Cicatrizes na história

Jogo da memória

Lembrar sobre a ditadura militar no Brasil carece de iniciativas permanentes em meio a disputas e distorções

Clarice Sena P.
Narrativas em Detalhe

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Parede no interior da Casa Diógenes Oliveira com imagem do ex-guerrilheiro/ Foto: Clarice Sena

Vamos jogar um jogo. No início, a proposta parece infantil, mas logo você entenderá. Funciona assim: algumas fileiras de cartas estão dispostas sobre a mesa, todas com uma estampa genérica voltada para nós. Cada jogador deve virar duas cartas a fim de criar um par que tenha as mesmas imagens. Se as cartas não corresponderem, devem ser viradas de volta. O desafio é lembrar onde está cada imagem a fim de formar mais pares. Vence quem puder lembrar mais, e o jogo não termina até que todos os pares estejam formados.

O período da ditadura militar no Brasil (1964–1985) deixou todo tipo de marca pelas cidades brasileiras, e é certo que algumas conseguiram fazer isso vir à tona mais do que outras. Em Porto Alegre, muitas cartas sobre a memória dessa época estão sobre a mesa. A principal via de acesso à cidade é a Avenida Presidente Castelo Branco e, embora seu nome tenha sido alterado para Avenida da Legalidade e da Democracia, pouco tempo depois ela voltou a ter o nome do ditador. Como um corte na pele que cicatriza à revelia dos cuidados com o machucado, o nome permanece lá e é uma das cartas sem par na cidade.

Em frente ao Mercado Público da cidade, o Largo Jornalista Glênio Peres foi batizado em homenagem ao jornalista e vereador de mesmo nome, cassado com base no Ato Institucional nº 5, em 1977. Do outro lado da rua, o Paço Municipal, em frente à prefeitura, foi palco da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964, e de um enorme comício pela Diretas Já, em 1984. Sobre Peres não há mais do que uma simples placa de rua que indica o nome do local. Sobre os acontecimentos no Paço Municipal não há nenhuma informação disponível no lugar. É fácil passar por eles sem saber da memória que carregam.

Em alguns lugares, é possível encontrar os pares. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul possui uma pedra memorial sobre os docentes expurgados da instituição. No subsolo do Palácio Piratini há o espaço Rádio da Legalidade, de onde Leonel Brizola mobilizou uma cadeia de rádio pela manutenção da posse do presidente João Goulart, em 1961. Estes espaços, porém, são uma exceção. Apesar do projeto protocolado na prefeitura da cidade para instalar placas sinalizando centros de tortura em Porto Alegre e da luta constante de muitas pessoas para preservar a memória do que aconteceu, muitas cartas do jogo continuam escondidas.

Em um país de dimensões continentais, existem pelo menos oito museus que tratam sobre a resistência aos anos de opressão. Localizados em Pernambuco, Paraíba, Ceará, Paraná e São Paulo, essas instituições de caráter permanente possibilitam a educação sobre direitos humanos o ano inteiro, além de exposições pontuais quando efemérides são lembradas. O número é baixo em comparação aos 233 locais que serviram como centros de tortura e violações dos direitos humanos, conforme levantamento realizado para os relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgados no final de 2014.

Ignorância é força

Exposição “Porto Alegre, a Câmara e o Movimento de 64” na Assembleia Legislativa do RS/Foto: Clarice Sena

Em abril deste ano, diante do marco de 60 anos do golpe militar que deu início a um período nefasto do país, muitos eventos foram celebrados para “descomemorar” o ocorrido. Um deles chamou a atenção pela contradição em relação a estes acontecimentos.

Fui ao Espaço Carlos Santos, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, para a abertura da exposição “Ditadura Nunca Mais”, e este título permanece no vídeo da transmissão oficial do evento. Chegando lá, vi que a exposição se tratava de duas fileiras de banners contendo fotos e textos históricos sobre a experiência da ditadura na capital gaúcha. Comecei a ler e percebi que, na realidade, a exposição se chamava “Porto Alegre, a Câmara e o Movimento de 64”. Essa é uma forma de falar da ditadura e do golpe sem chamar o que aconteceu de golpe e ditadura.

A contradição estava, ao mesmo tempo, no espaço e nas palavras, pois passei os olhos por todos os cartazes e em quase todos apareciam “movimento de 64”, “movimento militar”. A abertura da mostra, com proposição da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da ALRS, reuniu a presença de figuras políticas de esquerda e representantes de organizações civis. Discursaram nomes como Christiane Johann, representando a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, e Pedro Ruas, atualmente vereador pelo PSOL na Câmara de Porto Alegre.

Os parlamentares cumprimentavam as pessoas presentes em frente àqueles posters normalmente, como se ninguém tivesse notado. E acho que, de fato, ninguém notou. Escutei as falas de todos os oradores, emocionados, engajados, às vezes até enraivecidos, esperando alguém falar por que a expressão aparecia daquela forma, mas ninguém comentou. Senti vontade de perguntar, mas a vontade foi se esvaindo a cada discurso.

