Crítica — Adolf

Juan Duarte
nanicriticas
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10 min readOct 26, 2018

O antissemitismo, o anticomunismo e a naturalização do assassinato.

(Imagem retirada da internet)

Ficha técnica:

Título: Adolf / Adolf ni Tsugu (アドルフに告ぐ)

Autor(a): Osamu Tezuka

Editado no Brasil pela (finada) Conrad.

Algumas considerações para quem ainda não leu:

Adolf é uma obra expressiva, emotiva, crítica e extremamente polida. Um memorial intenso sobre uma ferida que está longe de cicatrizar. É uma história que mescla, mas sem deixar muito fantasiosa ou lúdica, a ficção com fatos históricos, estruturando uma narrativa interessante e com ritmo acelerado, sobre as diversas nuances das perspectivas do que foi viver o fascismo na Alemanha e no Japão. A proposta em três dimensões claras, dos três Adolfs, narradas pelo protagonista Sohei Toge, proporcionam uma pluralidade de compreensões que, ao mesmo tempo em que quebra dicotomias do “Bem e do Mal”, e paradigmas sobre justiça e guerra, estabelece uma visão clara em relação da construção social das pessoas e a relação delas com o contexto de guerra. Existe uma certa dose de eufemismo e heroísmo exagerado ao tratar sobre o Japão e o protagonista japonês Toge, exististindo obviamente uma tendência a se “diminuir” a influência do Japão na guerra e a dar mais “credibilidade” ao protagonista japonês. Infelizmente é incômodo, porque há dissimulação nessa inclinação, mas essa falha com certeza não é algo que comprometa a consistência da obra como uma peça de arte com um viés histórico crítico excelente.

Fim da zona protegida de spoilers

Coerência com a proposta:

A motivação inicial, as construções paralelas e a trama principal convergem e se relacionam diretamente com a construção de uma história sobre pessoas e suas relações com o fascismo. Estas construções, fundamentadas principalmente pela morte, caos e conflitos entre perspectivas e esperanças, constituem-se organicamente numa fluidez, a princípio mais caricata e expressiva, mas culminando posteriormente com uma densidade emocional e violenta. É uma obra de vários humores e climáticas, tendo como viés principal e notável a forma como são constituídas as personalidades contextualizadas, firmemente enraizadas em valores e como estes, enquanto submetidos à uma realidade totalmente aterrorizante, lidam, tanto com as suas construções internas e externas, seus preconceitos, contradições e expectativas. Há, de certa forma, uma simplificação de alguns temas e a condução piedosa e condescendente em relação aos japoneses, já que a todo o momento se tenta vender a ideia de que os japoneses eram “apenas” aliados dos nazistas, entretanto, é inegável também que há de se ponderar que Osamu Tezuka era japonês e, Adolf, foi publicado no Japão.

A expressividade facial marcante do traço de Osamu Tezuka.

Verossimilhança:

Existe um certo exagero no tom humorístico, principalmente no início da obra, que aparenta, em primeiro momento, uma forma de tornar a obra mais acessível e menos abrupta aos leitores. Foi uma climática incômoda e estranha de se ler, já que o início é fundamentado com a morte do irmão do protagonista, mas, ao meu ver, mesmo sendo um tropeço, tal elemento funcionou também como um climatizador contextual, uma vez que, no período inicial da obra, Hitler, em suma, era considerado como uma liderança que nutria mais esperanças, do que medos. Ninguém levava tão à sério o que Hitler dizia em relação aos judeus ou sobre a raça ariana, fato que também é levantado quando os pais de Elisa, judeus, acham que não vão ser assassinados por serem abastados. Hitler era considerado um símbolo que poderia restaurar uma Alemanha totalmente desestruturada pelo fim da primeira guerra mundial. Eram tempos de crise profunda e, o que Hitler propunha, era exatamente aquilo que as pessoas mais ansiavam: Soluções imediatas, simples e fáceis de compreender, que nutriam esperanças sobre a reestruturação alemã como uma potência mundial, quase da noite para o dia.

“Esta reunião não é mais do que um espetáculo de circo muito bem orquestrado” — Sohei Toge (Protagonista)

Tudo isso erguido sob máximas religiosas e a criação dos inimigos imaginários: Os judeus e os comunistas. A forma como é retratado esse momento histórico terrível para o mundo, demonstra toda uma esquizofrenia coletiva em prol de um símbolo que, por meio do carisma da sua posição “anti sistema”, conseguiu vender a ideia de que ele seria a única solução ao país. As pessoas se sentiram empoderadas e cheias de ilusões de prosperidade.

Coesão:

A estrutura narrativa de Adolf tem um ritmo ótimo, cadenciado e com um poder de síntese impecável. Tezuka se destaca firmemente na sua capacidade de dosar as imagens e falas, compondo um equilíbrio excelente e imersivo na composição geral da obra. As expressões faciais e corporais dos desenhos são fator crucial para a forma como lemos a história, o fator “verbalização dos sentimentos” é substituído com excelência nas representações gráficas, e a constituição da história em blocos separados e cronológicos se faz de uma maneira continua e agregante, ocorrendo uma construção das personalidades desde os seus princípios morais infantis, até a fase adulta, em paralelo com o contexto e o quanto este influenciou nas personalidades.

As transições, citações e contextualizações históricas, além de serem informativas, ajudam a desenvolver cada vez mais a densidade e “peso” da obra, tanto no aspecto gráfico/textual, quanto crítico. É visível esse avanço acentuado à “graficalidade” da violência e morte, já que no início, tais aspectos era deixados mais brandos, mas, assim que a obra avança, é dado mais impacto e relevância às tragédias.

O início, desenvolvimento e ápice de cada personagem na obra se faz de maneira excelente, cada momento e interação se faz relevante na trama, e estes se entrelaçam e convergem naturalmente no decorrer da história. O elemento “coincidência” é utilizado, mas não exaustivamente e sem contexto, e é justamente esse cuidado com as “amarras” que torna a obra realmente consistente.

Relevância:

O anticomunismo:

Desde o início da obra, já que esta é a própria “fagulha” inicial que move a trama, a crítica ao anticomunismo é presente. O irmão de Sohei Toge é assassinado porque fazia oposição a Hitler, já que compactuava com o ideal comunista. Entretanto essa dicotomia entre comunismo e nazismo é quebrado abruptamente quando, Toge, uma vez não sendo comunista, percebe que o nazismo não fere apenas os ideais comunistas, mas sim, a liberdade e dignidade de todas as pessoas.

A incredulidade de Toge com o discurso fanático de Hitler. (Tradução livre: “Eu sou a última esperança de todos os decepcionados. Eu falo sobre redenção.”)

A arbitrariedade da taxação de “comunista”, foi uma solução para o extermínio da oposição, já que, uma vez implantada a ideia na população de que o comunismo é algo ruim, taxar alguém de comunista foi a fórmula perfeita para que não haja comoção popular em relação as mortes. Isso é afirmado e reafirmado diversas vezes, como quando Toge vê o discurso de Hitler e diz que aquilo era um grande circo, ou quando o agente nazista taxa a professora de comunista porque ela disse a Kamil que deveria lutar pelos seus direitos, etc. Este é um dos principais, se não o principal, fator do nazismo, a constituição da crença de que os “comunistas” vão destruir a sociedade, e a partir dessa constituição do “inimigo da sociedade”, exterminar qualquer tipo de oposição dissimuladamente.

A infância e os primeiros traços de fascismo:

As interações na infância entre Adolf Kaufmann e Adolf Kamil demonstram o quanto os ideais fascistas se entranham em cada relação cotidiana, bem como o racismo arraigado do povo japonês. Aquele que era o único amigo de Kamil, era Kaufmann, já que ambos, por não serem totalmente japoneses, sofriam de uma discriminação racial severa por parte das crianças nativas. Esse entrelaçamento em volta da discriminação e a fundamentação da amizade no sofrimento e no apoio, estabelece-se como aspecto primordial da construção paralela. Instintivamente eles eram amigos e companheiros na “luta diária” contra a discriminação, mas, assim que o pai de Kaufmann diz que Kamil é impuro e um inimigo da Alemanha, Kaufmann começa a repensar e tentar se sobressair hierarquicamente a Kamil. A interação instintiva é sobreposta pela moral fascista, ou seja, ocorre uma doutrinação ideológica das crianças para que elas não sejam autônomas em suas interações e em vez disso, tenham seus pensamentos e ações ditados pelas máximas da relação dominação/submissão. O que foi fundamentado pela resistência e colaboração, foi facilmente destituído pela ideologia dominadora do fascismo, instigada pela figura paterna, hierarquicamente superior.

O estupro:

Ao longo da obra ocorrem dois estupros e, a partir desses acontecimentos, é possível enxergar a crítica que ocorre em relação à constituição da sociedade patriarcal. O primeiro, foi quando Toge estuprou Rita por esta ter traído o seu irmão e esta ser participante do partido Nazista. Não é dada muita relevância ou impacto, tanto no texto ou no desenho, tentando passar um ar de “a justiça foi feita”. Rita se mata e, após isso, Toge simplesmente esquece do ocorrido e não sente remorso algum pelo que aconteceu. Ele é perseguido por Lampe, este buscando vingança pela morte da filha, mas o mais incrível é que, em nenhum momento posterior, há qualquer diálogo interno do protagonista em relação ao estupro.

O estupro de Elisa.

Em contrapartida, o segundo estupro da obra, ocorre quando Kaufmann engana Elisa e a leva para casa. A “graficalidade” é intensa e impactante, mostrando uma metáfora visual de uma cobra comendo Elisa. É visível o cunho “violento” que é dado ao ato.

