O que o mundo faz com as crianças incríveis?
Eu não acordei um dia e resolvi que queria ir embora. Assim, eu jamais vou poder culpar uma determinada versão de mim, ou alguma fase da minha vida por me fazer tomar as decisões que tenho tomado. Isso nunca nem sequer pareceu uma decisão a ser tomada, na verdade. Eu nunca parei para pensar sobre ir, ou ficar. Talvez isso soe romântico demais a vida a real, mas, de qualquer forma, eu sempre preferi o romantismo mesmo: eu simplesmente acho que nasci assim.
Hoje, com uma grande mudança que se aproxima no horizonte e com a súbita percepção de pequenos hábitos que me trouxeram até esse ponto da minha vida, é inevitável que a insegurança bata à porta e eu me pergunte se, afinal, não há mesmo nada de errado comigo. Se eu não deveria me importar mais com a minha carreira, parar de rejeitar ofertas profissionais razoáveis em nome de um futuro bastante incerto, parar de sonhar com aventuras no além-mar como eu costumava fazer aos cinco, ou seis anos, hipnotizada pelas fotografias de terras distantes nos livros de geografia do meu irmão mais velho.
Acontece que, para além de tudo o que eu sou agora e de quem quero ser no futuro ser errado, ou não, o grande ponto aqui é que essa criança de cinco, ou seis anos que ficava hipnotizada com fotografias minúsculas existiu e ela era incrível.
Eu adoraria dizer que isso significa que eu, hoje, sou incrível também. Porém, quando nos tornamos adultos, nós deixamos de ser isso, aos pouquinhos. Talvez sejamos interessantes, inteligentes, sonhadores. Com certeza podemos ser muitas coisas boas, mas raramente olhamos para outro adulto e o consideramos incrível, da mesma forma que consideraríamos uma criança que também é interessante, inteligente e sonhadora.
Assim, existiu uma versão infantil de mim que era incrível e que, quando brincava, reproduzia dentro de sua cabeça os lugares que havia visto nos livros, misturando um pouco com os lugares fictícios de seus livros favoritos, um pouco do que via nos seus videogames. Uma criança que adorava mistérios e, como não conhecia nada do mundo, tudo era um mistério — o quintal de casa, os cartazes nos muros e nos prédios, os maiores prédios, as partes da escola onde só os adolescentes podiam ir. A vida parecia algo mágico.
Essa criança incrível pedia para o pai fazer o caminho mais longo na ida e na volta do mercado, porque ela gostava de andar por aí. Essa criança achou que a primeira viagem de metrô em Porto Alegre havia sido o dia mais legal do mundo. Deu nome pra maioria das árvores do Parque Marinha. Escrevia livros em cadernos velhos. Sentia frio na barriga quando lia sobre o espaço.
Cada pequeno hábito dessa incrível criança introspectiva e sonhadora que fui, de alguma forma, reflete nos meus hábitos e desejos hoje. Mas de uma forma menos pura, bem menos pura. A alma dessa criança não é diferente da alma que existe em algum lugar de mim agora. Ela ainda existe, ainda é a mesma. As mesmas aspirações, os mesmos sonhos, as mesmas convicções e dúvidas.
O grande problema de agora, da vida adulta, é que essa alma luta para ficar viva em um corpo físico e uma mente calejados pelas convenções sociais, pelas obrigações, pelo que há de ruim no mundo, pelas frustrações, pelos equívocos, pela depressão, pelo pânico, pela ansiedade. O mundo nos derruba todos os dias, de muitas formas.
Porém, o mais bonito no meio disso tudo é que, de alguma forma, essa alma ainda existe. Essa criança incrível não ficou totalmente no passado e nem seria certo ficar.
E eu não sei se tem algo de errado comigo, se não está certa essa minha mania de querer ir. Eu não sei se deveria estar, nesse momento, trabalhando em busca de um emprego que me dê um predicado de peso, ou juntando dinheiro para comprar um apartamento. Eu não sei se é errado eu ter 24 anos e absolutamente nenhum interesse em dirigir, ou ser incapaz de me concentrar em uma reunião porque minha cabeça insiste em divagar. Eu não sei se é errado eu não conseguir me conectar com essas realidades e talvez essa dúvida e esse receio pareçam clichês, ou superficiais, mas todo mundo faz todas essas coisas parecerem tão normais, tão certas. O tempo todo.
E eu só não sei.
A única coisa da qual eu tenho certeza é que a alma que eu ostentei quando era criança, quando era pura e livre de erros, dos meus e de outros, ainda existe. E eu era incrível.
Certa, ou errada, algo em mim faz com que eu me recuse a mudar. Eu nasci assim.
Então, eu parto, porque quero que o mundo faça coisas incríveis comigo, quero reencontrar a minha criança incrível.