Longe

Diúlit Bernart Oldoni
Nasci pra ser cidade
3 min readApr 8, 2019

Filha saudável de uma infância vivida entre videogames e livros, cresci crente de que alguns lugares — belos e mágicos — existiam apenas na minha fantasia. Filha saudável também de uma criação rígida e ceifadora de asas, atravessei ano após ano com os pés no chão, confortável entre grades metafóricas e a certeza de que a sensação de estar viva era restrita aos heróis e heroínas das minhas histórias favoritas.

Me disseram, alguns pares de anos atrás, que eu possuía uma “alma livre, mas presa em uma gaiola”. Ano passado, recebi o elogio de que eu era uma pessoa “muito livre”. Pouco tempo separa essas duas percepções tão distintas, e ambas estavam certas. Eu poderia passar dias pensando em exemplos. Tive uma alma livre alimentada pelas imagens minúsculas nos livros de geografia e pelas histórias de quem não existia na vida real, ao mesmo tempo em que as grades de uma gaiola eram construídas quando me diziam, lá pelos 10 anos, que era estranho eu não brincar de escritório porque isso demonstrava rebeldia e falta de preocupação com o futuro; ou quando, talvez aos 7, eu carreguei hematomas nas pernas como uma “lição” por ter brincado com meninos na escola — “eles só querem se aproveitar e, se conseguirem, a culpa vai ser tua”.

Existem vários modos de manter a cabeça nas nuvens, assim como existem várias maneiras de construir uma gaiola ao redor de alguém e de si. Ambos exercem influência sobre a cabeça de alguém, bem como as mais inesperadas consequências.

Longe e em movimento eu me sinto livre. Esse é um “longe” sem complemento. Não é longe de casa, do trabalho, nem de mim. Longe, apenas. Talvez essa palavra seja melhor aproveitada como um estado de espírito do que como uma forma de medir a distância entre dois pontos.

É longe que eu consigo acreditar que há algo de mágico na vida. É nesse estado que eu sou eu mesma com mais verdade, menos filtros.

Eu estive longe quando a quilômetros e mais quilômetros de onde eu escrevo agora, eu chorei e disse que nunca mais iria me permitir ser acomodada, por mim mesma ou pelos outros, depois de saber que o mundo tem tanto a mostrar, ou quando eu joguei promessas de retorno para um farol, as repetindo como um mantra enquanto ele se tornava menor e menor no oceano, até sumir no horizonte. Também estive longe quando corvos, corujas e riachos eram os únicos produtores de ruído em uma cidade que, até então, eu poderia jurar que só existia em um globo de neve.

Assim como também estive longe aqui mesmo, nas cidades-de-sempre, quando tive um Carnaval feliz, ou quando chorei lendo Balzac na cama, embaixo do cobertor e sob meu clima preferido de ficar em casa — vento forte e garoas ocasionais. Eu estou longe quase todos os dias, quando no caminho para casa, da janela do ônibus, eu consigo ver um sem-fim de colinas no horizonte, até que as últimas pareçam azuis.

O mundo me encanta e eu ainda acho doce cada uma das minhas fantasias — nunca neguei. Talvez a distância, a física, seja o modo que eu encontrei para me manter livre, talvez eu sempre tenha gostado da aventura, mas nunca tivesse a experimentado. Talvez seja o gatilho que o meu cérebro precisa para entender que minhas fantasias são reais, que eu posso viver as experiências que eu almejo e nos lugares que me brilham os olhos.

É por isso que eu anseio pelas estradas, pelas nuvens, pelas histórias. Eu anseio pela distância física e pela mental; eu anseio estar longe.

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Eu não esqueço do dia que fui forçada a olhar para a minha alma livre e engaiolada por que nesse dia eu chorei — e odiei a mim, ao mundo e à vida. Mantenho mais viva ainda a memória do dia que me admiraram meus esforços de liberdade.

Eu nasci livre, eu cresci livre e eu almejo ser mais livre ainda.

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