Games

O ódio e a impunidade

Estudos e relatos mostram o impacto devastador da toxicidade nos jogos online e a necessidade de ações efetivas para combater esse comportamento

Lucas Chassot
Narrativas em Detalhe

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Três a cada quatro jogadores já foram vítimas de assédio ao jogar uma partida online | Foto: Lalesh Aldarwish

No cenário contemporâneo dos jogos eletrônicos, um problema grave e persistente vem causando preocupação entre jogadores, desenvolvedores e pesquisadores: o discurso de ódio. Essa prática nociva, que inclui ofensas racistas, sexistas, homofóbicas e outras formas de discriminação, tem impactado negativamente a experiência de muitos jogadores e levantado questões sobre a responsabilidade das empresas e comunidades de jogos em lidar com esse fenômeno.

O aumento do discurso de ódio nos jogos online tem múltiplas facetas. Primeiramente, a anonimidade oferecida pelas plataformas permite que os jogadores expressem suas opiniões mais extremas sem medo de repercussões imediatas. Esse ambiente, combinado com a competição intensa e a cultura do trash talk (ato de provocar o adversário), cria um terreno fértil para o surgimento dessa toxicidade. Além disso, a falta de moderação eficaz e de punições adequadas contribui para a perpetuação desse comportamento.

“Hoje em dia não jogo mais CS. Uma das principais razões que me fez parar foi a toxicidade no jogo.”

Yago do Nascimento, Relações Públicas

Yago do Nascimento, fez sua dissertação de mestrado no programa de Pós-graduação em comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre o jogo Counter Strike (CS) em 2023. Na pesquisa ele explica a importância desse game especificamente: “O jogo é relevante para a inclusão digital, para o aprendizado técnico e para a formação humana, sobretudo entre os jovens, e marca a cultura dos videogames no país através do pioneirismo na institucionalização dos eSports, das aproximações com o futebol, da nostalgia, do espírito de ‘faça você mesmo’ (do it yourself) da comunidade e da performance de padrões de masculinidade hegemônica, sendo parte vital da expansão dos videogames no imaginário social brasileiro”.

Do ano passado para cá, no entanto, Yago deixou de jogar o CS, embora continue acompanhando jogos e participando de grupos e páginas. “Uma das principais razões que me fez parar foi a toxicidade e a quantidade de cheaters (hackers) no jogo. Sobre o primeiro, se você joga CS com frequência, vai presenciar muito abuso verbal, racismo, homofobia, preconceito com mulheres, com nordestinos, com argentinos e por aí vai”, diz ele.

Yago explica que muita gente prefere jogar em grupo por causa desses comportamentos tóxicos. O objetivo é criar um espaço seguro em que uma maioria possa se defender, reportar ou até kickar (expulsar) alguém do jogo caso ocorra algum caso de violência verbal. “No entanto, não creio que isso seja exclusivo do CS. Infelizmente acontece em praticamente todos os jogos competitivos online”, afirma. O relato de Yago é o reflexo de uma realidade enfrentada por muitos jogadores, que não apenas sofrem com a interferência em sua diversão, mas também pode ter impactos psicológicos profundos, o que leva muitos a abandonarem jogos que antes amavam.

O Impacto dos Dados e das Estatísticas

Jefferson “Bruxo”, de 19 anos morador de Sete Lagoas em Minas Gerais, é outro gamer que também desistiu de jogar devido ao discurso de ódio e reforça esta perspectiva: “Muito racismo e discurso de ódio sem punição, por isso parei de jogar.” O episódio que foi a gota d’água para que Jefferson abandonasse os games aconteceu durante uma partida online de um jogo chamado Paladins. Na ocasião ele passou a jogatina inteira sendo chamado de “macaquito” por uma dupla de argentinos que eram seus companheiros de equipe. Como Jefferson, muitos jogadores se sentem desamparados diante da falta de ações concretas para combater esses comportamentos.

Um estudo realizado pela Anti-Defamation League (ADL) em julho de 2019, com mais de mil pessoas nos Estados Unidos, revelou que a maioria dos entrevistados (74%) já foi vítima de algum tipo de assédio enquanto participava de uma partida online, sendo que 65% já passaram por algum tipo de assédio severo, incluindo ameaças físicas ou perseguição (stalking). Esses números evidenciam a necessidade urgente de medidas para combater o discurso de ódio nos jogos.

Essa questão não se limita às experiências individuais. Ela também levanta questões maiores sobre as dinâmicas de poder dentro das comunidades de jogos. Em muitos casos, as pessoas marginalizadas são as mais afetadas, sofrendo ataques que refletem preconceitos sociais mais amplos. Isso torna os espaços de jogos pouco inclusivos e acolhedores.

Algumas empresas já começaram a tomar medidas nesse sentido. A Riot Games, desenvolvedora de League of Legends, tem investido em tecnologias de inteligência artificial para detectar e punir comportamentos tóxicos em tempo real. Além disso, iniciativas como a “Fair Play Alliance”, uma coalizão de empresas de jogos comprometidas com a promoção de um ambiente de jogo saudável e justo, utilizam um fórum compartilhado para discutir os melhores meios de detectar e punir os jogadores que cometem crimes de ódio durante as partidas. A Fair Play Alliance ainda considera estender os banimentos desses jogadores para todos os jogos das empresas que fazem parte da união. O surgimento de organizações como essa mostram que há um movimento crescente em direção à mudança.

Como punir os culpados?

No Brasil, crimes de ódio ocorridos no ambiente virtual são passíveis de punição pela legislação vigente, mesmo sem uma lei específica que os aborde exclusivamente no contexto online. Na prática, as penalidades aplicadas são equivalentes às de crimes cometidos no mundo físico. Essa falta de distinção entre infrações virtuais e presenciais levanta um debate sobre a adequação das punições e a gravidade atribuída a cada situação.

Essa discussão não é novidade na internet, Suely Fragoso Ph.D. em Communication Studies pela University of Leeds e presidente do Chapter Brasil da Digital Games Research Association (DIGRA-Brasil) cita o artigo “A rape in Cyberspace” publicado por Julian Dibbel, como um exemplo de crime de ódio que aconteceu em ambiente virtual e gerou um debate onde os jogadores questionavam a seriedade de um ato cometido em um espaço onde, teoricamente, nada é real.

Tudo começou quando um usuário, sob o pseudônimo de Mr. Bungle, usou um programa para forçar outros avatares a realizar atos sexuais não consensuais em um jogo de RPG online. O incidente, descrito como um “estupro virtual”, abalou a comunidade, gerando revolta e levantando questões profundas sobre o significado de atos cometidos em ambientes virtuais. No calor do momento, dezenas de jogadores se reuniram para discutir o destino de Mr. Bungle. A sala virtual em que a reunião aconteceu, usualmente destinada a interações sociais triviais, tornou-se o palco de um debate acalorado sobre justiça e moralidade.

A crise foi resolvida quando um dos administradores do jogo decidiu unilateralmente apagar Mr. Bungle do sistema, o que trouxe alívio momentâneo à comunidade. Contudo, o fim de Mr. Bungle não foi definitivo. O usuário retornou, desta vez sob o nome de Dr. Jest, mostrando que a exclusão virtual não era uma solução infalível.

Assim como no caso de Mr. Bungle, a discussão referente à equivalência dos crimes presenciais e virtuais divide opiniões da comunidade gamer no Brasil, Suely acredita que é preciso haver uma diferenciação entre os dois casos: “Punitivismo não funciona sempre, também temos que pensar em que tipo de ser humano sairia da prisão nesses casos”. Já Yago do Nascimento adota um posicionamento totalmente diferente: “Claramente sim, a pena deve ser a mesma. Online e offline não são ambientes separados, eles são entrelaçados e dependentes.”

O discurso de ódio nos jogos eletrônicos revela desafios significativos para a comunidade e para a indústria gamer. Embora algumas empresas tenham começado a adotar tecnologias e iniciativas para lidar com comportamentos tóxicos, a questão permanece complexa e multifacetada. Diversos projetos de lei que visam regulamentar o ambiente virtual são discutidos pela classe política brasileira na tentativa de resolver o problema, mas enquanto esses projetos não são aprovados a internet segue sendo “terra de ninguém” e ambiente perfeito para praticar o discurso de ódio e sair impune.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo Fabico/UFRGS

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