Comportamento

Capa é coisa de super-heróis

PrEP, medicamento que previne o vírus HIV, causa mudanças na vida sexual de homens gays, que relaxam no uso da camisinha

Rius
Narrativas em Detalhe

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E m uma situação hipotética, um vírus é transmitido pela via sexual, e adquiri-lo seria, praticamente, como receber uma “sentença de morte” dadas as suas características. Após algum tempo, surge um medicamento capaz de oferecer mais de 85% de proteção contra esse vírus. A partir daí, o problema estaria, em tese, “resolvido”.

Parece uma história de filme, mas foi isso que de fato que aconteceu com o vírus HIV. Por décadas, tem sido historicamente associado à população LGBTQIAPN+ e, como analisa o historiador João Silvério Trevisan na obra “Devassos do Paraíso”, servia como um “potencial revelador de indicação de atividades homossexuais”, dada a vinculação moral criada entre um e outro. O remédio, por sua vez, trata-se da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), tratamento fornecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que tem desempenhado papel fundamental não só na mitigação dos riscos, mas na promoção de uma maior liberdade sexual entre homens que fazem sexo com homens (HSH). Para moradores de Porto Alegre, a capital do Brasil com a maior taxa de detecção do vírus da aids nos últimos cinco anos, segundo o último Boletim Epidemiológico de HIV e Aids do Ministério da Saúde, a PrEP é uma realidade no atendimento de saúde, mas ainda carece de mais divulgação.

Funciona?

A Profilaxia Pré-Exposição é um método de prevenção ao vírus HIV que consiste no uso de antirretrovirais com o objetivo de mitigar a sua transmissão. Ela se insere como mais uma estratégia na contenção do vírus, somada ao fato de estar integrada à cartela de serviços oferecida pelo SUS. De acordo com a Fiocruz, os estudos para comprovar aceitabilidade e viabilidade do medicamento iniciaram em 2013, sendo implementada na rede pública de forma definitiva desde dezembro de 2017.

Profilaxia Pré-Exposição é distribuída pelo SUS desde 2017 e oferece cobertura de mais de 85% de proteção contra o vírus HIV | Foto: Rius

A forma mais comum como a PrEP é administrada é pela via oral, por comprimidos formados por um combo de entricitabina e fumarato de tenofovir desoproxila. Pode ser tomada diariamente — ideia defendida, segundo alguns usuários, como um “estilo de vida” — ou sob demanda, quando a adoção é feita para prevenir uma exposição sexual pontual e futura. Há também a opção injetável, composta pelo antirretroviral cabotegravir e aprovada pela Anvisa em julho de 2023. Independentemente da forma de administração, é direcionada a pessoas que não possuem o vírus HIV, mas que podem estar em maior risco de infecção.

Por isso, apesar de ser acessível a toda a população brasileira gratuitamente pelo SUS, é direcionada, principalmente, a HSH, casais sorodiferentes (em que um tem HIV, e o outro, não), trabalhadores do sexo e pessoas trans. Em Porto Alegre, a procura é maior pela população HSH, diz Cynara Nunes, médica infectologista que prescreve o medicamento no Serviço de Atendimento Especializado (SAE) da Unidade Básica de Saúde Santa Marta, um dos principais centros de saúde do município que oferece a profilaxia.

A correta adesão ao medicamento tem gerado índices de proteção consideráveis. De acordo com o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde, estudos apontaram uma eficácia de 86% na prevenção ao vírus entre HSH cis. A redução da incidência de HIV, por sua vez, foi de 95% em usuários com adesão regular e que mantiveram o medicamento em circulação na corrente sanguínea em níveis satisfatórios. Para a PrEP sob demanda, também se verificou uma eficácia de 86% na contenção do vírus no mesmo recorte populacional.

Um novo dia de um novo tempo que começou

O fato de a PrEP não apenas prevenir a infecção pelo HIV como também representar um combate ao estigma traçado historicamente, legando o vírus à população LGBT+, contribui para um cenário de maior relaxamento nas práticas sexuais entre homens que fazem sexo com homens. É a constatação de Tiago Rodrigues da Costa, doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A gente nasceu, enquanto comunidade, a partir desse estigma. Agora, pense: surge um medicamento que dá 98% de probabilidade de tu não pegar um vírus em que tu vai morrer com ele. Isso, com certeza, te tranquiliza. A partir do momento em que a indústria farmacêutica produz um medicamento que previne que tu contraia esse vírus, a prática sexual fica mais fluída. A gente, que usa PrEP, por ter esse dado, não fica super vigilante”, diz.

Tiago, cujo codinome é Otih nas redes sociais, namora o designer Gilson Leonardo, mais conhecido como Leo Oliveira. Ambos têm um relacionamento aberto, proporcionando que se encontrem com outras pessoas de forma livre, e também atuam como produtores de conteúdo adulto autorais para plataformas on-line. Embora não utilizem preservativo em suas empreitadas como uma estratégia de inserção no mercado – cujo público, segundo eles, prefere consumir mídias em que não há o uso de “capa” –, eles, que tomam PrEP há cerca de dois anos e meio, fazem questão de apresentá-la em posts informativos como uma forma de “conscientizar” seus seguidores. “É bem difícil aqui em Porto Alegre, mas a gente tenta formar uma comunidade [sobre o uso da profilaxia] com outros profissionais do sexo. Quando a gente conhece alguém que a gente tenta trazer pra essa comunidade, sempre perguntamos: ‘que cuidados tu tem contigo? Tu faz exames, tu usa PrEP? Como é a questão com as pessoas com quem tu grava [conteúdo]?’”, observa Gilson. Os dois declaram se sentirem mais seguros em seu trabalho devido à prevenção.

