“A refeição”
Caminhava incessantemente. Incessantemente ela caminhava.
Os carros passavam,
ela passeava e
observava.
Chegando em casa, sozinha, Cícera perguntava a si mesma a descendência dos seus traços. A urgência dos olhos que nunca viram.
Cícera era menina crescida, dessas que acordam antes dos 15 anos, mas que no fundo nunca conseguiram dormir. Em seu quarto, sua companhia era o medo, o deboche, a descrença, a insegurança. Ela era cautelosa no assunto e quando alguém falava sobre, desconversava, mas não falar do assunto não quer dizer que ele não existisse, ela pensava. O tempo quando visto de longe é a potência da angústia.
À procura de uma resposta, Cícera montava os fatos. Separou as fotos, uma por uma; abriu os álbuns da família e não se via naqueles cabelos loiros ou naqueles olhos claros, ou nas expressões, nos gostos. Em cada olhada no espelho, uma lista de perguntas:
- “De onde vieram a cor dos meus cabelos?”
- “De onde vieram a cor dos meus olhos?”
- “A fartura de sobrancelhas, de onde veio?”
- “E a mancha na perna?”
- “O tamanho do meu nariz?”
Durante as indagações, Cícera tropeçou em um acontecimento: como cão farejador, lembrou-se do dia que passou por um homem de mais ou menos 45 anos e seu perfume despertou uma lembrança há muito adormecida.
- “Eu tinha 10 anos e…”
Inquieta, sempre inquieta.
- “Lembro de uma blusa listrada que ele vestia com os dois últimos botões abertos”.
Mas a mãe de Cícera abriu a porta do quarto e disse: “Vem comer”
A hora do almoço era a mais perigosa. A pergunta era o banquete principal. Um olhar para cima e dois para o vazio do lugar. Mastigava a comida sem apreço. A respiração era profunda e o pé balançando de forma inquieta a entregava.
Naquele mesmo dia, depois da refeição, uma amiga, Ana, convidou Cícera para ir até a sua casa. Ela foi. E em uma situação íntima, Ana, que também balançava o pé inquieto, disse:
- “Cícera, meu pai traiu minha mãe. Já aconteceu isso com você? Não sei como é na sua casa, mas aqui é assim. Todos ditam e mascaram a verdade”
O silêncio prevaleceu.
Ana não disse nada. Cícera menos ainda. E foi assim, de maneira absorta, que Cícera inventou que tinha um compromisso e foi embora. Na volta para casa, em voz baixa, repetia: “era uma menina, uma menina com a mesma idade que eu. Ela tinha os pés tão inquietos quanto os meus na hora de falar. Era uma menina, uma menina com a mesma idade que eu”.
Deslocada, chegou na cozinha da sua casa, pegou um copo de água e debruçou-se sobre a cama. Pensava na amiga e sua afeição aumentava toda vez que ela repetia o que a outra havida dito: “Não sei como é na sua casa, mas aqui é assim. Todos ditam e mascaram a verdade.”
Cícera idealizava tão bem as histórias alheias.
Na manhã do dia seguinte, Cícera sussurrava em frente ao espelho:
- “Ana tinha os pés tão inquietos quanto os meus na hora de falar.”
Sua mãe abriu a porta do quarto e disse: “Vem almoçar, filha. É hora do almoço”.
(Cícera continuou parada em frente ao espelho com as duas mãos na cabeça).
A mãe repetiu: “A refeição está na mesa”.
(Se vendo no reflexo sussurrou).
“Eu lembrei. Eu tinha 10 anos e o cheiro era de cravo!”
E a mãe respondeu: “É hora do almoço”.
“Estou indo”.
Olhou em volta, viu as caixas cheias de escritos e os desenhos que fizera durante os anos à procura de uma imagem. Fitou novamente o espelho onde sempre procurava em si um traço alheio.
Vieram o irmão, os tios, os avós, as primas, os dias, os anos. O peito dela enchera. De idade vencida, Cícera saiu do quarto e chamou todos para a mesa e dessa vez não sobrou lugar. Ela saiu do seu estado de vertigem. A comida havia esfriado. A vela da passividade apagou.
Sem medo de engolir o retorno ou coisa parecida, a pergunta veio:
“Quem é meu pai?”
E sua mãe não conseguiu responder
é hora do almoço.