Crítica — Kami no Kodomo

Juan Duarte
nanicriticas
Published in
5 min readJul 5, 2018

A indiferença sobre a vida.

Ficha técnica:

Título: Kami no Kodomo (神の子供)

Autor(a): Kyoudai Nishioka

Não é editado no Brasil.

Algumas considerações para quem ainda não leu:

É uma obra que trata graficamente e incisivamente de dilacerações, mortes, escatologia (sim, cocô), relações sexuais entre menores de idade (essa nem tão graficamente, por motivos óbvios) e não, não é uma obra de horror. Creio que horror é a última coisa que essa obra tenta passar, já que toda a construção da trama gira em torno de um diálogo franco sobre as pessoas e suas interações sociais questionáveis. Tentando mostrar num paralelo bem demarcado, como as pessoas são hipócritas consigo e com os outros sem cair em diálogos prepotentes e culpabilizantes. É uma obra forte, em vários sentidos.

Fim da zona protegida de spoiler

Coerência com a proposta:

Com um formato narrativo de “flashback” e com poucos diálogos, esta obra é quase uma retrospectiva da história de vida de um garoto maltratado que se tornou um psicopata (possui certas semelhanças com Oyasumi Punpun). E esse paralelo entre uma criança psicopata super dotada e suas interações, a todo o momento faz florescer diversos questionamentos sobre como as pessoas interagem entre si. São dois extremos onde, se por um lado, o protagonista mostra todo o seu ódio e desprezo pelas pessoas e suas interações cínicas e degeneradas, por outro, ele próprio efetua ações que são consideradas pela sociedade como cínicas e degeneradas. Destituindo certos paradigmas sociais e criticando certas interações sob um ponto de vista extremo.

Cena na qual as crianças assistiam um vídeo onde uma garota era obrigada a comer as próprias fezes.

Verossimilhança:

Como o foco da obra é analisar situações comuns do dia a dia sob os olhos de um jovem psicopata, algumas coisas podem acabar ficando, principalmente as críticas mais certeiras, com um ar de “prepotência”. Sinceramente, durante a leitura isso não me incomodou, mas após, refletindo, existe um limiar bem tênue entre uma obra que ironiza ambos os lados e não toma posição de nenhuma das perspectivas, ou que de fato toma lado pelo jovem psicopata e acaba se tornando uma análise clichê. Entre essas duas opções, vejo um trabalho melhor executado e claro na primeira, já que, simplificando, ele morre no final sem nenhum tipo de glória ou “lição de moral”, pelo contrário, é devorado por porcos, algo que põe como definitiva a ironização completa e por sua vez bilateral, dos dois “lados da moeda”.

O desprezo, a repulsa, a indiferença e principalmente a aversão em relação as pessoas, mas principalmente as mulheres, é algo que retrata construções estabelecidas na própria obra, onde ele fora humilhado e subjugado em suas ações por práticas tradicionais familiares extremamente cruéis. E mais do que isso, a perspectiva de realidade que o protagonista apresenta mostra uma forte distorção onde, quanto menor, mais distorcida e bizarra era sua visão de mundo, revelando fortes traumas em sua infância. Sendo que, sua aversão a mulheres, pode ser justificada pelo momento em que ele “muda de sexo” na infância, onde ele enxerga as cadeiras do cabeleireiro como plataformas de execução. Ele era uma garota, mas assim que cresceu, seus pais “mataram” esse aspecto dele a força. Mostrando uma relação autoritária comum, mas que refletiu de forma extrema e prejudicial no psicológico do garoto.

Coesão:

A construção da trama é linear e simples, com grande expressão estética e aprofundamento nas interações entre o protagonista e o ambiente. A condução da história não é incômoda, mas tampouco se destaca. A narrativa em si é medíocre e a interação dos quadros com os desenhos é muitas vezes repetitiva, mostrando verbalmente o que já está acontecendo na cena.

Relevância:

A construção do extremo totalmente contrário às interações sociais hegemônicas consideradas “comuns”, esta obra é uma alfinetada profunda à concepção de que crianças são inocentes e burras. Trazendo à tona, de forma extremamente despudorada, o quanto os adultos menosprezam e subestimam as crianças/adolescentes/jovens. E a partir disso, nessa construção, é mostrado como é irônico que, os psicopatas são os grandes malfeitores quando na verdade diversas “pessoas de bem”, são tão indiferentes à morte como um psicopata, a diferença é que um deles possui o ímpeto de, de fato, matar.

Além da indiferença com a morte, principal crítica da obra, o completo desprezo que o protagonista manifesta por todas as interações sociais, revela as incoerências da sociedade. Os teatros cínicos das interações entre si, o pudor pela sexualidade, a desvalorização da vida de uma pessoa em situação de rua, o próprio ato de trabalhar, etc, estabelece um diálogo único que questiona os paradigmas e moralismos sociais.

Conclusão:

É uma obra que não se destaca em sua construção, mas que a temática, a trama e a expressividade estética consegue sobrepujar essa mediocridade narrativa. Como obra artística, efetua seu papel de questionar, sem pudor, o status quo, sem estabelecer um novo, por assim dizer.

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