Por dentro de uma mente encruzilhada

Texto originalmente publicado na revista-zine “Pra onde agora?” para o Festival Novas Frequências 2021

Amanda Figueiredo
Nariz da Esfinge
7 min readSep 12, 2022

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Antes de tudo, peço licença. Laroyê Èṣù e salve ao povo da rua!

Em 2021, o Mc e compositor Marabu, o artista visual Beré Magalhães e o produtor musical Levi Keniata realizaram o show-performance “Sequelas noturnas de uma mente encruzilhada” para a 11ª edição do Festival Novas Frequências. A convite da Nebulosa Selo e de Chico Dub, produzi este texto que narra minha experiência e imersão na performance que teve como objetivo dar visualidade às faixas CORRE e FLUXO, do disco de Marabu, FUNDAMENTO (2021).

Muito mais do que um texto jornalístico, toda a experiência que permeia a escrita que você está prestes a acessar foi possível com o axé e a benção do mensageiro que é senhor da palavra, da comunicação e de todo o movimento que permeia nossa arte-vida. Que as palavras de ação estejam presentes em nossas bocas e que Èṣù seja sempre nosso amigo.

Durante cerca de um ano e meio me vi privada de habitar as ruas, você deve saber que uma crise sanitária silenciosa parou o mundo em 2020. Nesse período, senti falta das miudezas barulhentas que foram substituídas por um silêncio que nunca fez parte das ruas do meu bairro, no Capão Redondo em São Paulo. O silêncio tomou o lugar das crianças brincando pela tarde, da gritaria por pipa nas lajes e afastou até o grave que pocava nos altos falantes dos carros que passavam na rua de baixo, durante a noite, a rua silenciosa é tão assustadora, que calou até os cachorros enraivecidos com o randandan das motos.

Duas doses e uma quarentena depois, retorno para os bares e bailes, para os sambas de esquina, para a atmosfera noturna e o conforto caótico desse organismo vivo, solo-coletivo, de chão escuro e caminhos de se caminhar: a rua. Parece pouco usual sentir que esse lugar feito de concreto também é vivo, apelo para o imaginário infantil e me explico: criança ligeira, que brinca descalça, aprende cedo a observar as ruas para não se machucar, bota o chinelo na mão pra proteger a palma e confia nos olhos e ouvidos para não pisar em caco de vidro ou esfolar o dedão na guia, criança rueira sabe mapear o melhor asfalto pro carrinho de rolemã passar, o morro mais alto pra pipa e todas as experiências que moldam o pertencimento e o ouvido aguçado para a rua; este espaço-corpo-lugar que tem suas entidades, seus habitantes e seus guardiões, por isso exige licença e mandingas para as esquinas que haveremos de passear.

“DE TANTO CORRER ME TORNEI O CAMINHO”

Arte: Beré Magalhães | Foto: Breno Cobra

É também na noite que a rua manifesta sua organicidade. Ao colocar os pés na rua, no meio dessa atmosfera densa e escura, nos sentimos livres para expurgar todas as neuroses que comeram a mente a semana inteira, é na noite que a gente roleta a cidade de bonde pra terapia de baile, que a pupila dilata e a vida pulsa de um jeito diferente, num ritmo que é ameno e frenético ao mesmo tempo. Me pergunto se a noite dá vida pra rua ou se a rua dá vida pra noite, o fato é que essas duas entidades, quando aliadas, fazem pulsar a vida e inspiram liberdade.

Liberdade essa que não é romântica ou cristã, é importante se despir das lentes coloniais para experienciar a liberdade das ruas deste lado do atlântico. Nessa noite que também é lugar, não há espaço pro bem-bem e mal-mal ou para a ausência de movimento constante, por isso é necessário malícia, sabedoria de mandingueira e escuta ativa ao colocar os pés no asfalto em noite de baile, de bar ou de qualquer vivência nesse espaço-corpo-lugar. As ruas são de Esú, movimento, por isso, toda noite é de fluxo.

“EU POSSO OUVIR SEU MEDO

MAS NÃO SEI QUAL O MOTIVO

QUER ENTRAR PRA VER O CAOS

MAS NÃO QUER VIVER CONFLITO”

Você já saiu à noite e sentiu que a rua te expulsava?

Imagina a cena, a rua pocando de gente, música alta, copos cheios, noite quente, gente em festa dançando até o suor escorrer pelas costas, gargalhadas altas… No clímax da noite, você visualiza um mano que parece muito louco de algo que você não consegue identificar, com o olhar bem fixo, cheirando a cigarro e bebida, talvez até salivando, esse mano chega perto de você e diz com uma voz que mais parece um grunhido: Tá procurando o quê? Dá um trago aí?

O que você faz? Você responde ou ignora? Tá procurando o quê? Você seria agressivo ou responderia com tranquilidade? Tá procurando o quê? O que você espera encontrar nas ruas?

