30. O arrebatamento sonoro do fenômeno Adele.

Edgar Dourado
Narrações Sonoras
5 min readNov 19, 2021

Muitas vezes uma mulher acorda de repente a beira ou no fundo de um abismo. — Honoré de Balzac, A Mulher de 30 anos.

Pensar na imagem de Adele é quase um surto em nível efeito manada. Visualizamos uma mulher cheia de glamour, vendas estrondosas, prateleiras empilhadas de prêmios e muita, muita condecoração. A simbologia presente em Adele e toda a comoção que leva em seu nome são fatos que não podem ser taxados como hipérbole, é fato de que a cantora britânica sustente e seja digna de toda louvação que a circula.

Adele ocupa um patamar raro, onde poucas tiveram acesso (Alanis Morissette, Sade, Tracy Chapman, Amy Whinehouse). Estamos diante de uma jovem que alcançou sucesso, fama e aclamação quase que instantâneos com um único projeto artístico. Esse feito se porta como uma faca de dois gumes, você já tem todo dinheiro, aclamação e mérito do mundo, ao mesmo tempo que qualquer outro projeto futuro (caso venha a existir) precisa estar à nível do anterior ou mais superior ainda.

Houve uma espera de quatro anos para a continuação do seu grande trunfo. Em novembro do ano de 2015 chega ao mundo “25”, terceiro álbum de estúdio da cantora. 25 foi um sucesso, arrebatou números nas casas dos milhões, foi condecorado com prêmios de renome e fez o mundo inteiro pronunciar seu nome novamente. Apesar de ter superado sua própria barreira e ter colhido novamente frutos fartos, muitas das críticas comentavam o fato do seu trabalho ser igual ao anterior, alguns o taxavam até como inferior.

Mais uma pausa de seis anos ocorreu. Adele tirou um tempo para si, acabou com mais uma relação e alcançou a casa dos trinta anos. É incrível pensar que o maior fenômeno das últimas duas décadas chegou num nível artístico sublime sendo apenas uma jovem adulta; enquanto muitas contemporâneas ainda estão percorrendo caminho para ter sua própria identidade artística e alcançar seu melhor trabalho, ali estava uma jovem que ainda na “imaturidade” alçou o estopim.

O escritor francês Honoré de Balzac, em seu clássico A Mulher de Trinta Anos escreveu que “É preciso ter sofrido o suplicio de uma cena análoga para compreender tudo o que essa esconde de dores, para adivinhar os longos e terríveis dramas que provoca”. Em 30, quarto álbum de estúdio da cantora Adele, temos uma mulher que sofreu todos esses suplícios, mas que também presenciou o amor e alegria de forma mais intensa.

Strangers by nature , a faixa de abertura soa um tanto quanto brega . A produção lembra muito algo Disney misturado com músicas populares dos anos 50, a letra que emite uma melancolia romantizada não colabora com a faixa em si. Easy on me, faixa seguinte e carro chefe do álbum, também não diz pouco ao que veio, ainda que após algum tempo do lançamento, a faixa soa muito melhor.

My little love alivia a decepção inicial, a faixa lembra muito o começo de carreira da artista todavia, demonstra muito mais força e maturidade. É uma faixa extremamente elegante, bem produzida e com um lirismo emocional, visto que a mesma foi composta para Angelo, filho da artista.

Cry your heart out é diferente de tudo que Adele já fez. É o tipo de música que se torna perfeita mesmo que o ouvinte não se atente a letra presente. A produção diversa consegue misturar 3 bases sonoras diferentes sem soar bagunçada ou forçada. Uma experiência criativa cujo resultado final fomenta em uma criação única, rara.

Oh my God também é diversa. Adele se sustenta além de sua voz potente e lirismo triste, temos aqui a artista que há anos foi condecorada como uma excelente produtora. A faixa embala o ouvinte do começo ao fim, uma construção mística de sonoridades que enlaçam até o mais árduo ouvinte.

Can I get It traz em si o melhor que os britânicos conseguem fazer = música boa. Temos aqui uma leve lembrança ao Oasis, com um senso de produção dos Beatles, um fogo interpretativo e ironia medida de Dido. A música soa como uma overdose de sons. Uma construção rebuscada, digna de álbum solo de Paul McCartney.

Após tantas surpresas e inovações, I drink Wine volta para a Adele que já conhecida. Mesmo já possuindo o selo da compositora, a faixa nada contra a maré cômoda das já citadas faixas iniciais,ao contrário de suas colegas, essa é muito boa. Uma performance vocal magistral à la Aretha Franklin. Destaque também para a produção, que mira mais no gospel do que na balada sofrida, apesar da letra ser cortante.

All Night Parking veio para comprovar a pobreza de vocabulário desse que vos escreve. Já não tenho mais adjetivos qualificativos para essa mulher. Uma simples interlude apresenta tantas nuances e estilos. Soa moderna, pop, ao mesmo tempo que se une ao clássico. Aqui ela soma Ariana Grande, Sza, Ray Charles, Carole King e os ultrapassa em nível astronômico. Uma mescla de Jazz com Trap que só uma artista que tem total conhecimento e controle de sua obra e influência seria capaz de executar.

Woman Like Me é grave, sombria, íntima. Só ela, um violão, três tons abafados pela produção. A impressão que temos é a de que a cantora se trancou em seu quarto em um sonoro pedido de socorro, um grito de angústia, um alívio de mágoas. Somos imersos em uma depressão latente e visceral que te atrai de encontro ao irreal, como a ressaca marinha que te puxa e te cospe.

Hold On é aquelas canções que já são clássicos instantâneos. Aqui Adele se porta como uma universitária que tem que defender atese perfeita em uma banca formada por seus maiores mestres. Aqui ela reverencia suas divas e as honra, ao mesmo tempo em que atesta que não deve nada. Temos contato com alguém que tem inspirações várias, mas sempre se sustentou por seu próprio ser, em essência e virtude.

To be Loved segue bem a estética do álbum, é uma canção que não inova ou difere tanto, e nem precisa. Com tantos acertos e preciosidades, até a música mediana se torna esplêndida nesse meio, a faixa atesta que entre altos e (não tão) baixos, estamos diante de uma obra bem arquitetada e moldada.

Love is a Game segue o mesmo padrão To be loved. Mais uma faixa característica de Adele, mas não menos interessante ou glamorosa. Um bom encerramento para o álbum onde em seu final, nos brinda com uma performance vocal única, que retoma a atenção do ouvinte e o encanta.

Em 30, temos o retrato de uma cantora que apesar de já ter sua marca e estilo cravados na história, ainda é capaz de se renovar, reinventar e muitas vezes surpreender. Adele não é o tipo de pessoa que tenta arrumar erros passados e se redimir, mas alguém que sabe de seus acertos e os potencializa ainda mais. Temos um trabalho coeso, que não só acerta em manter a imagem irretocável da artista, como também prova que essa imagem pode se manter consistente sem soar repetitiva ou como padrão formulaico. Uma artista que consegue unir o impacto de seu nome com o poder de sua arte.

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Edgar Dourado
Narrações Sonoras

Designer, Ator, cronista do caos e Carrie Bradshaw Tupiniquim. Escrevo sobre o que der na telha. Instagram: edgar_dourado