Enchentes

Memórias que não se pode mais tocar

Cheias históricas também levaram momentos guardados dentro de álbuns de fotografia

lorenzo castro
Narrativas em Detalhe

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As águas da enchente chegaram ao segundo andar do prédio que abriga o restaurante Casa do Peixe, localizado em Arroio do Meio | Foto: Rodrigo de Oliveira/Arquivo Pessoal

Entre o final de abril e o início de maio de 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou um período de chuvas com quantidades muito superiores em comparação com a média histórica. Somente na primeira semana de maio, foi registrado um volume de água oito vezes maior do que o esperado para o mês todo. A subida do nível de corpos d’água em todo o estado, começando pelos rios Pardo, Taquari e Caí, chegando até a bacia da Laguna dos Patos, afetou mais de 400 municípios gaúchos e fez com que mais de 600 mil pessoas fossem obrigadas a deixar suas casas, segundo a Defesa Civil.

Dentro das residências, a água subiu rapidamente. No desespero para sair em busca de um local seguro, ficaram para trás móveis, eletrodomésticos, veículos e todos os tipos de objetos. Esquecidos em um momento em que sobreviver era o mais importante, foram deixados também os álbuns de fotos. As memórias que eles guardavam foram levadas pela enxurrada.

Caren Costa, 50 anos, é mãe de nove filhos e moradora do centro de Eldorado do Sul, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre banhada pelas águas do lago Guaíba. Em novembro do ano passado, sua casa já havia sido afetada pelas enchentes. Mas nada perto do pesadelo que iria presenciar em 2024. Ela foi uma dos 40 mil habitantes da cidade que foram obrigados a sair de casa, perdendo todos os seus bens materiais, incluindo seus álbuns de fotografias.

No dia 3 de maio, Caren foi obrigada a buscar abrigo pela primeira vez, indo para a casa de uma de suas filhas em outro bairro da cidade. Mas não adiantou, pois a água também chegou até o local onde estava.. No começo da tarde, a cidade já vivia uma situação caótica. Pessoas gritavam por ajuda nas ruas, rodovias estavam bloqueadas com risco de deslizamento e retroescavadeiras auxiliavam nos resgates. “Parecia cena de filme, coisas que nunca imaginei ver”, relembra Caren. O município foi um dos mais afetados do estado, com mais de 90% do território ficando alagado.

O segundo deslocamento foi para Guaíba, cidade vizinha a Eldorado do Sul. Na casa de uma outra filha, no bairro Santa Rita, o maior da cidade, a esperança era de que a região não fosse afetada pelas enchentes. Mas não conseguiram sequer dormir uma noite inteira, pois já na madrugada a água chegou também ali de maneira intensa. Com ajuda de comerciantes locais, conseguiram com muita dificuldade entrar em um caminhão, que as levou até um dos pontos mais altos da cidade. “Foi onde eu enfrentei os piores momentos durante as enchentes. Achei que não iria sair dali. Eu escolheria ficar dias na minha casa com água na altura do peito do que passar pelo que passei em Guaíba”, conta Caren.

“Perder as fotos foi a parte mais difícil para mim”, Caren Costa, moradora de Eldorado do Sul

Três semanas se passaram até que ela pudesse finalmente voltar para sua casa. Seu bairro foi um dos últimos da cidade para onde os moradores puderam regressar. O cenário que encontrou foi devastador. A água subiu até o teto. Geladeira, fogão, máquina de lavar, tudo teve que ser descartado. Até as paredes tinham rachaduras em função do longo período em contato com a água. “É muito difícil perder. Não é somente pelo valor do objeto, mas por tudo que ele representa.”

Entre tantas emoções para lidar ao mesmo tempo, Caren teve também que enfrentar o luto pela perda de quase todas as fotografias, que ficaram embarradas. Registros de todos os seus nove filhos, de acontecimentos especiais da vida de cada um, desde a infância. Formaturas, aniversários e tantos momentos que agora não poderiam mais ser revisitados. “Perder as fotos foi a parte mais difícil para mim”, diz.

Apesar dos danos, algumas imagens do acervo de Caren foram resgatadas | Foto: Caren Costa/Arquivo Pessoal

O poder da fotografia

As fotos são capazes de contar não apenas a história individual de uma pessoa, mas também servir como registro de acontecimentos históricos.

Na cidade de Arroio do Meio, município localizado no Vale do Taquari e banhado pelo rio homônimo, a família de Rodrigo de Oliveira, 34 anos, museólogo, reside em uma construção que data de 1907. Ali funciona também o restaurante Casa do Peixe, um símbolo da região há mais de 70 anos. O prédio enfrentou enchentes em 1941, 1956, 2020 e 2023. Mas agora em 2024, a água chegou pela primeira vez até o segundo andar da casa, que abrigava registros fotográficos dos avós de Rodrigo. “Foi algo sem precedentes. São gerações de fotos, assim como são as gerações da família nessa casa.” Pela fragilidade, as fotos mais antigas, que datavam de antes da década de 1940, foram as mais afetadas, apagando a história de uma família e de uma comunidade.

Recuperação

As fotos carregam memórias, representações de momentos com grande carga emocional. “A fotografia é um pedaço concreto do nosso passado. A gente tem esse apego a ela”, diz a publicitária e fotógrafa Cristina Lima. Principalmente se tratando de fotografias impressas. Apesar da capacidade de se guardar de maneira ilimitada fotos digitais no armazenamento dos dispositivos e até mesmo na nuvem, o ato de selecionar uma imagem para ser revelada em papel é um demonstrativo de sua importância. “A gente pega. Ela é concreta. Ela vai se tornando parte da nossa vida também como documento. Não me lembro somente da ocasião, mas também do porta-retrato’ onde está guardado na casa da minha mãe, por exemplo. O próprio documento tem uma história”, diz a fotógrafa.

Cristina atuou como uma das coordenadoras do projeto de recuperação de fotos do Núcleo de Antropologia Visual (Navisual), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O grupo trabalhou na recuperação das fotografias que foram atingidas pelas enchentes, mas que ainda podiam ser salvas por meio de um processo de lavagem e secagem. Os pedidos começaram a chegar de cidades de todas as regiões do estado. Sem capacidade de recolher e receber todas as solicitações, o Navisual passou a publicar nas redes sociais uma série de vídeos com instruções para que as pessoas pudessem elas mesmas realizarem todos os processos em casa.

Na maioria dos casos, era necessário uma submersão de alguns segundos na água, seguido por uma secagem em ambiente seco durante alguns dias. O grupo também prezou muito pela conscientização do uso de equipamento adequado para manusear as fotografias, que poderiam estar contaminadas por terem ficado em contato com a água suja e com a lama. A divulgação no Instagram rendeu 12 mil interações com o conteúdo, além de um alcance em mais de 400 mil contas diferentes por todo o Brasil.

Técnica do Núcleo de Antropologia Visual trabalha na recuperação de fotos atingidas pelas enchentes | Foto: Reprodução Instagram/@navisual.ufrgs

Foram muitos os gaúchos que perderam fotografias durante as enchentes. Aqueles que conseguiram recuperá-las com as dicas do Navisual ou com métodos alternativos salvaram também registros de momentos importantes de suas vidas. Caren e Rodrigo não tiveram essa sorte e terão que guardar boa parte das lembranças apenas na memória, junto com as da pior cheia que o Rio Grande do Sul já teve em sua história.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo Fabico/UFRGS

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