Eles sempre voltam

Cintia Reinaux
Não sei desenhar
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4 min readJan 7, 2019

Este texto foi publicado originalmente em 5 de fevereiro de 2009. Fazia 6 meses que eu estava morando no Canadá e faltavam mais 6 para que eu retornasse ao Brasil.

Se há algo que me fascina aqui no Canadá é a mudança de estações do ano. Parece bobo, eu sei, mas para quem vem de um lugar onde só há duas estações (verão e chuva), em que o sol nasce e se recolhe praticamente no mesmo horário durante todo o ano, poder acompanhar pequenas variações ainda que sutis faz com que os dias não sejam tão iguais assim, como se cada dia reservasse algo de especial.

E o Outono pareceu mesmo conter certa magia, algo de diferente no ar. Os dias gradativamente mais curtos e aquele friozinho que ainda não chegava a incomodar, mas que era suficiente para fazer com que as pessoas desfilassem seus charmosos sobretudos e botas de couro ao longo de calçadas cobertas de folhas alaranjadas.

Ah, as folhas! Dessa estação irei sempre me lembrar do dia em que voltava para casa e uma brisa fez com que diversas folhas em diferentes tonalidades brincassem no ar, a fazer rodopios em minha volta. Pareceu até cena de filme, e quase deu mesmo para ouvir aquele som delicado de pequenos sinos, tocados como que para tornar o momento ainda mais mágico. Como quem caça vaga-lumes, capturei algumas dessas folhas e as levei para casa, onde, em meu quarto, elas trouxeram o brilho do entardecer do outono a muitas noites frias de inverno.

No entanto, nada para mim foi mais marcante do que ver os gansos canadenses rumando para o sul. Todos me contaram sobre o encanto das folhas do Outono, mas ninguém me disse como era belo ver os pássaros migrando. Certa vez, ao descer do ônibus depois de mais um dia de trabalho, ouvi um barulho ao longe, tão impressionante e diferente que até mesmo a mais desinteressada das criaturas não resistiria à curiosidade e ergueria a cabeça aos céus para admirar o espetáculo. Por vários dias que se seguiram, essas majestosas aves migratórias me acompanharam em meu caminho para casa.

Trecho de "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry.

“Creio que aproveitou, para evadir-se, pássaros selvagens que emigravam”

Liberdade. É essa sensação por que você é tomado ao ver esses pássaros selvagens no céu. A vontade que dá é de fechar os olhos, sentir a brisa no rosto, abrir os braços… E voar também.

Posso dizer que, nesse ano que passou, eu também alcei meu “vôo da liberdade” em terras distantes, bem longe de casa. E por liberdade eu me refiro à definição de Rubem Alves (retirada do livro "O Patinho que não Aprendeu a Voar):

“Liberdade é poder fazer aquilo que a gente quer muito, muito mesmo. Um desejo profundo, lá no fundo, coisa doída parecida com saudade.”

Mas a história não acaba aí. A parte que vem a seguir é ainda mais bela e o motivo desse post.

Outro dia, conversando com o velho Richard − canadense legítimo que tem a sabedoria de quem já viveu com esquimós − eu comentava sobre a impressão que a migração dos gansos havia me causado, quando, concordando com a cabeça, ele completou:

“Mas, bonito mesmo, é quando eles voltam, trazendo consigo dias mais quentes, anunciando que o verão está chegando e que os dias frios e sem vida estão contados.”

Foi então que me dei conta de que a gente está tão acostumado a ouvir sobre pássaros migrando para o sul que terminamos por esquecer este detalhe:

“Ah, é mesmo! Eles voltam, né?”

Pergunta a qual Richard, em seu jeito simples, respondeu de forma ainda mais reveladora:

“Mas é claro que eles voltam! O que você pensou? Que eles iam ficar lá para sempre? Eles sempre voltam.

Eles sempre voltam

Post Scriptum

Dia desses sonhei que estava com minha mãe, ambas a observar admiradas a beleza dos pássaros a migrar, quando eu confidenciei, toda “sabida”, aos seus olhos marejados de lágrimas: “Ah, mãe! Não fica assim. Eles sempre voltam…”

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Cintia Reinaux
Não sei desenhar

Pernambucana desenrolada, canhota, blogueira raiz, youtuber nutella e podcaster café-com-leite. Criadora do @vidadetrainee