Nós fomos educados e disciplinados para ignorar totalmente a existência de várias pessoas que habitam as ruas, esse pessoal que por vezes nos deixa confusos, têm cor e classe social. Eles e elas também dão vida e fazem uso da liberdade proporcionada por esse espaço-corpo-lugar. Como você distingue quem se drogou demais, de quem bebeu e falou demais? Quem é alcoólatra e quem é uma pessoa em situação de rua? Quem tem família e quem não tem? Quem habita a rua e quem faz da rua uma morada, por mais imprópria para isto que ela seja? Quem merece sua empatia e quem merece seu desprezo? Quem foi adoecido pelas neuroses e quem tá no erro, sem disciplina?

“TUDO JUNTO

A GOZOLÂNDIA

E UM MAR DE NEUROSE”

Arte: Beré Magalhães | Foto: Breno Cobra

Em uma dessas noites conheci Marabu, aquele que conta histórias, ele é o artista que nos convida a vivenciar as ruas da sua quebrada, no extremo sul de São Paulo, em uma atmosfera noturna chamada FUNDAMENTO. Ele nunca respondeu à pergunta do mano que o encontrou no clímax da noite Tá procurando o quê?, mas não deixou de dizer o que precisava ser dito, não deixou de oferecer sua bebida e olhar nos olhos daquele mano e isso foi o suficiente para que ele entrasse na mente desse desconhecido-reconhecido.

Quem tem seu existir negligenciado e vive a experiência que Ailton Krenak chama de “sub-humanidade” carrega no corpo e na mente um mar de neurose. Neurose não é doença, mas é sintoma, um sintoma que aparece em mentes estigmatizadas e marcadas por uma série de ausências, como uma infiltração que inunda aos poucos até afogar as possibilidades de bons pensamentos. É comum sentir neurose quando se está em um subemprego e falta dignidade, quando falta dinheiro para o aluguel ou quando te falta amor.

A noite aliada à rua acolhe toda a pulsão de vida e liberdade, acolhe todos os excessos e ausências, e isto inclui as neuroses individuais e coletivas. Entre quem está anestesiado pelo gozo e quem está anestesiado pela neurose, é nesta atmosfera que confrontamos a forma que aprendemos a lidar com a multiplicidade e humanidade das pessoas que habitam esse espaço-corpo-lugar, inclusive daqueles que taxamos de vagabundos, maltrapilhos, loucos ou drogados.

Ao som dos atabaques e tambores digitais do produtor musical Levi Keniata, Marabu e o artista visual Beré Magalhães me convidaram para entrar na mente desse mano, essa persona non grata que habita e movimenta as ruas, através de uma história viva chamada “Sequelas noturnas de uma mente encruzilhada”, algo que você deve conhecer como “performance”.

Levi Keniata e Marabu | Arte: Beré Magalhães | Foto: Breno Cobra

Ao entrar fico curiosa, me atenho ao lugar de observadora, o ambiente parece caótico o suficiente sem que a minha presença seja notada; me atento a cada detalhe e a cada sensação causada por essa mente encruzilhada, os tons de vermelho, preto e branco, as velas, o cheiro de cigarro e bebida tomam conta do lugar. Percebo a presença de duas personalidades diferentes, depois três e por fim quatro. Quatro personas extremamente diferentes na mesma cabeça, todas muito bem integradas ao pano de fundo que forma a essência dessa mente: caótica dentro do seu equilíbrio, como a energia do guardião das ruas. Ouço falas e vozes que, em um primeiro momento, podem não parecer fazer sentido, mas após algum tempo de observação, trazem provocações viscerais e pertinentes como “de tanto correr me tornei o caminho, de tanto morrer eu juntei a vida e a morte” ou “minha brisa ninguém rouba”.

Primeiro optei por ser indiferente ao que acontecia ali entre as quatro personas, após alguns minutos quis fugir da confusão que tomava conta daquela mente, dentro de meia hora tive o desejo de consertar tudo que considerei fora do lugar, caótico ou incômodo; levei muito tempo para entender que o não-lugar é a norma desta mente, e isto finalmente me trouxe algum conforto.

Existe subjetividade e humanidade nas mentes esquizofrênicas, marginalizadas, empobrecidas e estigmatizadas, Marabu e Beré Magalhães — aliados às musicalidades produzidas por Keniata — retratam brilhantemente as energias que as pessoas que habitam as ruas são capazes de mobilizar. Adentrar uma mente encruzilhada foi um exercício necessário para, mais uma vez, me despir da colonialidade imposta aos nossos olhos e corpos, uma provocação quase afirmativa de Legba: é possível coexistir com o caos.

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Amanda Figueiredo
Nariz da Esfinge

Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição.