Cidades em carne viva
Existem sensações e emoções impossíveis de serem descritas em palavras — ou, ao menos, nosso cérebro se recusa inconscientemente a traduzi-las para o mundo material, uma vez que senti-las é obviamente muito mais prazeroso. Sensações e emoções difíceis de falar sobre sem permitir ao interlocutor um vislumbre daquele quê de loucura que todos nós temos, ou deveríamos ter.
É assim que introduzo a minha relação com o que gosto de chamar de minhas “cidades em carne viva”. A eterna resposta para a declaração em voz alta de amor por algum lugar é sempre uma enorme listagem de defeitos inegáveis: a segurança que falta, o clima que não agrada, a cultura controversa. Entretantos e mais entretantos, nenhum deles sem razão de existir. Entretanto, e esse também não sem razão de existir, assim como o amor romântico e o ideal de perfeição não existem em nenhum casal com os pés nessa realidade, também não há nesse planeta endereço que atenda a todos os requisitos possivelmente listáveis para o que chamaríamos de “lugar perfeito”.
Assim, se erguem contra os horizontes as cidades em carne viva: lugares que podem ser sujos, ou limpos; inseguros, ou não; desconhecidos, ou turísticos. Lugares que podem ser muito, podem ser tudo, desde que tenham apenas um detalhe em si: vida.
É nesse ponto que adentramos o terreno das sensações intraduzíveis. Por vida, não falo apenas das pessoas nas ruas, dos carros e dos sons. Tampouco diz respeito a qualquer outra informação técnica, como tamanho da população, ou de seus prédios. Uma cidade viva apenas se sente e, por mais romântica que essa ideia possa parecer à primeira vista, reconhecer uma é relativamente fácil: uma cidade em carne viva é todo e qualquer lugar que nos faça sentir vivos também, que nos lembre com força que, nessa vida, temos propósito, desejos, sonhos; que nos faça sentir vontade de estar aqui, nesse planeta, nessa dimensão.
Nós mesmos estamos em carne viva o tempo todo: estar vivo é prazeroso, mas também dói. Somos seres muitas vezes empáticos, mas passíveis de erros. Talvez bons, com um fraco para as tentações. Eliminada a necessidade de classificar nosso caráter e existência nos moldes da ética e da moral, sobra apenas a nossa carne e o que de mágico nela habita. Despidos das conveniências, dos deveres e das imposições, apenas somos.
Cidades em carne viva apenas são. Com todos os seus problemas, dramas e histórias. Talvez algumas o sejam apenas para mim, você com certeza encontrará por essa vida cidades que o são apenas para ti. O que importa, de qualquer forma, é que elas existem — e eu espero que cada ser humano que habita esse planeta encontre pelo menos uma das suas; um pedaço de suas almas materializados em forma de prédios, ruas e praças. Almas gêmeas tangíveis e compartilhadas. Lugares onde é possível ser com mais prazer do que agonia.
Encontros cósmicos com lugares que façam a nossa carne arder.