Sobre mochilas pesadas e tempos de colheita

Amanda Figueiredo
Nariz da Esfinge
Published in
8 min readSep 23, 2020

Quem vive em São Paulo e parte da periferia pro centro pra fazer seus corres sempre precisou enfiar a vida na mochila — literalmente. Além do seu material de trabalho, estudo ou seja-la-qual-é-seu-corre, tem que caber a marmita, o moletom e por fim um guarda-chuva muquiado lá no fundo ou na lateral, bem naquela parte que foi feita pra garrafinha de água, sabe?

E a gente seguia assim, andando pra cima e pra baixo com uma mochila surrada e pesada demais porque sabe lá deus o que poderia acontecer com o clima depois das 18h, e foda-se se é verão, outono ou inverno, São Paulo é assim, e você que parte dos extremos e passa 2h a 4h diárias no busão não vai poder passar em casa se algum imprevisto climático acontecer. Não a toa chamamos essa rotina de “corre”, desde sempre estamos literalmente correndo de uma ponta à outra da cidade, 24/7 sem parar. Aquelas coisas:

“Correria tipo aquela mãe solteira

Se matando pra poder cuidar dos filhos

Correria tira do ombro a poeira

Nóis é o trem, olha o caminho que eu trilho”

Confesso, de peito aberto, que quando a quarentena chegou e eu precisei esvaziar minha mochila, senti um puta alívio. Pela primeira vez em muito tempo senti que teria mais tempo livre pra mim, pra minha casa e pro Shuri Gato (com G maiúsculo porque “Gato” é sobrenome), castelei muita coisa na minha mente, na certeza de que ter de volta as 4h diárias que eu perdia no transporte público encheriam minha barrinha de vitalidade no game da vida. E no fim das contas eu só gerei mais expectativas e continuei sendo mastigada e engolida pela rotina e pela ansiedade — e, porra, tudo isso pesa muito mais do que uma mochila atolada de treco, marmita, moletom e guarda-chuva dentro.

Nós temos esses péssimos hábitos, não é? As mina preta que tão na correria estão acostumadas e condicionadas a resolverem coisas, o tempo todo. É casa pra limpar, estudo pra administrar, o trabalho que precisa da sua atenção, o filho que precisa mais ainda, seu relacionamento deve caminhar bem, o aluguel não pode atrasar, sua família precisa daquela força no fim do mês, aquele projeto pessoal precisa sair do papel pra ontem e… ufa! Limpa o suor da testa e volta. É papo de tirar um b.o do caminho e… próximo! Risca uma tarefa da lista, mas respira fundo que ainda tem mais 10 pela frente. E internalizamos a ideia de que de fato não temos tempo pra perder, culpa daquela história romântica e exaustiva pra cacete de que precisamos correr duas vezes mais e sermos duas vezes melhores em tudo, porra, tem narrativa mais cruel que essa? De repente, pra nós, celebrar as bênçãos e cuidar de si, também se torna uma perda tempo.

“Quero me preparar para as minhas bênçãos assim como eu me preparo para os momentos difíceis”

Ouvi essa frase da Nayra Lays durante uma entrevista que fiz com ela para apurar e produzir uma matéria para a Ponte Jornalismo. Produzi e assinei o texto com o Caê Vasconcellos, jornalista que admiro muito e que conheci em uma dessas correrias loucas.

Por muito tempo, dentro dessa nova dinâmica de vida baseada em pandemia/quarentena/novo normal/mascara&alquingel, eu fiquei tão obcecada com o meu trabalho, com a possibilidade de finalmente tirar planos do papel, dedicar mais tempo à minha carreira de forma autônoma, que esqueci que a minha vida não cabe em um quadro do Trello, aí a parte gostosa do processo ficou pelo caminho.

Nessas de, sempre que possível, me cuidar e me observar com carinho, retomei o hábito da escrita pessoal. Uma escrita com narrativas e perspectivas em primeira pessoa que há tempos eu tentava resgatar, algo bem íntimo e profundo que por vezes me ajudava a lidar com os problemas do mundo aqui fora, ou só desenvolver melhor a escrita criativa. Esse processo tão enriquecedor, que também me impulsiona e me potencializa enquanto comunicadora, acabou ficando pelo caminho.

Voltar a escrever pra mim antes de escrever pro mundo aqui fora me fez relembrar da importância de celebrar tudo de bonito que já construí e contribuí pra que existisse nesse plano, lembrei que minha mochila pesada sempre esteve carregada de propósitos e ideias de mil grau que transformaram planos e sonhos em construções reais e muito sólidas. Meu repertório e minhas palavras possibilitaram que meu trabalho se tornasse viável e importante, não o contrário. Jamais o contrário.

Por esses e tantos outros motivos, compartilho com você alguns dos frutos de toda essa correria, trabalhos que mal pude celebrar porque estava ocupada demais atropelando meus próprios processos. Eles foram e são fundamentais pra que eu compreenda de forma plena toda a riqueza e singularidade das construções e contribuições artísticas, intelectuais e culturais daqueles e daquelas pessoas pretas que, como eu, também andam por aí com uma mochila cheia. São projetos lindos que atravessam muito mais do que a minha carreira profissional, me ensinam sobre respiro, paciência e tempo, tudo aqui é fruto de muito trabalho, suor e sede de uma vida plena também. Sempre que esqueço o caminho da apreciação e valorização do meu eu e das minhas palavras, essas obras me levam de volta à trilha, me lembram de agradecer e, sobretudo, viver os tempos de colheita.

Continue a leitura, você vai entender do que tô falando.