O paralelo que se cria aí, é no mínimo interessante, já que, ambos os estupros receberam uma representação totalmente diferente no aspecto visual, sendo que, no estupro de Toge, este previamente havia espancado Rita. Ou seja, essa tendenciosidade à “amansar” os atos do protagonista japoneses, reflete ainda uma forte inclinação nacionalista e patriarcal, uma vez que, a obra deixa subentendido que a dominação masculina dos alemães é perversa e maliciosa, porque eles são nazistas, mas a dos japoneses não, porque eles “só apoiam” os nazistas.

(Os diálogos não são tão importantes para serem traduzidos…)

Essa dominação patriarcal se mostra irônica também, quando demonstrada a insegurança do pai de Kaufmann em relação ao assassinato que cometeu. Ele simplesmente desaba e fica impotente sexualmente. Envergonha-se e toda a pompa “patriarcal”, desintegra-se. É visível a forma como o elemento dominativo estabelece relações objetivas em relação ao sexo e o gênero, já que em ambos os casos, a dominação e submissão são traços fundamentais da interação. Posteriormente, Kaufmann também assume essa pompa “patriarcal”, quando exigiu da sua mãe explicações e a própria permissão para se casar com outro homem, entretanto, esta também se esvai quando Toge dá uma surra nele. A dominação patriarcal ocorre de forma hierárquica e pela força. Só há respeito enquanto exista um dominado e um dominador, qualquer coisa além disso é desconsiderada ou menos valorizada.

O ceticismo x esquizofrenia:

A construção da obra em volta do ceticismo populacional em relação às atrocidades, atrelando-as a princípio aos próprios comunistas (comunistas matando comunistas, aham), bem como ao sistema democrático, constituem um grande marco na relação da população e suas escolhas governamentais. A população não tinha mais esperanças na democracia, o ceticismo em relação à política teve seu auge e, à partir disso, Hitler conseguiu se promover como símbolo da “reinvenção da política”, como algo novo e inusitado.

Posteriormente, esse ceticismo constante, avança para um estado de esquizofrenia total da população. Não apenas os apoiadores do nazismo, mas toda e qualquer pessoa não sabia mais no que acreditar, ou quem. Kamil, por exemplo, ao ser influenciado por uma ligação, quase chega no ponto de matar Elisa, por crer que ela era uma agente da Gestapo infiltrada. E esse elemento esquizofrênico de desconfiança patológica, mostra suas nuances no próprio Hitler, uma vez que este, à todo o momento que podia, reafirmava a sua insatisfação e desconfiança a todos os que o rodeavam, menos Eva.

E esse caos populacional, ao mesmo tempo que colaborava com as ações de Hitler, já que enquanto a população continuasse desconfiando até da sombra, qualquer tipo de movimento de oposição não teria colaboração e coesão suficiente para efetuar uma pressão de fato impactante ao regime nazista, também ia se desgastando. A população começava a desacreditar cada vez mais em Hitler, e os próprio participantes do partido nazista a perceber as inconsistências e hipocrisias do regime. Hitler era apenas um símbolo e uma “carta branca” para que aqueles que se sentiam submissos pudessem se estabelecer como dominadores totalitários.

A naturalização do assassinato:

A morte, o assassinato e o extermínio, compõem do início ao fim da obra, a forma como cada personagem, em diferentes graus, interage com o seu contexto. E estas mortes se entrelaçam e constituem entre si, um dos elementos que mais me fez pensar: A indução à sociopatia/psicopatia.

Os elementos morais do fascismo, muito mais do que influenciarem sutilmente nas interações, estruturaram e ainda estruturam, a falta de consciência e empatia em relação a morte das pessoas. Como o superior de Kaufmann diz, quando este criança tem que matar o pai de Kamil, “Matar é uma questão de costume”, ou seja, a moralidade fascista consegue, por meio da naturalização do ato de matar, construir subjetivamente na criança um impulso assassino brutal e sem remorso, ou seja, induz desde a infância o desenvolvimento da psicopatia. E esse desenvolvimento não se deve apenas no ato em si, mas na compreensão de que existem pessoas que são inferiores às outras e que podem e devem ser exterminadas. Torna-se o humano classificável para que seja possível sua destruição, já que, caso contrário, ninguém conseguiria arcar com a memória de ter aniquilado alguém. E no caso, Kaufmann, quase sucumbe à demência por conta disso.

Para que o fascismo consiga se estabelecer, é necessária a mistificação do ser humano e sua simplificação em valores, à partir disso, os “justos” não estão mais matando seres humanos, apenas seres.

Conclusão:

Uma obra curta, coesa, bem estruturada e que, mesmo com sua parcialidade em relação ao Japão, consegue se apresentar como uma forte crítica à diversos elementos específicos do nazismo que permanecem até hoje enraizados, não apenas na Alemanha, Japão ou Itália, mas no subconsciente do planeta inteiro. É um perigo iminente e que se fortalece de forma abrupta e, caso seja esquecido ou nem mesmo estudado, pode facilmente se reinventar e se restabelecer em qualquer sociedade.

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