Cultura

Pintando fora das linhas

Arte gerada por inteligência artificial se alastra pela capital gaúcha e evoca debate sobre nova forma de expressão

Diogo Duarte
Narrativas em Detalhe

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Na zona central da cidade, oito painéis constituem a exposição POAi | Foto: Diogo Duarte

N a avenida Mauá, uma das mais movimentadas do Centro Histórico de Porto Alegre, painéis de cerca de cinco metros de extensão estampam as paredes do muro que separa a cidade das águas do Guaíba. As janelas quebradas e a estrutura desgastada dos armazéns situados no cais contrastam com as artes coloridas retratadas pelas telas. Cenas como a de uma imigrante portuguesa descendo de skate nas curvas do prédio do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF) — construção icônica da cidade curvada em forma de ‘C’ — ou a de um clássico Gre-Nal acontecendo em um campo de erva-mate, trazem a temática gaúcha de uma maneira, no mínimo, singular.

No entanto, há algo ainda mais surpreendente sobre essas imagens. Elas não foram pintadas, grafitadas ou esculpidas. Pode-se dizer que quem as criou nunca tomou chimarrão, caminhou na Orla do Guaíba ou visitou a Casa de Cultura Mario Quintana. Ao ler o pequeno texto atrelado a uma das artes, intitulado “POAi”, quem passa por ali descobre a ferramenta utilizada pelo paulista Guilherme Caneschi para criar as ilustrações: a inteligência artificial.

“Estamos falando de uma grande inevitabilidade”

Munir Klamt, professor da UFRGS e doutor em Artes Visuais

A exposição é uma das fases do “Novo Muro da Mauá”, projeto da prefeitura em parceria com empresas de mídia. Segundo a Sinergy, uma das entidades responsáveis, o POAi “mergulha nas raízes, cultura e história de Porto Alegre, revelando-a de maneira inédita”. Ainda de acordo com a empresa, o lançamento, instalado em março de 2024, é “um marco em que a arte e a tecnologia se fundem para redefinir a vivência urbana”. Quando perguntadas sobre possível participação no empreendimento, tanto a Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (Smcec) como a Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac-RS) negaram qualquer envolvimento com o projeto.

Não é novidade que a inteligência artificial está se espalhando pelas mais diferentes esferas da vida cotidiana. Em 2023, Porto Alegre se tornou a primeira capital brasileira a aprovar um projeto de lei escrito pelo ChatGPT, em um movimento que demonstra como poucos são os limites quando o assunto é IA. Mas não há resposta fácil para o quanto e se a produção cultural — que ao longo da história exerceu papel definitivo para mudanças sociais e políticas, justamente por instigar novas formas de pensar — pode se beneficiar dessa ferramenta.

Arte com intenção

“Para mim, o trabalho feito a mão, de um humano para o outro, é o que tem maior poder de tocar o próximo”

Maria Clara Kaefer, artista

Desde criança, a estudante de arquitetura Maria Clara Kaefer tinha o desejo de pintar murais. Durante a pandemia, a jovem de 20 anos passou a postar suas telas nas redes sociais e expor em feiras no bairro Bom Fim. À medida que ia conquistando seu espaço no cenário da arte na capital, finalmente teve a oportunidade de realizar aquilo que sempre quis: foi contratada para pintar a parede de uma garagem na avenida Siqueira Campos.

Entre pinceladas brancas e azuis, Maria Clara conta que o que a fascina no muralismo é o quão acessível ele pode ser. “[O muralismo] não é como um quadro dentro de um museu, que muitas vezes a pessoa precisa comprar um ingresso para poder ver […] a arte nas paredes invade o nosso olhar e não depende de uma escolha”, afirma.

Kaefer pinta uma das paredes da Garagem Ceres, no Centro da capital, em agosto de 2021 | Foto: Arquivo Pessoal

Ela ainda ressalta que produzir arte nos espaços urbanos — especialmente em um local tão importante para a cidade como o Muro da Mauá — é um privilégio, e que a arte produzida por tecnologia e assinada por alguém que não é gaúcho pode não ser a melhor escolha quando o objetivo é valorizar a nossa cultura. “Acho triste que não houve a valorização de um artista local […] ser artista também é um expediente, custa dinheiro”, assinala.

Para ela, a inteligência artificial é um recurso válido, mas a arte feita de uma pessoa para a outra dialoga de maneira mais profunda com aqueles que a contemplam. “Para mim, o trabalho feito a mão, de um humano para o outro, é o que tem maior poder de tocar o próximo”, conclui.

O errado que dá certo

O professor do Instituto de Artes da UFRGS e doutor em Artes Visuais Munir Klamt admite que é, de certo modo, fascinado pelas imagens produzidas por IA. Ele relata que os erros, deformações e imprecisões que, muitas vezes, aparecem nesse tipo de manifestação dificilmente são encontrados no trabalho de artistas, e que aprecia esse novo olhar sobre aquilo que já conhecemos.

O painel “Fundação: Chegada dos Açorianos” reúne deformações e erros históricos facilmente verificáveis | Foto: Guilherme Caneschi

Esses ‘erros’ apontados por Munir são facilmente verificáveis nos painéis que cercam parte da Orla do Guaíba. Na imagem acima, por exemplo, algumas pessoas aparecem com o rosto achatado, e um tripulante aparenta possuir três braços. Além disso, a bandeira de Portugal que aparece no navio só foi adotada em 1910, cerca de 150 anos após a chegada dos açorianos a Porto Alegre.

“Na tecnologia, tudo que é passado costuma ser pior do que o que é mais novo: um telefone, computador de agora é melhor. Em arte, essa lógica não existe. Um desenho de Leonardo da Vinci, pinturas rupestres em cavernas e o trabalho de um artista contemporâneo acontecem simultaneamente”, diz o professor.

Ainda segundo ele, a IA generativa carece de reflexão profunda e tende a tentar reproduzir o senso comum de maneira ‘clichê’. Mesmo assim, a ferramenta é válida naquilo que aponta como principal função do artista: tentar entender e sintetizar o seu tempo.

“As tecnologias são como uma catraca. Quando passamos por uma catraca, ela não volta para trás e ninguém pode retornar ao tempo em que ela não existia […] estamos falando de uma grande inevitabilidade”, completa.

Tecnologia como ferramenta

Da mesma forma que seria exagerado condená-la como uma grande ameaça à arte “de boa qualidade”, é também incoerente afirmar que a POAi cumpre sua intenção de valorizar a cultura porto-alegrense. De todo modo, é consenso que a inteligência artificial tende a se tornar cada vez mais presente nas próximas décadas. Formas de utilizá-la de maneira que contribua para a sociedade, sem rebaixar os artistas, devem fazer parte da agenda de uma cidade que almeja a inovação.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da Fabico/UFRGS.

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