Tiago Rodrigues (à direita), que se intitula Otih, e Gilson Leonardo (à esquerda, de nome Leo Oliveira nas redes), produzem conteúdos adultos para a Boyz$, plataforma que lançaram no X (antigo Twitter). | Foto: YouMan Nature Fotografia

A infectologista aponta uma percepção de relaxamento no uso de camisinha após o início do uso de PrEP, apesar de ser ressaltado, logo no início, que o medicamento protege apenas do HIV, e não de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). “O que se observa é que muitos pacientes acabam se reinfectando com sífilis, ou, até mesmo, tendo [a doença] pela primeira vez. Isso demonstra que muitas pessoas, por estarem usando a PrEP, acabam não usando preservativo. Em relação ao comportamento, as pessoas ficam mais tranquilas”, salienta.

Usuários HSH da profilaxia, de fato, relatam uma maior sensação de segurança em suas relações após o início do tratamento. Lucas, dentista de 27 anos que faz uso do recurso, reside em um bairro de classe média de Porto Alegre e conta que é usuário de PrEP há cerca de seis meses. Diz que isso, em boa medida, tem colaborado para um cenário de maior segurança em relação à sua vida sexual. “Eu consigo me permitir ter relações com diferentes pessoas sem me sentir desconfortável, ou sem querer saber tudo daquela pessoa”.

Eduardo, 26 anos, é outro usuário de PrEP. Ele toma a prevenção há sete anos e diz que, depois disso, teve um “aumento” de suas atividades íntimas. Afirma que usa o remédio por assumir um “comportamento sexual de risco”.

Vítor, por sua vez, acessa o medicamento há mais de dois anos e compartilha da mesma sensação de Lucas: “Tomar PrEP faz com que eu me sinta uma pessoa ‘normal’, de certa forma, porque eu consigo transar com quem eu quero sem pensar que amanhã vou morrer”, conta.

Gratuita, mas ainda privilégio?

O cenário de aparente maior liberalização nas práticas sexuais entre usuários HSH de PrEP, contudo, ainda parece ser restrito, apesar de o medicamento estar disponível gratuitamente pelo SUS. De acordo com o Painel da PrEP, dos 1.819 pacientes em uso contínuo do ano de 2024 em Porto Alegre, 80% são homens gays cisgêneros, de pele branca ou amarela e com 12 anos ou mais de escolaridade.

O meio gay aqui em Porto Alegre, muito branco, higienista e elitizado, esquece que a revolta de Stonewall começou com uma mulher preta, trans, trabalhadora do sexo.”

Tiago Rodrigues, doutorando em Psicologia Social e Institucional e criador de conteúdo adulto

A realidade local se aproxima dos índices nacionais em alguns pontos. No Brasil, em 2024, 81,8% dos pacientes são gays e outros HSH cisgêneros, e 71% têm mais de 12 anos de estudos. Nacionalmente, no entanto, a proporção em relação à cor dos usuários é diferente: 55% têm pele branca ou amarela.

Lukas, cujo codinome é Lukassilver, é educador social, reside em um bairro da periferia do município e diz que o acesso ao medicamento, muitas vezes, é dificultado pelo próprio despreparo das equipes de saúde em lidar com o assunto. “Geralmente, as pessoas, em si, não procuram as unidades de saúde para fazer testes [rápidos] por sentirem-se envergonhadas ou receberem um tratamento, muitas vezes, brusco”, comenta. Ele não é usuário de PrEP, mas ao tomar conhecimento da existência da profilaxia, considerou importante a sua divulgação para a comunidade.

A infectologista Cynara Nunes observa que, em termos de políticas públicas, a proposta vem para agregar ao tratamento e à prevenção, mas concorda que carece de mais divulgações. O farmacêutico Diego Gouvêa vai na mesma linha da médica e diz que o advento da ferramenta trouxe um aumento das possibilidades de prevenção ao vírus, mas complementa que não basta haver PrEP: é preciso que ela, de fato, chegue às pessoas. “Além da disponibilidade de medicamentos, é necessário que as políticas públicas estejam voltadas ao acesso desse tratamento”, frisa.

Rodrigues ressalta que é importante realizar discussões “honestas” com a comunidade de homens gays sobre o assunto aliando à questão racial: “a comunidade LGBT e, principalmente, o meio gay aqui em Porto Alegre, por ser um meio muito branco, higienista e elitizado, esquece de onde a galera veio, que a revolta de Stonewall começou com uma mulher preta, trans, trabalhadora do sexo”.

O doutorando refere-se ao histórico bar Stonewall Inn, em Nova York, que recebeu uma batida policial contra a população LGBT+ frequentadora do espaço na madrugada de 28 de junho de 1969. A partir desse episódio, diferentes manifestações em defesa da comunidade irradiaram-se pelos Estados Unidos, originando as primeiras paradas LGBT+ do mundo. “Um homem gay branco que não faz uso de PrEP e um homem gay negro que faz uso PrEP: as pessoas ainda vão olhar pra esse homem branco e dizer que ele é o suprassumo do desejo, enquanto aquele homem preto vai ser ‘a cara’ da doença. Não falar que foi um corpo preto que fez história é epistemicídio, é matar o corpo preto como uma possibilidade de ser um corpo histórico”, finaliza.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo — Fabico/UFRGS — Orientação: Professora Thaís Furtado — Estagiária docente: Sílvia Lisboa

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