Esporte

O futebol como um lugar de pertencimento

Entenda como o ato de torcer pode dominar nossos sentimentos, promovendo identificação e reações de amor e ódio

Letícia Porto
Narrativas em Detalhe

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O amor de torcedor e o amor romântico possuem grandes similaridades | Foto: Pixabay

O esporte, desde sua criação, possui o poder de socialização e pertencimento. No caso do futebol, torcedores de um mesmo time podem criar laços de forma tão rápida que, sem sequer se conhecerem, passam a ser melhores amigos. Por outro lado, a adoração por um clube tem um lado incondicional e irracional que pode virar uma fuga da realidade e até terminar em briga. Paixão e ódio fazem parte da vida de um torcedor, o que pode interferir nas suas relações pessoais, para o bem e para o mal.

“Cheguei eram nove horas da noite e saí às seis horas da tarde do outro dia, participei por amor, por paixão, sem ganhar nada em troca e sem querer nada em troca”

Miguel Globin, torcedor do Atlético Mineiro

Miguel Globin, de 21 anos, integrante da torcida organizada Galoucura, criada em 1984 em amor ao Clube Atlético Mineiro, diz que aos oito meses de idade foi levado pela sua mãe ao estádio pela primeira vez. “Segundo ela, a minha primeira palavra foi o famoso ‘Gaio’, que é Galo”, diz ele citando o apelido do clube mineiro. “Nunca tive interesse em torcer para outro time, mesmo eu e meu irmão sendo muito próximos, e ele torcendo para aquele outro time lá.” Miguel sequer fala o nome do rival Cruzeiro. “Inclusive brigamos muito por causa do futebol.”

Em 2021, Miguel participou da construção de um mosaico, estratégia comum das torcidas organizadas, que, com painéis individuais, quando juntos, formam uma imagem gigante no estádio, como grande quebra-cabeça para incentivar o time do coração. É uma manifestação artística que pode até contar a história do clube. O diferencial desse mosaico é que os torcedores não podiam ficar no estádio na hora do jogo. “Estávamos sem torcida no estádio por causa da pandemia, então surgiu a oportunidade desse mosaico, o mais marcante para mim, o mais lindo que já vi do Galo e o maior já feito no Mineirão”, recorda. A montagem do mosaico durou cerca de três dias, e Miguel trabalhou por 20 horas seguidas para ajudar na sua construção. “Cheguei eram nove horas da noite e saí às seis horas da tarde do outro dia, participei por amor, por paixão, sem ganhar nada em troca e sem querer nada em troca”, lembra Miguel.

Em 2021, durante a pandemia, a torcida organizada Galoucura montou um mosaico gigante nas arquibancadas para incentivar os jogadores do Atlético Mineiro em um jogo da Libertadores da América | Fotos: Thiago Cardoso

O fanatismo no nosso cérebro

Segundo a pesquisa “Amor tribal: as correlações neurais do engajamento passional em torcedores de futebol”, realizada por um grupo de pesquisadores da Universidade de Coimbra, o amor romântico e o amor de torcedor, apesar de não serem totalmente iguais, possuem similaridades assustadoras. Os dois atingem a área chamada de recompensa do cérebro, associada ao prazer e ao desejo. Também atingem as amígdalas cerebrais, ligadas à noção de fanatismo.

Em uma reportagem, o jornal O Globo divulgou uma pesquisa que utiliza a ressonância magnética para revelar como funciona o cérebro de um torcedor durante uma partida de futebol. Os pesquisadores recrutaram 43 voluntários saudáveis, do sexo masculino, torcedores de dois times de futebol chilenos, considerados arquirrivais. Os resultados mostraram que a atividade cerebral muda quando o time do torcedor ganha ou perde. Segundo a reportagem, quando a equipe vence, o sistema de recompensa no cérebro é ativado. Quando perde, a rede de mentalização pode ser ativada, levando o torcedor a um estado introspectivo. Isso pode atenuar a dor da perda, mas também pode aumentar a probabilidade de um comportamento violento.

Acompanhar um jogo do time querido eleva as vibrações celulares no organismo e catalisa a liberação de hormônios do bem estar, como a endorfina. Segundo o pós-doutor em química Rodrigo Webber, as endorfinas estão associadas aos estados de prazer, incluindo emoções provocadas pelo riso, amor, sexo e até mesmo comidas apetitosas. Segundo o pesquisador, as endorfinas provocam no corpo humano uma reação semelhante aos opióides, como a morfina. “A ligação de dois tipos de endorfinas no sistema nervoso central, gera supressão do gama-aminobutírico, que como resultado se tem o aumento de dopamina, que é o neurotransmissor associado ao prazer e à recompensa”, diz Rodrigo.

As emoções dos torcedores e seus níveis

Fazer parte de uma torcida desperta o sentimento de coletividade, como por exemplo, quando todos no estádio começam a cantar as mesmas músicas em coro. Nesses momentos, a identificação com o outro gera emoção. Muitas vezes, na hora do gol, pessoas se abraçam e até se beijam no rosto sem se conhecerem. A neuropsicóloga Natália Aydos diz que um torcedor pode variar de um nível primário, que são os torcedores mais ativos e aficionados, a um nível terciário, que seriam os torcedores com pouco interesse e que se satisfazem com informações a respeito de seu time ou atleta favorito. “O nível primário podemos chamar de fanatismo disfuncional, que pode caracterizar uma postura de intolerância, por vezes irracional e violenta. Muitas vezes pode estar associado a estados emocionais de raiva e agressividade, e, em casos mais graves, com delírios”, explica.

O fanatismo também pode afetar as funções executivas, que são o conjunto de habilidades que permitem definir metas, planejar e realizar as atividades. Para a neuropsicóloga, também são observadas outras formas de alterações, como déficits intelectuais que se estabelecem quando estados emocionais envolventes e contagiantes prejudicam o raciocínio, o julgamento crítico e processos decisórios. “Outras questões que o fanatismo pode dificultar são a argumentação e a interação social, pois estabelece rigidez nas capacidades de argumentação e pouca flexibilidade para compreender e lidar com opiniões contrárias”, explica.

A união no esporte

Torcer para um time de futebol provoca emoções, inclusive o ódio dos rivais, mas existem momentos em que outros ideais falam mais alto. Em 2020, um protesto contra o ex-presidente Jair Bolsonaro uniu torcedores do Corinthians e do Palmeiras na Avenida Paulista. Os times são arquirrivais, mas isso não impediu que centenas de torcedores dos dois times se unissem e bloqueassem a via para evitar a manifestação. Até o fanatismo por um time, que parece ultrapassar qualquer barreira pelo clubismo, tem limites e pode fazer com que grandes torcidas arquirrivais se unam pelo mesmo ideal.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo Fabico/UFRGS

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