Amanda Figueiredo
Nariz da Esfinge
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6 min readMay 31, 2019

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Daria um filme. 1974, Zélia, mulher negra, 25 anos, com três meninos e uma filha de dois no colo, nos extremos da Zona Sul de São Paulo. Mas antes que você conclua toda essa história de maneira equivocada e, por consequência, esse texto, deixo aqui um aviso: eu não vim pra falar de histórias tristes.

Arte produzida por Ana Beatriz

Possibilidades Impossíveis

Imagine o seguinte cenário. Julho de 1961, o homem (branco e norte-americano) pisa na lua pela primeira vez.

Sete anos depois, em 1968, o suíço Erik Von Däniken, lança o livro que sustenta sua teoria polêmica (e racista) que, futuramente, seria refutada por diversos pesquisadores e cientistas. Intitulada “Eram Os Deuses Astronautas?”, a obra propõe a ideia de que as contribuições científicas e arquitetônicas das civilizações antigas que fogem do escopo branco, europeu e ocidental não são feitos realizados por humanos. Ele argumenta que os deuses adorados por essas civilizações são, na verdade, seres de outro universo. Ou seja, astronautas.

No alto de sua arrogância, o autor considera que as civilizações não-ocidentais são incapazes de desenvolverem técnicas de engenharia complexas à época. Ele pressupõe que essas civilizações precisariam de ajuda para arquitetar construções como as estátuas Chilenas da Ilha de Páscoa, as Linhas de Nasca no Peru e as pirâmides do Egito. Portanto, se a suposta ajuda, e muito menos o feito por si só, partiram do homem branco europeu, na lógica de Von Däniken, ambos só poderiam ter vindo de “deuses-astronautas”.

Em terras brasileiras, treze anos depois que o primeiro homem maravilhosamente pisou na lua, Jorge Ben Jor anunciava a chegada dos alquimistas quando colocou no mundo “A Tábua de Esmeralda” (1974), um dos maiores discos de sua carreira.

Com composições autorais e marcando a fase esotérica/hermética do trabalho de Jorge, entre a faixa “O Homem da Gravata Florida” e “Menina Mulher da Pele Preta”, está minha música favorita do artista: “Errare Humanum Est”. Nessa faixa, ele faz referências às obras que compõem a série “Enigmas do universo” (incluindo a teoria de Erik Von Däniken), lançada pela Editora Melhoramentos por volta de 1971.

Jorge Ben nos dá a sua perspectiva acerca desse boom de descobertas científicas, estudos e teorias. Nesse trabalho, vejo o brilho no olhar de quem literalmente descobriu um universo, é o encontro entre o homem que vive em um não-lugar e as possibilidades impossíveis que agora parecem muito palpáveis — e se errar é humano/natural, sonhar, e, mais do que isso, materializar possibilidades, também é.

Percebam que explorar possibilidades (tanto poéticas quanto musicais), enquanto jovem preto, no contexto do Brasil em que o Jorge Ben de 1974 vivia, é pegar o papel e a caneta na mão e ressignificar narrativas

Nariz de esfinge

Entender a obra de Jorge e tomar conhecimento da teoria de Von Däniken, me remeteu à história apagada e invisibilizada dos impérios Africanos construídos no antigo Egito e, por consequência, o significado e simbologia do nariz da esfinge de Gizé.

Mais uma possibilidade impossível foi materializada ali, nas proximidades do Rio Nilo. Bem antes de surgirem a linearidade de tempo e política que nós conhecemos.

A Grande Esfinge de Gizé está localizada nos arredores de Cairo, Egito. É consenso entre pesquisadores e arqueólogos que esse monumento, com cabeça de humano e corpo de leão, foi construído a fim de representar o faraó Quéfren, da quarta dinastia do Egito Antigo.

O nariz da Esfinge de Gizé, reza a lenda, foi removido por cristãos coptas, entre os séculos XVI e XVII. Esse tipo de destruição e mutilação costumava ser comum à época. A intenção? Destruir símbolos e, por consequência, legados.

E por falar em legado, a Dona Zélia, lá do início do texto, sabe bem do que isso tudo se trata.

Dona Zélia é minha avó e a menina de dois anos é Ana Cristina, minha mãe.

