Crítica — Innocent

Juan Duarte
nanicriticas
Published in
7 min readMay 21, 2018

A emotividade de uma história cheia de sangue.

Ficha técnica:

Título: Innocent (イノサン)

Autor(a): Shinichi Sakamoto

Editado no Brasil pela Panini.

Algumas considerações para quem ainda não leu:

Os detalhes dessa obra que trata a vida da família Sanson algumas décadas antes da revolução francesa, são tão precisos e sutis que as falhas que eu encontro nela não fazem esta se tornar nada menos do que excelente. É a nuance, é a expressão, é a história, os temas, tudo nesta obra é tratado com um perfeccionismo que encanta e provoca.

Fim da zona protegida de spoilers.

Coerência com a proposta:

Desde o início a trama se estrutura de forma concisa em relação ao conflito de Charles Sanson (o filho) em relação a sua posição como executor e justamente a partir disso, já fica claro qual é a proposta do título também (que mais para a segunda metade, assume outras significâncias). A medida que a trama avança e o protagonismo é dividido com Marie, tais conflitos ganham cada vez mais nuances, tanto na questão da sexualidade, abuso, estupro, interesses, bem como, mais adiante, na degeneração da personalidade humana. E não há qualquer tipo de titubeio ao tratar da construção de tais personalidades, os flashbacks são mínimos, deixando a construção da história ao “presente” (algo que eu julgo fundamental).

Tadinho…

Verossimilhança:

As personalidades em relação ao contexto histórico e social, são totalmente reais e críveis, bem como os acontecimentos e intrigas, entretanto, algo que eu julgo mais importante de se destacar como incrível em Innocent: São nesses momentos lógicos e verossímeis onde são expostas e criticadas tais realidades sem um anacronismo tosco e simplista. Não há medo, nesta obra, em tratar o machismo como algo retrógrado e inumano, pelo contrário, ao mostrar tal realidade extremamente machista, o autor demonstra o empoderamento feminino com Marie, trazendo uma enorme crítica aos dias de hoje, onde mulheres ainda são tratadas e governadas por diretrizes totalmente arcaicas. E não só com Marie, mas com Charles também, que enquanto jovem, inocente e depressivo, foi subjugado e torturado até que desenvolvesse a aspereza de um “homem de verdade”. E ainda mais adiante, quando Marie é estuprada para se tornar a Prevote de l’Hotel, mostrando o quanto esse fato degradou a sua personalidade, deixando-a com cicatrizes mais fortes ainda que a de sua queimadura. Ainda que Marie pareça um pouco estereotipada numa “masculinização da mulher”, faz sentido uma vez que analisarmos o contexto e considerarmos as consequências de uma mulher “feminina” tentar se sobressair. Um bom exemplo é Alain, que morreu assim que foi apresentado na obra (falaremos mais dele depois).

“O nome disso é metáfora”.

Coesão:

Aí vem um ponto um pouco dúbio por causa de seu final e consequentemente por causa de existir uma continuação (Innocent Rogue). Por um lado, a construção dos personagens é extremamente detalhista e bem pontuada, uma vez que personagens coadjuvantes entram e saem da trama sem muitos problemas e apenas quando necessários. Não existe um “mundarel” de gente na trama, por isso mesmo é mais fácil assimilar e acompanhar o desenvolvimento dos personagens que realmente importam. E assim como na questão do roteiro, a narrativa visual é simplesmente incrível. A composição dos quadros, o layout, os silêncios e a própria arte que acrescenta em inúmeros momentos, metáforas e acréscimos para aquilo que é dito com palavras, é simplesmente fantástico.

De fato, Innocent é uma obra muito compassada, que conta os fatos ao seu próprio tempo, construindo aos poucos uma climática consistente e imersiva, tanto pelo realismo, detalhismo e delicadeza absurda do desenho, quanto pela utilização de tal. A qualidade das imagens não reside apenas na aplicação notória da habilidade de desenhar, mas sim na construção sólida de uma estética que proporciona uma experiência narrativa única.