#1 Diáspora 22

Segue a cadência, pisa no chão com força.
Pra falar de legado, sambar devagarinho e pisar no chão com força

DIÁSPORA 22 é uma das viagens do NIA, podcast idealizado por Ana Beatriz. Através de narrativas muito bonitas, o projeto fala sobre as pluralidades das identidades pretas e como isso reflete na nossa arte, nossa música e nos sambas do fundo dos nossos quintais. DIÁSPORA 22 é um desdobramento do NIA, um mergulho audiovisual que mostra como a história da Ana Be, suas fotos analógicas, os álbuns de família e a construção da sua identidade se assemelha e intersecciona com várias outras histórias dos pretos e das pretas (em diáspora) aqui de São Paulo — em tempos de pandemia, DIÁSPORA 22 enfatiza a importância do equilíbrio que encontramos sempre que revisitamos nossas memórias, ouvimos quem veio antes e lembramos de onde viemos.

Minhas mãos estão no planejamento criativo desse projeto tão lindo (e que ainda tá florescendo), mas tenho orgulho de dizer que além da direção, toda a materialização e construção narrativa veio da mente brilhante de Ana Be.

#2 Projeto Casulo

Pra trocar uma ideia e se ouvir com atenção | Comunicação visual por Beatriz Carvalho

Desde o dia que ouvi o EP Orí pela primeira vez, virei fã assumida da Nayra Lays e do seu trabalho. A Nayra tem uma sensibilidade muito forte, tudo na sua arte é visceral, inclusive a escrita, além de artista/música, a Nay também é comunicadora. Quando ela me convidou para trabalhar em seus projetos, não imaginávamos que uma pandemia atrapalharia boa parte dos planos, mas foi da necessidade de gerar novas conversas e trazer propostas de diálogos da vida real que surgiu o “Projeto Casulo”. Casulo é um projeto onde a Nayra compartilha seus processos artísticos, seus anseios e verdades são ganham forma através de uma série de cartas em formato de Newsletter… foi e tem sido uma alegria imensa apoiá-la durante o processo, as cartas da Nay foram refúgio em muitos momentos delicados durante a quarentena — e tem mais novidades vindo aí!

#3 Pela Honra

Pra silenciar, ouvir com atenção e dançar no quintal de casa | Foto por: Felipe Cardoso

Em 2019 nós ouvimos muito o termo “masculinidade preta”, ouvimos sobre o abismo que existe entre a construção da masculinidade do homem branco vs a masculinidade do homem preto, silenciamos para ouvir o que nossos irmãos tinham e têm a dizer sobre a construção de suas identidades em uma sociedade machista e sobretudo racista, uma nação forjada que coloca um alvo nas costas dos nossos parceiros e nossos meninos desde o momento em que eles nascem nesse plano. “Pela Honra” é um disco que diz muito sobre isso, sobre o que é viver sendo um jovem preto, de pele escura desse lado do oceano, mas nada nessa obra é clichê, pedante ou repetitivo. Obigo é filho de Ogum, tem a pele retinta e uma voz de trovão que é impossível de esquecer ou ignorar, o primeiro disco da sua carreira, produzido por Levi Keniata, é carregado de sensibilidade, Balanço, sambas e algo que tá em falta na música da juventude preta aqui de São Paulo: autenticidade e memória ancestral.

Nesse trabalho atuei como assessora de comunicação e estrategista criativa (ao lado do prod. executivo Wellison Freire). Esse disco é a trilha perfeita tanto pr’um churrasquinho de domingo quanto pro corre da segunda-feira de manhã, um dia faço um texto só pra falar do “Pela Honra” e a experiência de trabalhar ao lado de vários homens pretos. Uma vivência que definitivamente foi transformadora pra minha vida profissional e pessoal.

#4 CÉLULAS

Pra dar um giro na quebrada e chamar no grau de Patek Philippe no pulso.

Esse aqui tá mais aguardado que a vacina pro Covid-19. CÉLULAS é uma produção do Nebulosa Selo, idealizado pelo produtor musical Levi Keniata. A mente brilhante desse aprendiz de nego véio impulsionou a produção de um disco duplo (sim, DUPLO) em meio à pandemia, tudo feito daquele jeitinho: na sagacidade e de forma independente. A obra vem pra materializar muitos dos sentimentos que atravessaram a gente que tá nos extremos da cidade, correndo pra lá e pra cá, em contexto de pandemia e quarentena. O mote desse trampo é que 2020 ganhou as cores e as vozes de artistas que não estão no mainstream e não tem milhões pra investir em impulsionamento nas redes sociais mas que também estão vivendo e existindo durante a pandemia, eles também estão produzindo arte e, sim, esse registro é histórico! Quem além de nós seria capaz de contar essas histórias, não é?

Rico em melodias, arranjos e vozes, CÉLULAS é uma coletânea de sons com vários artistas independentes como a Bia D’Oxum, Nayra Lays, Gustrago, Marabu, ARTElheiro, Mc KR…são nomes de pessoas que partem de espaços diferentes, da zona leste à zona sul, o que enriquece ainda mais o repertório do disco. O lançamento está previsto para o finalzinho de setembro/começo de outubro, mas pra não deixar ninguém ansioso, dois singulares já estão na rua e dão o gostinho do que vem por aí — muito samba-rock, balanço e funk pra ouvir no quintal de casa, bem de quebradinha do jeito que a gente gosta.

E, ah! É claro que eu não ficaria de fora dessa produção: no CÉLULAS atuo como assessora de imprensa.

Ufa! De fato são tempos de colheita por aqui. E você, já parou pra se ouvir com atenção? Observou os passos dados nos últimos seis meses? O que mudou desde o dia que você esvaziou sua mochila pela primeira vez? Compartilhem comigo. 😉

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Amanda Figueiredo
Nariz da Esfinge

Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição.