Noite e dia, dia e noite: uma análise simbólica da capa do álbum ‘Melodrama’

A pintura de Lorde deitada à luz do crepúsculo reflete não apenas o sentimentalismo das canções do disco, mas também a jornada de amadurecimento dos jovens contemporâneos.

Lucas Bruno Sales
Narrador-Personagem
7 min readJun 16, 2020

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Capa do álbum ‘Melodrama’. Pintura a óleo por Sam McKiniss. Universal / Republic Records, 2017.

O ditado nos diz para “não julgar um livro pela capa”, mas, desde que me apaixonei por música, entendi que discos, em muitos aspectos, são como livros. Suas capas ditam a experiência que temos ao escutar as canções: as cores, texturas, palavras e objetos presentes na capa impregnam o nosso imaginário e adicionam novos sentidos às melodias e letras das canções. Mais do que um eficaz instrumento de venda, acredito que uma boa capa ajuda o ouvinte a criar uma conexão pessoal muito forte com determinado disco.

Durante todo o ano de 2013 eu escutei praticamente o mesmo álbum: Pure Heroine, o disco de estréia de uma cantora neozelandesa chamada Ella Yelich-O’Connor, mais conhecida pelo nome artístico Lorde. Com apenas dezesseis anos de idade, ela se tornou um fenômeno mundial graças à inovação que sua obra trouxe para o mercado de música pop, com produções minimalistas, um som que era sombrio mas também, de alguma forma, esperançoso , e letras que criticavam o estilo de vida abundante e suntuoso das celebridades e como isso é valorizado pela mídia e pela sociedade em geral. Suas composições discutiam a vida dos adolescentes de maneira quase banal, explorando os pequenos momentos e os sentimentos mais crus e honestos. A capa do disco é simples: apenas o nome da artista e do álbum, escritos em letras maiúsculas, sobre um fundo escuro. Aquela imagem me forçava a imaginar a história contada pelas faixas sem muitos enfeites ou distrações: apenas cenas de jovens vivendo suas vidas em cidades pequenas e sem importância, e aproveitando ao máximo isso.

O próximo trabalho de Ella demorou quase cinco anos para ficar pronto. Inspirado por um término de relacionamento e pela sua ascensão à fama, o seu segundo álbum de estúdio, batizado de Melodrama, foi lançado em 16 de Junho de 2017. O mundo era outro, Ella era outra, e o seu olhar para os jovens contemporâneos havia mudado. Esse novo disco era uma reflexão sobre como conseguimos nos sentir sozinhos ainda que aparentemos viver conectados a tudo e a todos, e sobre essa necessidade de procurar alguém que nos complete, e então ter que descobrir quem somos quando essa pessoa vai embora. Melodrama me marcou tanto quanto, senão mais, do que o seu antecessor. A veracidade de suas letras e sons ainda vive em mim tão forte quanto da primeira vez que o escutei. Mas, quando lembro do álbum, o primeiro pensamento que me vêm à cabeça não é de origem sonora. Para mim, muito da força que existe em Melodrama vem justamente da sua imagem de capa.

O disco foi descrito por Ella como um “álbum conceitual”, cujas músicas agem como condutoras de uma mesma narrativa. Nas palavras dela, o álbum conta a história de uma festa, com jovens adultos reunidos na casa de amigos curtindo madrugada adentro. Essa narrativa não está explícita nas letras das canções, e deve ser interpretada livremente por cada pessoa que escuta o disco do começo ao fim. A capa do álbum é uma pintura da artista, retratada deitada de lado em uma cama e parcialmente coberta por lençóis, com um olhar enigmático e fixo que vai de encontro direto com o observador.

A pintura em questão foi feita por Sam McKinniss, um jovem pintor norte-americano. De formação acadêmica, McKinniss tornou sua marca-registrada representações abstratas de fotografias reais, especialmente de cenas e personalidades da cultura popular. Lorde conta que conheceu o trabalho do artista plástico pela Internet, seguindo a recomendação de amigos em comum. Ela entrou em contato com Sam e foi visitá-lo em seu estúdio no Brooklyn, em Nova Iorque, onde presenciou uma exposição com algumas de suas obras, e então pediu para que ele fizesse uma pintura para servir como capa do seu próximo álbum. Os dois marcaram uma sessão de fotos em um apartamento, na hora do crepúsculo, e McKinniss levou algumas lâmpadas coloridas e acessórios floridos. A ideia inicial era conseguir uma estética renascentista, retratando Ella como uma figura retirada de uma ópera italiana. Mas quando ela disse a Sam que, na verdade,“queria parecer uma adolescente em seu quarto após uma longa noite, ao amanhecer”, ele abandonou o planejado e abriu as janelas para deixar a luz natural tomar conta do ambiente.

O resultado final traduz perfeitamente a atmosfera para a qual as composições de Lorde no álbum querem transportar os seus ouvintes. Algo que sempre me instigou é como a imagem consegue transmitir a essência do disco de maneira tão eficaz e imediata: não há nenhuma tipografia, selo, assinatura ou outra forma de identificação na capa, mas, ainda assim, a pintura à óleo de McKinniss oferece uma dimensão visual absolutamente crível para a história que Melodrama tenta contar por meio da música.

O pintor Sam McKiniss em seu estúdio no Brooklyn. Foto por Joshua Aronson / Dazed Magazine.

A palavra Melodrama é associada ao ato de reagir de forma exagerada a algo, geralmente em uma conotação negativa. Essa colocação semântica remete ao Expressionismo, movimento de vanguarda artístico que pregava a valorização dos sentimentos e pensamentos internos em detrimento dos objetos e cenas do cotidiano. Os pintores expressionistas não estavam interessados em reproduzir a realidade de maneira literal, mas sim em criar a sua própria realidade nas telas, provocando interpretações que vinham de dentro para fora, do âmbito do subjetivo. De certa maneira, acredito que foi isso que McKinniss fez com essa obra. Mais do que simplesmente recriar a imagem de Ella deitada na cama, ele utiliza sua liberdade artística para adicionar a essa imagem uma nova camada de simbolismo. As pinceladas do artista são definidas e expressivas, e fazem um percurso entre o real e o imaginário que possibilita o surgimento de novos significados.

Considerando os signos plásticos presentes na imagem, as cores são os que mais me encantam, a começar pelo azul, que é predominante na obra. O campo da psicologia cromática classifica o azul como a cor mais associada aos sentimentos de solidão e tristeza, mas também à tranquilidade e passividade, e destaca como esse contraste muda de acordo com a intensidade da cor e da sua interação com outras cores. A imagem em questão é tomada quase que completamente por uma mistura de tonalidades de azul, desde as paredes do quarto até os cobertores e travesseiros, o que provoca de imediato uma sensação conflitante entre conforto e isolamento. Porém, essa composição monocromática é quebrada pela figura de Lorde, que se encontra banhada em um misto de cores quentes e claras. Esses tons, bem como a direção em que foram pintados, indicam a presença de raios de sol entrando pela janela nas primeiras horas da manhã. Aqui, os signos plásticos passam a gerar signos icônicos: o contraste entre as diferentes luminosidades é uma possível representação do dia invadindo a noite (ou vice-versa), da energia que vem depois da exaustão, e da transição da adolescência para a idade adulta. Envolta pelo azul frio e reflexivo, Lorde é retratada como uma jovem cansada, mas ainda cheia de vida e de esperança. Assim, ao mesmo tempo em que a cena simboliza os momentos finais de uma fase difícil, mas que valeu a pena viver, simboliza também uma espécie de recomeço.

Outras considerações aparecem ao observar detalhadamente a obra. Para retratar a pele de Lorde, McKinniss não utiliza uma só cor, mas uma sobreposição de amarelo, laranja, rosa e violeta que gera uma harmonia incomum, quase como se Lorde, na imagem, não fosse humana, mas um ser místico ou alienígena. Essa representação dialoga com os temas abordados pelas canções do álbum, que examinam a condição do jovem-adulto moderno hora com remorso, hora com admiração. Para Lorde, a juventude é algo tão complexo que é quase como um superpoder, e creio que foi essa complexidade mutável que McKinniss quis capturar no modo como as tintas se misturam, sorrateiramente “infectando” umas às outras. Um ponto que me chama a atenção é exatamente a mancha de tinta azul-arroxeada localizada na bochecha e no pescoço da artista, que pode se assemelhar a um hematoma. Isso poderia remeter às dores do amadurecimento, tanto de origem externa, como decepções amorosas, quanto interna, como a luta contra a depressão e ansiedade.

A força motriz da imagem, no entanto, está na expressão no rosto de Lorde. Desde que Da Vinci eternizou a sua Mona Lisa, sabemos da importância que um sorriso e um olhar têm para expandir o potencial interpretativo de uma obra de arte. Na capa de Melodrama, Ella não parece estar completamente feliz nem completamente triste, mas em êxtase, aguardando a próxima oportunidade para agir de alguma forma. O seu olhar não é agressivo, mas mesmo assim penetra e persegue o espectador, provocando-o a sentir todas as emoções que estão ali estampadas. É um convite, misterioso e tentador. O fato do lençol cobrir parte de seu corpo, enquanto ombros, peito e cabeça permanecem expostos aproxima um pouco a imagem da sensualidade clássica do romantismo, mas também não deixa de prezar pela vulnerabilidade da garota ali retratada. Ela está exposta, e isso a deixa confusa, mas também calma, porque esse é o preço que se paga por uma juventude bem aproveitada.

A capa do álbum se tornou, sem dúvidas, a imagem mais representativa da era Melodrama na carreira da artista. É um retrato melancólico de tudo que Ella tentou exprimir em suas composições, cheias de nostalgia e dúvida, mas que ainda apresenta uma energia vibrante no centro de tudo. Creio que, no final das contas, é isso que a junção das cores e texturas de McKinniss tanto me lembra: um coração pulsante e dramático, que é justamente o que faz com que os jovens-adultos de hoje em dia sintam tanto e tão intensamente.

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Lucas Bruno Sales
Narrador-Personagem

Escritor, publicitário e designer gráfico. Autor de “Memorabilia”. Contato: lucasbrunosales@gmail.com