Fiquei intimidada com o que escutei. Eram discursos fortes demais, valeram bem mais do que a tal da exposição. Mentalmente, fiz uma troca. Ignorei a exposição e fiquei com os discursos, mas o gosto estranho na boca não desapareceu, meu sorriso ficou torto, o andar manco. Saí da Assembleia no início da tarde, subi a rua e passei em frente à estátua do Brizola que fica ao lado do Palácio Piratini.

Quis entender como essa situação se configurou dessa forma e descobri que, na verdade, “Porto Alegre, a Câmara e o Movimento de 64” foi elaborada 10 anos atrás, em 2014, e desde então integra o acervo de exposições itinerantes do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre. Mediante solicitação de empréstimo, qualquer escola, empresa ou instituição que desejar exibir este material histórico que chama a ditadura de “movimento de 64” pode fazê-lo.

O texto da exposição foi escrito por Leonardo Fetter da Silva, hoje é pesquisador de pós-doutorado em História na Universidade Federal de Juiz de Fora. Em entrevista, Fetter esclareceu que participou da elaboração desta mostra quando era estagiário do Memorial da Câmara em 2014 e cursava os primeiros semestres da graduação em História. Na primeira versão da exposição, o termo “ditadura militar” foi utilizado e, quando ela estava pronta, houve um movimento de alguns vereadores questionando os assuntos abordados na exposição. A partir disso, o texto e o título da mostra foram modificados de forma a incluir “movimento de 64” ou “movimento militar”.

Procurados pela reportagem para se manifestar, o Memorial da Câmara ainda não enviou sua resposta. Já a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, proponente da reexibição da mostra em 2024, declarou por meio de seu secretário, Luan Sanchotene, que a proposição de realizar essa exposição na ALRS partiu da Deputada Laura Sito, presidente da Comissão. Para tal, foi realizada a solicitação de empréstimo e a reserva do Espaço Carlos Santos. A motivação do pedido se deu por ocasião dos 60 anos dos eventos de 1964. Após pedidos para mais esclarecimentos, a Comissão e a deputada Laura Sito também não responderam.

Uma casa de boas memórias

Imagens e decoração na Casa Diógenes contam sobre a vida do seu antigo morador/Foto: Clarice Sena

Mais ao sul da cidade, no bairro Cidade Baixa, vive a Casa Diógenes Oliveira. E a casa de fato vive, porque ali onde morou o ex-guerrilheiro que dá nome ao local foi transformado pelo seu filho, Guilherme Oliveira, em um espaço de memória e cultura. Na casa se reúnem amigos, moradores do bairro, militantes políticos e outros interessados para participar das várias atividades propostas pelo espaço.

Os diferenciais do ponto de cultura são inspirados na vida do próprio Diógenes de Oliveira, como conta seu filho. “Meu pai gostava de literatura, da boa comida, da boa música, então é isso que a gente traz na casa. Ela tem uma questão muito da memória boa também”. De acordo com Guilherme Oliveira, a casa tem características diferentes na tentativa de construir uma memória permanente sobre ex-guerrilheiros enquanto pessoas diversas, que não podem ser limitadas apenas à visão sobre eles enquanto vítimas ou terroristas, ressaltando a importância das suas ações de resistência.

“São memórias que vão seguir sempre ou por pessoas que ela viveram ou por filhos como eu”
Guilherme Oliveira

Para ele, a memória enquanto um elemento comum às pessoas é uma possibilidade de conexão. Quem visita a casa tem acesso à memória não só sobre Diógenes, mas a uma memória coletiva. “Meu pai acaba sendo um cara meio símbolo de uma época, da luta contra a ditadura, a construção do Brasil com a constituinte de 88 e a construção do PT. É uma memória coletiva que muitas pessoas viveram direta ou indiretamente, e quem não viveu muitas vezes gosta de lembrar, né? São memórias que vão seguir sempre ou por pessoas que ela viveram, ou por filhos como eu. Não vivi diretamente a luta armada, mas o meu pai viveu e passou muitas histórias. Isso mexe comigo”.
Depois dessas duas experiências tão diversas, uma fragmentada e a outra tão vigorosa, senti que mesmo 60 anos depois do golpe, a história sobre ele e o que se sucedeu ainda estão em disputa. É clichê falar no 1984 de George Orwell, mas a frase “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” faz sentido para a minha geração.
Dizer tudo isso não significa que nesse meio tempo não houve vitórias, conquistas e marcos que ficam para serem lembrados — não quer dizer que não há memória –, mas para que o que aconteceu seja lembrado, é necessário jogar o jogo. Parafraseando a obra de Antoni Muntadas, a percepção requer envolvimento, e lembrar é um exercício ativo.

Reportagem produzida para disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo FABICO/UFRGS

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