Literatura

Por e para mulheres

Laura C. Bender
Narrativas em Detalhe
7 min read1 day ago

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Entenda por que as fanfictions são um fenômeno entre o público feminino e como promovem a identificação e o crescimento de leitoras e escritoras

Foto: Freepik

A s fanfictions, ou só fanfics, vieram para ficar. Histórias de ficção, elas se caracterizam pelo uso de personagens ou artistas já existentes em outro contexto e são um fenômeno digital. Além de serem compostas pelo texto, também podem conter uma capa, sinopse, tags e receber comentários de leitores mundo afora. Desde o início de sua popularização em 1960, as fanfics chamam atenção de um público em especial: as mulheres.

Segundo pesquisa feita em 2022 pelo projeto “Fanfiqueiras” no Fanfic Obsession, 98,2% dos 283 leitores entrevistados se identificavam pelo gênero feminino. O resultado comprova a hegemonia das mulheres nesse universo, já que são elas a maioria que lê , escreve e divulga essas obras.

Uma nova beatlemania

Quando as fanfics se popularizaram nos anos 1960 a partir de Star Trek, os olhos das fãs se voltaram para essa nova forma de ver seus ídolos ou personagens favoritos na literatura. Assim, as fanfictions se tornaram um verdadeiro fenômeno. O cenário se expandiu graças à internet, que proporcionou a criação de plataformas digitais voltadas à publicação e leitura das fanfics. Spirit, Nyah! Fanfiction, Ao3, Fanfic Obsession e principalmente o Wattpad, que já contava com 70 milhões de usuários e 565 milhões de histórias publicadas em 2019, são exemplos dessas plataformas.

Contudo, perante a legislação brasileira de Direitos Autorais, as fanfics e sua originalidade ainda são motivo de controvérsia, visto que não há uma jurisdição específica para tratar do assunto. Ainda assim, elas são protegidas pela lei n.º 9.610/98, pois são consideradas obras literárias, e as autoras de fanfictions, embora enfrentem limitações, também são protegidas pela lei.

Principais plataformas de fanfics: Ao3, Wattpad, Fanfic Obsession, Spirit, Nyah! Fanfiction | Foto: Reprodução

Para as mulheres, que possuem um histórico turbulento de opressão no campo da literatura, as fanfics se tornaram um alento ao transgredirem regras já estabelecidas no meio. Afinal, quem disse que um personagem, ou até mesmo um artista, não pode enfrentar situações, dilemas e amores inventados para que se torne mais próximo da realidade de suas fãs?

Luíza Simões de Oliveira, revisora de textos de 29 anos e autora da dissertação de mestrado “Um questionamento ao caráter interpretativo da fanfiction”, feita no Programa de Pós-Graduação de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compara o sucesso das fanfics com outro acontecimento: a beatlemania.

“Os Beatles começaram a fazer sucesso em um momento que eles só tinham fãs adolescentes, e a maioria era de mulheres jovens. Elas entravam naquela categoria de histeria, mas quando relatam o motivo de gostarem da banda, era porque esse ato de ser fã estava proporcionando uma visão atípica do universo particular delas. E com a fanfic acontece a mesma coisa”, diz Luíza.

Ao consumirem as fanfictions, as fãs encontram uma forma de expressar seu universo particular, ou seja, seus gostos, enfrentando o preconceito que as rodeia ao criarem algo delas e para elas. Elas podem gostar de algo simplesmente porque gostam e não precisam se justificar — ou serem consideradas histéricas — por isso.

Fãs durante visita dos Beatles em Toronto caracterizam o que era a beatlemania | Foto: Fox Photos/Getty Images

Jungkook no ônibus

Além de serem uma forma de narrativa intertextual e transgressora, as fanfics também são muito introspectivas. Quando interagem com a fanfiction, as leitoras e escritoras entram em contato com uma interpretação diferente de seu personagem ou artista favorito, seja porque seu interesse amoroso é inusitado, seja porque novas nuances de sua personalidade estão sendo exploradas ou modificadas.

Essa nova interpretação marca o processo de “abrir uma possibilidade de si”, como explica Luíza. “A fanfic lida com traumas e, ao fazer isso, ela está sendo introspectiva de uma forma que a literatura mundial, por vezes masculina, não é conhecida por ser.” Isto é, as fanfictions proporcionam para as mulheres uma nova forma de autoconhecimento, visto que essas obras destacam questões que são, por vezes, negligenciadas na literatura convencional.

Melissa Barreto, de 18 anos, professora de educação infantil, também tem uma relação próxima com as fanfics. Em seu corpo, a frase “suck it and see” (pague para ver) está tatuada em homenagem a uma fanfic que ela leu na adolescência, chamada Poor Alfie (Pobre Alfie), porque um dos personagens principais da história — Chanyeol — também tinha essa tatuagem.

“Eu li quando tinha 15, 16 anos e eu me apaixonei pela fanfic. Um dos personagens principais, no caso o Baekhyun, o jeito que ele via o mundo era exatamente o mesmo jeito que eu via o mundo na época, especialmente na questão dos relacionamentos”, diz Melissa. De acordo com ela, seus pais tiveram um relacionamento complicado e hoje estão separados. “Então, para mim, essa questão sempre foi um tabu, porque eu nunca tinha visto um relacionamento bom na minha vida, mas nas fanfics eu vejo relacionamentos maravilhosos”, conta.

Fanfic Poor Alfie, de jonniedarko, publicada na plataforma Wattpad | Foto: Reprodução

A identificação com um personagem ou artista fez com que a procura pelas fanfics por parte das mulheres aumentasse, mas também há outro elemento: a maior parte das fanfics se enquadra no gênero de romance, como Poor Alfie. Julia Passoello, escritora gaúcha de 19 anos que começou sua trajetória escrevendo fanfictions, acredita que 90% das fanfics são de romance. “E esse já é um gênero mais consumido por mulheres”, afirma.

Hoje grande parte dos fandoms — comunidades de fãs — possui fanfics com seus personagens e artistas preferidos. E nenhum é tão grande quanto o fandom do gênero k-pop, especialmente as do grupo sul-coreano BTS (Bangtan Boys). Em 2024, já foram publicadas mais de 160 mil histórias do Bangtan na plataforma Spirit.

“É tão legal ver personagens ou artistas como os do BTS vivendo uma vida de CLT como eu”, brinca Melissa. “É tão bom ver, por exemplo, o Jungkook correndo para pegar um ônibus como eu corro para pegar o meu. Eu me divirto ao ler sobre um universo onde uma pessoa que eu gosto muito, que ganha milhões e que com certeza não pega mais transporte público na vida, está correndo atrás de um ônibus.”

Fãs durante show do BTS no Central Park | Foto: Getty Images

Ladies Whistledown contemporâneas

Outro fator que possibilita a ascensão das fanfics entre o público feminino é o anonimato, já que tanto as escritoras quanto as leitoras se comunicam nas plataformas através de pseudônimos. “O anonimato é uma forma de autopreservação”, diz Melissa. Para ela, o ato de não revelar o nome cria um espaço seguro para as mulheres, que conseguem se expressar virtualmente e preservar sua integridade física e mental ao evitarem ataques virtuais — infelizmente comuns na internet.

“A fanfic é um meio de escrever o que a gente pensa, podendo se esconder atrás de uma foto aleatória, um nome aleatório”

Julia Passoello, escritora gaúcha

Os pseudônimos também oferecem, principalmente às escritoras de fanfictions, a possibilidade de crescimento profissional. Muitas delas já conseguiram o feito de transformarem suas fanfics em livros de sucesso. Um exemplo é After, fanfic de Anna Todd baseada na One Direction — boyband pop — que somou mais de dois bilhões de leituras no Wattpad. Quando se tornou livro, After vendeu cerca de 15 milhões de cópias ao redor do mundo.

Julia Passoello também escrevia fanfics com um pseudônimo. “A fanfic é um meio de escrever o que a gente pensa, podendo se esconder atrás de uma foto aleatória, um nome aleatório”, diz.

Além de Julia e Melissa, Luíza também comenta sobre anonimato, concordando que ele confere um caráter de liberdade para as mulheres. “A gente vê uma versão um pouco mais atual disso na série de Bridgerton com a Penelope”, comenta, referindo-se a personagem Penelope Featherington que, sob o pseudônimo de Lady Whistledown, escreve folhetins na série Bridgerton, da Netflix.

Penelope Featherington em Bridgerton | Foto: Reprodução Netflix

Assim como os folhetins de Lady Whistledown se tornaram um grande sucesso na série, as fanfics se popularizaram na vida real. Essas obras possibilitam que as mulheres explorem a si mesmas e aos seus interesses: “Eu leio fanfics em que as mulheres são presidentes, ou em que o trabalho de professoras é reconhecido”, comenta Melissa. “Existem fanfics muito bem escritas, que são ótimas”, reitera Julia. Por isso, a tendência é que elas sejam cada vez mais reconhecidas.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo Fabico/UFRGS

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