E depois da babação de ovo, vem a parte que eu realmente não consegui engolir muito bem: O mangá não tem um final, já que existe uma continuação chamada “Innocent Rogue”. Eu já sabia que existia esse outro mangá, porém ainda tinha esperanças de que a unidade de “Innocent” prevaleceria sobre qualquer tipo de continuação. Infelizmente não prevalece. O fim é um cliffhanger-clichezão-chamada-para-ler-a-continuação, o que me desagrada profundamente. Sim, é totalmente justificável e devido a alta qualidade de todo o resto, não compromete a obra, entretanto, esse elemento é algo que me deixou com uma impressão levemente negativa que poderia ter sido evitada facilmente com um final melhor executado (facilmente, digo, levando em conta a habilidade narrativa de Shinichi).

Nem tem o que falar, é simplesmente lindo.

Relevância:

A inocência:

A construção do título da obra na história atravessa por vários momentos: Quando Charles é pequeno e ele é, de fato, inocente, trazendo o aspecto infantil da inocência; quando Charles é adolescente e sonha com um mundo sem execuções, agora trazendo a inocência da aspiração de um mundo melhor; e quando Charles já é adulto e a única inocência que lhe resta e preza é a jurídica, trazendo o aspecto “adulto” da palavra. Esses momentos são contrapostos a todo o momento por Marie, fato este a ser tratado no próximo tópido.

Os irmãos e a dicotomia:

Enquanto Charles apresentava uma personalidade mais sensível e incompreendida, Marie, por outro lado, apresentava uma personalidade obstinada e áspera. Essa dicotomia avança em vários momentos, trazendo o positivismo e o pessimismo como os pêndulos de uma balança equiparada. Entretanto, assim que a obra avança e novos elementos são acrescentados, é visível a deturpação na personalidade de ambos e uma difusão maior dessa dicotomia. Enquanto Charles, torna-se um homem complacente e regido pelas diretrizes que sonhava destituir, Marie se ergue como o arauto da mudança, obstinada e acreditando sobriamente numa mudança na França. Tal mudança que eu julgo incrível, já que, justamente, destitui essa dicotomia “humana” fortemente presente em outras obras e mostra que independente das aspirações e identidades pré estabelecidas, pessoas mudam e se tornam totalmente diferentes do que pensavam ser.

A deturpação da personalidade:

É aí que entra a deturpação que citei anteriormente na crítica. Se por um lado, a pessoa que era “ruim” (Marie) se tornou a pessoa mais obstinada pela mudança e renovação, a pessoa que era “boa” (Charles) se tornou uma pessoa totalmente influenciável e moldável pelo contexto determinista da sociedade francesa, atingindo até o ápice do furor ao executar as pessoas.

O empoderamento:

E se por um lado Charles, tornou-se um machista impassível e um personagem com pensamentos quase positivos em relação à aristocracia, Marie alcançou o ápice do empoderamento e da concepção da sua vida em sociedade. A própria “armação” da Marie em relação ao casamento, mesmo que clichê, traz a importância que Shinichi dá às questões como misoginia e machismo. Como Maria Antonieta disse na obra, Marie faz o que quer.

A destituição da discriminação:

E mesmo que um pouco mais timidamente e extremamente rápida, a aparição de Alain foi algo simplesmente sublime. Um personagem negro num mangá que trás consigo a mensagem de esperança (sim, sim, é clichê, mas por favor, abramos uma exceção) na forma de um projeto de uma escola que acolhe crianças em situação de rua, bem como batalha contra aristocrata e acaba… morto. E sim, eu concordo que ele tenha morrido, se não a obra cairia num enorme clichê anacrônico, já que né, bem como o machismo, o racismo era mais do que presente na França, era incentivado.

O tédio da realeza:

E só como uma leve anotação, a forma como é mostrado o “tédio real” e o furor pela carnificina (não só da aristocracia, mas principalmente) é uma crítica linda à sordidez das elites. Aplica-se aos dias de hoje, obviamente.

Menção Honrosa:

Essa referência a obra de Klimt, “O Beijo”, com Marie e Maria Antonieta é simplesmente LINDA.

Conclusão:

Innocent é uma obra completa, que trás um roteiro interessante, temas provocativos e diferentes, personagens tridimensionais e orgânicos, e uma narrativa simplesmente sublime.

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