Enchente no RS

O sucateamento do DMAE e sua contribuição para o desastre das enchentes

Prefeitura vetou a contratação de servidores e gastos em manutenção, com a intenção de privatizá-lo, aponta relatório do TCE

Ernesto Miguel Souza
Narrativas em Detalhe

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Estação de Tratamento de Esgoto Navegantes, em Porto Alegre | Foto: Divulgação/DMAE

Durante as enchentes no Rio Grande do Sul em maio, o governador do Estado, Eduardo Leite, disse que “não é hora de procurar culpados”. Porém, uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) e depoimentos de funcionários do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE) mostram que, pelo menos na esfera do município de Porto Alegre, houve sim ingerência do governo no desastre, devido a medidas que tiraram capacidade operacional do DMAE e da infraestrutura pluvial.

O relatório publicado pelo TCE, que investigou a gestão do ex-prefeito de Porto Alegre Nelson Marchezan Júnior (PSDB) entre 2017 e 2021, revelou interferência na contratação de funcionários para o DMAE durante este período. Segundo o documento, Marchezan teria se negado a contratar funcionários indispensáveis para a prestação de serviço e causado prejuízos ao órgão, levando a “problemas operacionais e perdas incrementais de faturamento da Autarquia estimados entre os anos de 2016 e 2019 na ordem de R$45 milhões”.

Essa perda foi apurada a partir da suspensão do prêmio de desempenho de tratamento de esgoto. Até 2016, o DMAE recebia uma premiação milionária concedida pelo prêmio de eficiência no tratamento de esgotos. Entre 2017 e 2020, a prefeitura perdeu esse benefício. Para os auditores, Marchezan e os gestores devem ser responsabilizados.

O problema, no entanto, vai além da gestão Marchezan. Se o ex-prefeito minou a contratação de funcionários para o DMAE, o governo Sebastião Melo, atual prefeito de Porto Alegre, não fez a manutenção necessária na infraestrutura pública. É o que afirma o engenheiro e ex-diretor do DMAE Augusto Damiani, em um vídeo postado nas redes sociais. No vídeo, Damiani diz que, desde 2018, existem comportas quebradas que fazem com que a água do rio volte para dentro da cidade, independentemente da casa de bomba. Damiani é categórico: “O grande culpado? A prefeitura! Que é o prefeito que manda! Que não deixa o DMAE contratar os seus funcionários, faltam mais de 2 mil servidores, o DMAE está operando com um terço de sua capacidade operacional”.

A informação do baixo número de funcionários se confirma a partir de consulta ao Portal da Transparência de Porto Alegre. Os dados mostram que, em abril de 2024, o DMAE tinha apenas 1.047 de um total de 3.632 cargos preenchidos. Também revelam que a prefeitura não investiu nenhum dinheiro para a proteção contra enchentes no ano de 2023.

Print do Portal da Transparência mostrando o valor investido em “Melhoria do sistema de proteção contra cheias”, destacado em amarelo.

O governo estadual também tem responsabilidade pelas enchentes. Como o próprio governador Eduardo Leite fez questão de propagandear em um vídeo bastante resgatado por internautas nas redes sociais, uma concessão administrativa vendeu o Cais Mauá, com o objetivo de “revitalizá-lo”. Tal projeto visava derrubar o trecho do muro entre a Usina do Gasômetro e a Rodoviária de Porto Alegre.

O muro foi construído após a enchente histórica de 1941, possuindo 2,65 quilômetros de extensão e 14 comportas que, se estivessem com a manutenção em dia, conteriam uma cheia de até 6 metros.

Águas do Guaíba inundando o Cais Mauá nas enchentes de maio | Foto: Reprodução/CEIC Porto Alegre

Além desse projeto, outras ações do governo estadual também contribuíram para o desastre, entre elas a desregulamentação, no primeiro mandato de Eduardo Leite, do Código Ambiental do Estado. Criado por José Lutzenberger, fundador da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), o código, considerado referência em proteção ambiental, teve 480 pontos alterados ou cortados, ato considerado um retrocesso por parte de ambientalistas. Em uma nota técnica, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) disse que o projeto novo está cheio de erros, imprecisões e conceituações confusas e revoga artigos como o número 28, que proíbe queimadas em floresta nativa, ou o 35, que proíbe o corte de espécies ameaçadas de extinção.

Outro ponto que o Código Ambiental sempre estabeleceu é a legislação sobre a preservação das margens de corpos d’água que, entre outras regras, diz qual é a distância permitida para construir perto dos mananciais. A regra estipula diferentes distâncias para cada tipo: só é permitido construir perto de rios a partir de 500 metros de suas margens; e para lagos, a distância é de 30 metros.

Coincidentemente, o governo do estado, a partir dos anos 90, passou a chamar o Guaíba de lago, permitindo a construção de prédios em suas margens. Embora a classificação do Guaíba como lago esteja cientificamente correta, permitir que se construa tão perto de suas margens se mostra extremamente nocivo. Por isso, vários especialistas em geociência continuam a defender que a lei deveria mudar ou criar uma nova especificamente para o caso do Guaíba.

Algo que com toda a certeza iria contra os interesses de grupos empresariais ligados à especulação imobiliária, que estão entre os financiadores de vários políticos na cidade. De acordo com um levantamento do economista André Augustin, pesquisador do portal Observatório das Metrópoles, descobriu que 8 dos 14 vereadores eleitos foram financiados por imobiliárias.

O capital, como sempre, tendo prioridade sobre a vida humana.

Reportagem produzida para disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo da Fabico/UFRGS

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