Comportamento

Corpo e coletividade em roda

A capoeira demonstra a importância do pertencimento em grupo. Outras iniciativas também enfatizam a afirmação da identidade através da atividade física e expressão cultural

Clara Costamilan
Narrativas em Detalhe

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Na roda de capoeira, o cumprimento ao iniciar o jogo é uma forma de demonstrar respeito | Foto: Clara Costamilan

E m roda e ao som do berimbau e dos atabaques, o grupo de capoeira angola Rabo de Arraia se reúne aos sábados no Parque Ramiro Souto, na Redenção, para aulas com o Mestre Ratinho, alcunha de Anselmo Accurso, 66 anos.

Educador físico e especializado em educação popular, Ratinho é referência entre capoeiristas em Porto Alegre. Para ele, a capoeira, como um instrumento da educação, integra os participantes por meio da cultura, da socialização e da atividade física. “A cultura popular, o saber popular, é a linguagem da educação libertadora”, diz.

A aula do mestre Ratinho costuma ser dividida em três partes: música, exercícios e jogo. Na aula aberta, os alunos carregam instrumentos diversos em suas mãos, trocados durante a prática. Não saber tocar não era um impedimento — ali, tudo era ensinado na hora.

Primeiro, um exercício de ritmo. Em seguida, a voz entrava no jogo, e a dificuldade aumentava: o ritmo nas mãos, no canto e no corpo. Quando alguém perdia o tempo, um olhar de um participante do outro lado da roda procurava auxiliar, e parecia dizer: “percebe o que estou fazendo, e me acompanha”.

Na segunda parte da aula, os movimentos iniciais se transformaram de forma fluida numa dança que ficava cada vez mais exigente. Naquele ambiente, um erro era encarado com sorrisos e oferecimentos de ajuda. Para o mestre Ratinho, essa é a questão mais legal da socialização na capoeira: “Tu precisa do outro, tu vai se desenvolver com o outro. Hoje tu está aprendendo, e mês que vem tu está ensinando para o mais novo que está chegando”. Na terceira parte da aula, é formada a roda, e os participantes revezam entre instrumentos e movimentos, colocando o que aprenderam em jogo.

Através da prática física e da música, a aula de capoeira é lúdica e descontraída. Segundo a educadora física Luciana Dornelles Ramos, doutora em Educação, participar de um grupo onde o bem-estar social se alia à saúde física e mental pode trazer mais qualidade de vida. Ela cita também a importância do sentimento de acolhimento entre os alunos que fazem atividade em grupo “têm ganhos na vida que vão além do exercício físico, e geralmente estes alunos mantêm a atividade por mais tempo”, explica.

A capoeira como educação popular

Após a aula, e agora em um tipo diferente de roda — a de chimarrão — é discutido o impacto da expressão cultural da capoeira na vida dos participantes. Os alunos presentes mencionam a musicalidade, a religiosidade e espiritualidade de matriz africana e a manutenção da identidade de pessoas pretas na sociedade. Um dos alunos Luciano Judá cita a cultura negra na capoeira: “Para muitos, (a capoeira) nos dá uma identidade diante da sociedade. Então é muito importante, principalmente para nós que somos pretos. E para todos, porque a capoeira agrega todos. Ela, como toda cultura de matriz africana, é inclusiva.”

Com uma trajetória na capoeira que completou recentemente 50 anos, mestre Ratinho teve a vida marcada pela formação contínua na atividade e pelo contato direto com os impactos sociais e transformações pessoais que a capoeira proporciona. É fundador da Associação Cultural de Capoeira Angola Rabo de Arraia (Accara), que completa 29 anos em 2024, e da qual o grupo Rabo de Arraia faz parte. Entre as atividades da associação, estão aulas de capoeira, rodas de debates sobre história e cultura popular e oficinas de ritmos como o afoxé.

Para o professor Ratinho, a educação libertadora, comunitária e social é a própria capoeira. A prática seria, entre outros, o grande método pedagógico da educação popular. “Porque ela tem a história, ela tem a cultura, ela tem a raiz, ela tem a resistência contra a dominação, ela transforma o homem objeto em homem sujeito. Ele se descobre dentro da capoeira”, afirma.

“A capoeira me moldou um novo espelho de ser humano”

André Oliveira, professor de capoeira

Entre os alunos do grupo, o também professor André Oliveira relata que, para ele, a capoeira teve um impacto direto nas suas escolhas pessoais e profissionais. Ele se interessou pela prática através da musicalidade, e imediatamente quis aprender mais. “Eu não vejo quem eu seria se um dia eu não tivesse conhecido a capoeira”, diz ele. “Eu tinha tudo para ser um moleque que ia está solto na quebrada, poderia ter me perdido para outro caminho.”

André conta ainda que perdeu o pai aos seis anos e não tinha uma referência masculina positiva, o que foi encontrar no seu primeiro mestre de capoeira. Ele fala com orgulho que seguiu os passos do seu mestre e se tornou professor em um projeto social na Escola Municipal Saint Hilaire, zona leste da capital. “A referência de homem que eu queria ser sempre foi igual àquele meu professor. Eu sempre quis jogar capoeira que nem ele, tocar instrumento que nem ele”, conta. “A capoeira me moldou um novo espelho de ser humano.”

Mestre Ratinho (esquerda) e André Oliveira (direita), entre colegas em roda | Foto: Clara Costamilan

Atividade física e o coletivo

Assim como a capoeira, outras iniciativas demonstram que laços de companheirismo entre participantes são benéficos e podem ser desenvolvidos em ambientes fora das habituais academias e clubes. A educadora física Luciana Ramos é idealizadora do Projeto Afrofit, que realiza aulas de ginástica e treinamento funcional, aliadas a reflexões a partir de leituras de autores negros partilhadas no início das aulas. O projeto é voltado para a saúde da população negra, com treinos abertos na Redenção e na Orla do Gasômetro.

Luciana conta ter sofrido racismo e vivido experiências de desconforto em espaços tradicionais de atividade física, sentimento compartilhado por muitos de seus alunos. “Hoje, trabalho com uma educação física que acredito, pensando na educação dos meus alunos e alunas para dialogarem melhor com seus corpos, cuidarem de si e compreenderem que o exercício físico não precisa estar vinculado ao sofrimento”, diz.

A interação cria relações que refletem diretamente na saúde. Segundo a educadora, cada aluno novo é logo abraçado pelo grupo: marcam almoços, happy hours e mantêm contato, criando uma rede de “aquilombamento”, que ela diz ser essencial para a sobrevivência em uma sociedade racista.

Os alunos do professor Ratinho contam que encontram na capoeira a mesma sensação de pertencimento. Ele deixa claro que a capoeira é um fazer coletivo, soma das interações sociais, e que o foco não está no indivíduo. “O individual das pessoas vai se fortalecer no coletivo do grupo, na construção do saber popular. É ali que tu vai te fortalecer. Se o grupo está mal, o individual também está mal”, completa. “Desde o mais novo ao mais velho, todos somam aqui.”

PARA PARTICIPAR

Grupo Rabo de Arraia

Horários: terças às 18h, sábados às 10h
Local: Parque Ramiro Souto, Redenção
Aulas abertas e gratuitas

Projeto Afrofit
Instagram: @afrofitprojeto
Horários e local: sábados às 10h, Redenção; quartas 19h, Orla do Gasômetro
Aulas abertas, valor social

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo Fabico/ UFRGS

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