Educação

Longe do urbano, perto da comunidade

As particularidades do ensino nas escolas do campo

Maryanna Lucas Ferreira
Narrativas em Detalhe

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A Escola do campo José Marques Lopes, no distrito gaúcho de Frei Sebastião, atende cerca de 70 alunos da comunidade | Foto: Maryanna Lucas

A filha de agricultores Elisete Bernardi é natural da área rural de Santa Catarina e estudou em uma escola do campo do primeiro ao quarto ano do Ensino Fundamental. Logo após esse período, Elisete se mudou para o centro urbano onde concluiu seus estudos. “Eu me alfabetizei em escola do campo e fui, com 11 anos, para a cidade estudar, porque onde eu residia não tinha essa possibilidade”.

A história de vida de Elisete fez com que ela acabasse se dedicando justamente à educação no campo, que fez parte da sua infância. Atualmente, ela é docente do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O curso é oferecido no Campus Litoral Norte (CLN), e está completando 10 anos em 2024, mesmo tempo em que Elisete trabalha na universidade. “Eu leciono desde a primeira turma de educação do campo”, conta a professora.

Atualmente no Brasil existem 56.954 escolas do campo, que oferecem o Ensino Fundamental. Esse número totaliza cerca de 30% das escolas do país. Elas ficam longe das áreas urbanas e funcionam com algumas especificidades. “O Brasil é um país agrário, com muitos sujeitos do campo e que não tinha nenhuma formação pensada para eles”, diz a professora da UFRGS.

O Artigo 28 da Lei nº 9.394 prevê conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às necessidades e interesses dos alunos dessas escolas, com possibilidade de uso, dentre outras, da pedagogia da alternância. Essa é uma metodologia educativa que busca a interação entre o estudante que vive no campo e a realidade que ele vivencia em seu cotidiano. O objetivo do método é promover a troca de conhecimentos entre seu ambiente de vida e trabalho e o escolar. Isso possibilita que, na escola, a produção de conhecimentos e de saberes da vida rural seja valorizada.

A mestra em educação e professora de linguagens em uma escola do campo, Magdiele Ferreira diz que há um processo histórico de fechamento de escolas mais afastadas dos centros urbanos e que as especificidades do campo geralmente não podem ser atendidas em contextos metropolitanos. “É importante enxergar as necessidades dessas crianças dentro da vida delas, porque cada contexto tem a sua importância”, diz Magdiele.

Um exemplo de funcionalmente diferenciado nesses colégios é a adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas. A professora menciona que nos períodos de colheita e de plantio aumentam a taxa de infrequência dos alunos dessas escolas, porque, às vezes, eles estão prestando algum tipo de suporte às famílias. “Esse trabalho da população vai prover o alimento para a comunidade, vai prover a renda daquelas famílias durante aquele período e, espera-se, que durante o ano todo.” Por isso, a lei garante a oferta de educação básica para a população rural e estabelece que os sistemas de ensino promovam adaptações necessárias às peculiaridades da vida de cada região.

Construindo afetos

A escola do campo cumpre também um papel de espaço para a socialização, de acesso ao conhecimento e, além disso, presta pequenos serviços à comunidade. A participação ativa em grande parte da formação dos moradores é uma característica dessas instituições. Desde a alfabetização, passando pelo primeiro estágio até o trabalho formal.

O município de Palmares do Sul, situado no Litoral Norte gaúcho, tem uma área total de quase o dobro de Porto Alegre e apenas 1,3% dessa área é urbanizada. A cidade possui 11 instituições de ensino e parte das escolas de Ensino Fundamental estão distribuídas em seus distritos. Entre eles, o distrito do Frei Sebastião, onde a Escola Municipal de Ensino Fundamental José Marques Lopes está localizada, atendendo aproximadamente 70 alunos, em turmas que variam entre 6 e 11 alunos.

O professor Raul Dias mora na comunidade e tem uma relação de afeto grande com o colégio. Ele conta que estudou ali do 1º ao 4º ano e atualmente leciona história e técnicas agrícolas onde antes foi aluno. O terreno onde a José Marques Lopes está instalada era de propriedade dos avós do professor, que doaram o espaço para a construção da escola. “Mesmo que meus avós não tenham tido acesso ao estudo, eles tinham uma preocupação muito grande em ofertar para os netos e para a comunidade um espaço onde eles pudessem ter esse acesso à educação”, conta Raul.

Magdiele é professora de português na mesma escola e mostra uma cartinha produzida artesanalmente em papel ofício rosa, com desenhos coloridos. Com lágrimas nos olhos, ela explica que vai deixar de atender os sete alunos do primeiro ano para assumir um novo contrato e, por isso, ganhou esse presente das crianças. Magdiele diz que foi um dos momentos mais significativos que ela viveu na escola. “A princípio, eu não iria comentar isso com eles. Uma das professoras que já sabia contou para os pequenos e me pediu para ir até a sala por cinco minutinhos. Chegando lá, eles me receberam com abraços e com essa cartinha cheia de desenhos que dizia para eu ser feliz no meu novo trabalho, que vai dar tudo certo e que eles estavam torcendo muito por mim”, comenta Mag, como é chamada pelos alunos.

A professora Magdiele recebeu uma carta de despedida de seus alunos | Foto: Arquivo pessoal

A professora diz que é difícil na vida docente no campo lidar com diferentes sentimentos dos alunos, que às vezes, por fazerem parte de famílias numerosas, com os pais trabalhando em cargas horárias expressivas, têm pouco espaço para brincadeiras e para afetos. Magdiele conclui que os momentos de atenção, de escuta e de carinho que os alunos vivem na escola são uma “gotinha de conforto” no dia de uma criança que às vezes precisa lidar com muitas coisas ao mesmo tempo.

Uma grade curricular ímpar

Em sua carta de apresentação, o curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFRGS reforça a importância do campo como território de produção de vida, de produção de novas relações sociais, de novas relações entre o homem e a natureza e de novas relações entre o rural e o urbano. Para isso, é necessário que a profissionalização de docentes possibilite a construção de alternativas de desenvolvimento sustentável das comunidades do campo. “É importante que os estudantes da licenciatura possam reconhecer esses saberes dos sujeitos do campo como legítimos e não como saberes menores”, diz a professora Elisete. A proposta do curso leva em consideração a pluralidade de contextos em que estão inseridos os estudantes brasileiros e o currículo considera a dinâmica da realidade do campo, afirmando que a escola não é o único espaço educativo dessa realidade.

“Quando o poder público fecha uma escola do campo, ele fecha a sua presença na comunidade”

Elisete Bernardi, professora de Educação do Campo da UFRGS

Processos históricos de êxodo rural influenciam diretamente nos fechamentos dessas escolas. Nos últimos onze anos, o Rio Grande do Sul sofreu com o fechamento de 227 escolas públicas, 146 delas eram do campo, segundo o Observatório da Educação Pública do RS. O curso da UFRGS luta contra esse movimento. “Quando o poder público fecha uma escola do campo, ele fecha a sua presença na comunidade”, diz Elisete, que viveu isso na infância.

Quando o aluno percebe que sua realidade é valorizada e que ele é parte importante da sua comunidade, ele pode pensar em se desenvolver no seu ambiente. O professor Raul é um defensor da educação no campo: “A educação é transformação, liberdade e oportunidade. Eu sempre digo pra eles: estudem, porque quando a gente estuda, a gente não deixa de sonhar. Para que eles sempre lutem pelos objetivos deles, porque todo mundo pode.”

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo Fabico/UFRGS

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