Minha família nunca foi de contar história triste. Nossas narrativas são outras. Muitas mulheres pretas, casa cheia, mesa farta. Nossa negritude sendo pautada quase que o tempo todo, direta ou indiretamente, de maneira triunfal — com a firmeza de quem, de alguma forma, sabe a que veio e de quem descende.

Quando criança e até a pré-adolescência, meus traços e nariz eram motivos de muitos incômodos que, naquele tempo, eram bem comuns entre as crianças pretas da minha idade. Eu não entendia a origem dessa sensação até dizer à minha mãe que queria crescer logo pra finalmente fazer uma cirurgia e afinar o nariz. Foi quando Dona Ana me disse, de maneira muito firme, me olhando nos olhos, que eu não deveria mudar nada em meu rosto, sobretudo meu nariz.

“Você é negra, Amanda. Gente preta tem nariz de preto, você não pode desejar ter outro nariz que não seja o seu, porque tudo no seu rosto foi feito só pra você.”

Ao dizer isso, minha mãe tirou uma nuvem cinza de cima de mim. Enquanto o mundo lá fora me dizia que meu nariz largo, boca farta e olhos pequenos eram inadequados, em casa, eu me via no rosto dela, da minha avó e na capa dos muitos rostos negros estampados nos discos de vinil que Dona Zélia tinha na estante de casa. Dizer que não queria ter o nariz que tenho era um grande motivo de preocupação para minha mãe e avó. Ainda que elas desconhecessem a história da Esfinge de Gizé, as matriarcas da minha família já sabiam que suas crianças pretas e seus narizes também eram e são legados.

Hoje sei que as novas narrativas construídas por pessoas negras são, na verdade, um imenso legado ancestral, cheio de possibilidades impossíveis.

Foi exatamente isso que Dona Ivone Lara fez com Os Cinco Bailes da história do Rio” (1965), quando se tornou a primeira mulher a compor a ala de compositores da Império Serrano ou quando lançou o clássico “Alegria Minha Gente” (1992) e ousou falar de felicidade, suas afetividades e seus sonhos dourados. Em uma das faixas desse trabalho, Dona Ivone Lara diz que precisa revelar o que traz dentro de si, que nasceu para cantar e sonhar. E os sonhos dourados dela são meus também.

Estamos cercados de sonhos dourados, sementes que nossas ancestrais plantaram, dando vida à nossa memória. Que possamos nos ver em histórias bonitas que ressignificam nossa dor, como a Nayras Lays o faz ao nos lembrar que não devemos nos culpar por sonhar sem freio. E, mais do que ter, que sejamos nós as referências. Nossa vez, nossa voz.

Materializar a ideia de nos ver em um futuro ancestral como o desenhado nas linhas de Fábio Kabral, em “O Caçador Cibernético da Rua 13, é reivindicar o nariz da esfinge. Isso é subverter a lógica e mostrar que preto também faz e entende de tecnologia. E azar de quem não conhece o Quebradev.

Que possamos nos ver e contar nossas histórias sem esperar pelo dia 20 de Novembro e convites absurdos para falarmos sobre racismo e nossas dores. E se for pra falar de dor, pautemos nosso processo de cura primeiro para que, assim, façamos entre nós, trabalhos como a construção do livroDiálogos Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades.

É necessário estar atento à Revista Preta e às artes visuais da Linoca Souza, ter os Pés na Terra e Cabeça Na Lua junto com a semente que Conceição Evaristo plantou na Jéssica Ferreira. É preciso botar o dedo na cara parecendo Gigante, focar nos Negócios e entender nossas epistemologias narradas na voz da Ana Beatriz através do NIA. Tudo isso com muita estratégia e a sagacidade de quem sabe que nossa história está sendo construída hoje e, sobretudo, aqui no Brasil (que não é Atlanta).

Mais do que nunca, em um contexto em que o plano vigente é a nossa morte, é necessário falar sobre vida, sobre a nossa vida e todo o legado que nos foi dado. Seja através da música, das artes visuais e audiovisuais, literatura, tecnologia, comunicação… as ferramentas são muitas. Você é quem as escolhe.

Eu escolhi a comunicação e a palavra que vale um tiro. Esse projeto é a minha forma de reivindicar o nosso nariz de esfinge que não vai ser arrancado. Contar histórias, que se depender de mim, não serão omitidas ou apagadas.

Então, encare nosso legado de frente. Escolha sua arma. Me conte sobre o seu nariz de esfinge.

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Amanda Figueiredo
Nariz da Esfinge

Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição.