Crítica — Undercurrent

Juan Duarte
nanicriticas
Published in
5 min readNov 10, 2018

O que significa conhecer alguém?

Ficha técnica:

Título: Undercurrent (アンダーカレント)

Autor(a): Tetsuya Toyoda

Não é editado no Brasil.

Algumas considerações para quem ainda não leu:

É um mangá que só pelo fato de não forçar uma personalidade estereotipada em sua protagonista mulher, num mercado de obras onde isso é quase obrigatório para ter “projeção ampla de vendas”, merece, no mínimo, uma chance de ser lido. Tirando essa parte de não fazer mais do que sua obrigação, Undercurrent com toda a certeza é uma obra que transmite emoções e temáticas com um dinamismo e domínio, tanto das interações quanto das expressões corporais humanas, que nos faz ficar imerso nos dilemas e, mais especificamente, no dilema de onde nasce a trama toda: O desaparecimento repentino e sem pistas do esposo da protagonista.

Fim da zona protegida de spoilers

Coerência com a proposta:

A obra cumpriu com o que prometeu?

É um mangá humano, de uma experiência humana, de uma perda profunda e confusa, de sentimentos que se cruzam e não conseguem ser definidos. Tudo na obra transmite essa confusão, esse dilema, essa perda súbita da objetividade da vida, a criação de um “marasmo” existencial na protagonista e um sentimento contínuo de não saber exatamente o que fazer a seguir. É uma obra que trata sobre sentimentos e que os transmite com uma simplicidade e expressividade intensa. E por simplicidade, não confundam com simplificação, já que o ponto é que com apenas uma expressão facial a obra mostra o que o personagem está sentindo, pensando, tentando compreender.

Esta obra me fez pensar e, além disso, me fez sentir tudo aquilo que os personagens sentiam, fazendo-me de fato conseguir compreender e me colocar no lugar deles. O que é retratado na obra é a vida, é a interação mais palpável e intrínseca da existência, é a pulga atrás da orelha incessante que nos faz ficar prostrados em relação a coisas que passaram, estão acontecendo e vão acontecer. É aquela incrível capacidade de nos culparmos a todo o momento por coisas das quais nem nós mesmos conseguimos compreender. É a capacidade de cada um de nós de sucumbir, renovar, entristecer, questionar, melhorar ou piorar, e isso tudo não como dicotomias breves, mas sim como a completude da nossa existência.

Verossimilhança:

Dentro do contexto da obra, o aconteceu pode ser considerado “real”?

Eu ri, entristeci, fiquei pasmo e muitas vezes questionei a mim mesmo por estar sentindo tudo isso em relação ao que era apresentado. A obra em si, transmite com tanta proximidade com o leitor tudo aquilo que quer transmitir, que certamente não posso negar que ela além de ser algo real e palpável, é algo que me atingiu de forma direta. São os silêncios, as expressões, o preenchimento de cada quadro com sentimento e com coisas das quais nos faz lembrar de pessoas e de coisas das quais vivemos, o que torna a obra muito humana, orgânica, fiel à tudo aquilo que presenciamos na nossa vida de peito aberto. É uma representação do próprio pensamento, do nosso íntimo, das coisas que não podemos falar, mas que pensamos a todo o momento. É uma obra que além de construir em sua história uma incrível trajetória de uma protagonista que demonstra toda a sua pluralidade humana, enquanto forte e fraca, independente e carente, obstinada e confusa, etc, demonstra uma imensa sensibilidade de retratar que todos nós no fim das contas somos totalmente dependentes do desconhecido.

Coesão:

A conjunção dos elementos textuais e gráficos é consistente?

Além da junção visual e escrita funcionar de forma excelente e bem estruturada,os momentos de protagonismo entre um e outro, seja nos diálogos mais autênticos e bem humorados, quanto nos silêncios e “catarses visuais”, compõem uma imersão direcionada para diversos ângulos interpretativos. É uma obra completa, que provoca todos os sentidos e impõe sua expressividade em todos os elementos. É visível o domínio interativo e, me permitam o palavrão, semiótico do autor ao transmitir com uma variedade enorme de nuances tudo aquilo que está sendo vivido na obra.

Os sentimentos são demarcados com muita intensidade nos sonhos, principalmente visuais, da protagonista. A prostração, a incapacidade, a simples desistência da vida. Não há resistência, é apenas um anúncio bem-vindo de uma morte. Aqui o desenho não é apenas uma forma de expor uma situação, mas de desenvolver e acrescentar mais relevância, bem como indeterminação (quase um paradoxo) aos sentimentos da obra.

Relevância:

Ler isso fez alguma diferença na minha vida?

Em vários âmbitos, tanto contextual, quanto estrutural, quanto de consumo mesmo, essa obra refrescou bastante o meu nojo ao sexismo e patriarcalismo japonês. Foi bom ver que um homem japonês, não enxerga as mulheres com a superficialidade padrão das obras que infelizmente se popularizam (ou melhor, se proliferam) aqui no Brasil. É uma obra intensa, interessante, provocante, que não pretende ser a conclusão de um pensamento complexo, mas ser justamente a abertura de novos precedentes para aquilo que nós compreendemos como sendo o objetivo, a real faceta, por volta daquilo que atrelamos constantemente às pessoas do nosso entorno.

Conclusão:

Por favor leiam, é uma obra curtíssima (11 capítulos) que te transborda de estímulos. Nada melhor do que, depois de assistir e ler mangás claramente afastados completamente do cotidiano e realidade, consumir algo que se relacione diretamente com nossas emoções.

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