinjuu, eu não sabia a demografia do mangá, mas assistindo, tive certeza que era “para mulher” (é um josei), sem absolutamente nenhuma base para isso. É como se existisse uma “linguagem” shoujo e uma outra, shounen, que você percebe no “estilo” da obra se ela é um ou outro.

É claro, isso não quer dizer que todas as obras serão facilmente previsíveis assim. Com certeza, tem muita coisa que não é bem shoujo nem bem shounen. Coisas que misturam esses dois “universos”, coisas que estão muito distantes de qualquer clichê deles, sei lá. Mas, quando comecei a pesquisar academicamente, comecei a entender melhor a história da demografia shoujo (que é no foquei) e percebi como faz sentido separá-la de shounen para fazer pesquisa. São coisas diferente, que tiveram um processo histórico diferente (claro, com muita coisa em comum também), herdando tradições narrativas talvez bem distintas.

A indústria shoujo, que foi por muito tempo marginal e até hoje é bem menor que a shounen, tem todo um histórico de questionamento de padrões de gênero, acredita-se inclusive ser por onde o yaoi e o BL foram surgindo (por mais limitados que ambos sejam na figura geral!). Obviamente, nem todas as narrativas terão essa pegada, mas isso faz parte do histórico mesmo do mainstream da categoria. A “lição” que fica é que esses dois termos nasceram e cresceram dentro de toda uma contextualização histórica da indústria de quadrinhos japonesa.

Pensando dessa forma, uma Comic Gene passa a fazer mais sentido: ela é uma revista de obras que deliberadamente se apropriam da narrativa shounen, ou melhor, daquilo que o público feminino de shounen gosta ou parece gostar, e levam isso a ele (possivelmente com uma “linguagem” que também é shoujo?). Claro, aqui ainda temos o problema de que são editoras falando do que é que as mulheres gostam ou deixam de gostar. Uma revista shounen para público shoujo só pode existir dentro de um contexto onde alguém tem alguma autoridade para dizer do que é garotas gostam. Se foi dado um passo para frente, pensando que meninas podem gostar de obras “de meninos” (e aqui também temos alguém ditando do que é que meninos gostam), ainda permanecemos estanques na ideia de que existe ainda um tipo de narrativa “para meninas” e outra, “para meninos”. É como andar em um elevador: a gente sobe mas continua parado.

Talvez o problema seja que esse estilo, linguagem, seja lá o que for, surge pautado nesses papeis de gênero binários: as duas indústrias foram “separadas” com base nessa divisão e, conforme o tempo passou, se desenvolveram de modos diferentes (mas não totalmente separados, as duas categorias conversam). O resultado não é bem culpa da divisão (ou é…?), mas é, de certo modo, uma resposta à ela. Não é um abismo gigante que separa o shounen do shoujo, mas essa divisão é útil em certos sentidos (tanto que é utilizada em pesquisa acadêmica!).

Isso justifica essa categorização, que reforça estereotipia de gênero? A priori, penso que não, mas também é assunto para reflexão que hoje esses termos talvez possam se referir a algo um pouco além de estereótipos. Ou talvez não, a quantidade de mangás no Japão é absurda e talvez essas categorias no fim não signifiquem mesmo nada.

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