Reconstrução do RS

Um futuro incerto

Gabriel Vieira
Narrativas em Detalhe
6 min read2 days ago

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Solidariedade auxilia milhares de pessoas que estão na tentativa de retomar suas vidas no Bairro Sarandi após as enchentes de maio

Algumas das residências seguem com as marcas da tragédia | Foto: Gabriel Vieira

Próximo de completar quatro meses do início das enchentes que atingiram grande parte do Rio Grande do Sul, moradores do Bairro Sarandi, na Zona Norte de Porto Alegre, ainda tentam reconstruir seus lares destruídos pelas águas de maio. Cerca de 26 mil pessoas foram atingidas e tentam retornar à normalidade.

O bairro fica em uma região de banhado, às margens do Rio Gravataí, um dos afluentes do Guaíba. A região inundou por uma série de fatores: no dique localizado atrás da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS), as águas extravasaram por cima da estrutura. No outro extremo do bairro, na área da Vila Nova Brasília, um outro dique rompeu em três pontos diferentes e, por consequência, aquela região foi a mais atingida do bairro. As quatro casas de bombas do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), responsáveis por bombear a água da chuva para os canais de esgoto, também foram afetadas e pararam de funcionar. Isso resultou em mais de dois metros de altura de água em regiões que nunca haviam alagado.

As águas que se acumularam no interior do bairro demoraram pelo menos 30 dias para escoar em sua totalidade. Por uma falha de comunicação entre a prefeitura e a comunidade, a maioria dos moradores teve que sair de suas casas às pressas, levando poucos pertences.

Ana Patrícia Bianco é moradora do bairro há 20 anos e está há 16 semanas fora de casa. “A nossa saída foi inesperada, foi um grande susto. Estamos fora de casa desde o dia 4 de maio”, conta Ana, que morava em um apartamento térreo junto a sua mãe, marido e seus dois filhos. “Ainda estamos fora de casa, porque teremos que reformar todo apartamento para ficar habitável”.

No prédio da moradora, a água chegou a 1 metro e meio de altura. Mesmo salvando a maioria dos seus móveis em apartamentos de vizinhos e nos corredores do prédio, a professora aposentada demonstra estar apreensiva. Com receio de uma nova enchente, ela acredita que não voltará para onde viveu por duas décadas. “Não estamos pensando em retornar, é quase certo que vamos nos mudar”, conclui.

Além de Ana Patrícia, outros moradores relatam dificuldades na volta aos seus lares. Márcia Tavares, que participa da Biblioteca Girassol, localizada no espaço Conceito Arte, na Praça Rolim Oliveira, também ficou semanas fora de casa e perdeu tudo. “Agora eu estou no segundo andar que era da minha mãe e que é semi-mobiliado, mas se fosse para voltar para a minha casa, eu não teria voltado até hoje. Está tudo úmido, as paredes estão destruídas, perdi 100% dos móveis”, diz Márcia. O estrago também foi grande na casa dos pais de Priscila de Queiroz, diretora da Biblioteca Girassol. “Mesmo tendo uma casa de dois andares, meus pais perderam tudo. Eles voltaram com a casa vazia, bem naquela semana de frio, porque eles estavam ansiosos”.

Solidariedade e reconstrução

Por conta da ansiedade de retornar ao seu lar, muitos moradores retornaram para suas casas precárias. Também afetados, coletivos e associações de moradores decidiram tomar à frente na distribuição das doações. Agora, na fase de reconstrução das casas, do comércio e da vida do bairro, o trabalho desses grupos comunitários também está sendo imprescindível, e a solidariedade é imensa. Tiago Santos é diretor-executivo do Coletivo Abrigo, que prestou ajuda aos moradores do bairro por meio de doações e auxílio na limpeza das casas. Desde o início da calamidade, foram dezenas de ações de assistência social prestadas à população do Sarandi. De acordo com Santos, o trabalho já feito anteriormente pôde ser amplificado. “A gente perdeu o contato com as famílias que conhecíamos. Aí começamos a conhecer famílias novas”.

O Coletivo, que atende a demandas sociais da região desde 2015, organizou “brigadas de limpeza” logo que os primeiros moradores começaram a retornar. “Em um primeiro momento, formamos as brigadas porque estávamos no auge do voluntariado. A gente conseguia formar dois, três grupos que se dividiam e iam às casas para limpar”, relata.

Com a diminuição do número de voluntários, a ação durou pouco tempo. O diretor relata que os grupos enfrentaram dificuldades para limpar as casas. “Não era simplesmente só montar uma equipe, escolher uma casa e ir limpar em um dia. Não era só uma faxina, igual um dia comum. Eram muitos dias de limpeza, às vezes eram semanas limpando a mesma casa. A gente selecionou pessoas que precisavam mais. Escolhemos idosos e pessoas que moravam sozinhas”, finaliza.

“Eram muitos dias de limpeza, às vezes eram semanas limpando a mesma casa”
Tiago Santos, diretor-executivo do Coletivo Abrigo

Assim como o Coletivo Abrigo, a Biblioteca Girassol, após perder praticamente todos os seus livros, recebeu diversas doações especialmente de apoiadores e de instituições como o Instituto Ling e o Museu do Hip Hop. Com esses recursos doados, foi possível ajudar escolas parceiras. “A gente ajudou o CRAS, três escolinhas de educação infantil e uma escola municipal, cinco instituições ao todo. Doamos R$ 500 para cada uma comprar kits de limpeza, material escolar, livros ou outras necessidades urgentes”, diz Joseane Marcílio, uma das mediadoras de leituras da biblioteca. Apenas agora o grupo planeja a reforma do espaço de leitura. “Após a limpeza no nosso espaço, fizemos uma lista de coisas que precisamos comprar, já compramos alguns livros, estantes, mas ainda estamos no começo”, finaliza.

Um dos poucos livros que resistiram a enchente | Foto: Gabriel Vieira

Com as escolas sem aulas presenciais, um dos principais projetos do grupo também está paralisado na Girassol. Segundo Priscila Macedo, os trabalhos não têm previsão de retorno. “Esse trabalho de leitura nas escolas não tem previsão, assim como o retorno das escolas não tem. […] Quando voltar, vamos fazer o trabalho de ler para as turminhas”, relata Priscila. “Isso estava sendo ampliado, a gente estava em um bom momento de projetos e agora a enchente afetou tudo”, lamenta Márcia Tavares, mediadora de leitura da biblioteca.

O bairro se transformou em um grande canteiro de obras

Espaço que antes havia uma residência e agora tem apenas destroços | Foto: Gabriel Vieira

Ao circular pelas ruas do Sarandi, avistam-se muitos comércios tradicionais e residências com placas de “vende-se” ou “aluga-se”. Algumas casas não resistiram ficar semanas embaixo d’água e acabaram desmoronando. Diversas ruas ainda têm muitos entulhos espalhados e casas em processo de reforma quase quatro meses após as enchentes. “Depois da limpeza tem a estrutura, as paredes, as portas, as janelas. A gente vê muito canteiro de obra pelo bairro”, comenta Everton Tavares, membro da Biblioteca Girassol e morador do bairro.

Segundo a prefeitura, foram feitos reparos em ambos os diques ainda no mês de maio. Já em agosto, o órgão municipal anunciou mais obras para reforçar as estruturas, sob responsabilidade do DMAE. A restauração das estruturas faz parte do Plano Estratégico de Reconstrução de Porto Alegre e a previsão de conclusão é de seis meses a partir do início, marcado para o final de agosto. Sobre as casas de bombas, o DMAE contratou obras para reforçar as estruturas das Estações de Bombeamento de Águas Pluviais (EBAPs). Pelo menos 48 casas localizadas sobre a estrutura do dique do Sarandi tiveram que ser destruídas em junho. Neste mês, o governo federal e estadual entregaram 1290 moradias para moradores atingidos e se cadastraram nos programas de reconstrução.

Ao conversar com os moradores, existe um sentimento em comum: a insegurança. Após o colapso dos sistemas de proteção, quem mora no bairro espera que uma nova enchente não ocorra novamente. “Nessa proporção, acho que pode ocorrer o efeito dominó, chover por um mês direto e acontecer de novo […] O sentimento que fica é que pode acontecer por estar tudo errado na questão ambiental, e aqui é uma região que sempre vai ter muita chuva”, preocupa-se Gabriel Silveira, membro da Biblioteca Girassol.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo Fabico/UFRGS

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