Submissão, poder e desejo: análise das críticas do espetáculo Nó
INTRODUÇÃO
Corpo é emoção e sentimento. O mesmo corpo que repele, atrai. Em cena, um bailarino transmite sensações, experiências, força e disciplina. Aos olhos do espectador, surgem emoções e consequentemente, reações e respostas corporais diferentes. As Artes Cênicas, com o ambiente teatral ou de espetáculos de dança, é um exemplo explícito dessas expressões socialmente construídas.
Inserida no campo do Jornalismo Cultural, tema complexo por natureza, as Artes das Cenas constituem um universo de representações, de encenação e de mis-en-scène do corpo e das emoções (Siqueira, 2015). Mas, se ela reproduz tal característica, o jornalismo cultural também o faria? Para isto, primeiramente será preciso contextualizar o que, de fato, dentre tantas conceituações, vem a ser Jornalismo Cultural.
Como dito anteriormente, o assunto é de difícil definição. Para Faro (2006), por jornalismo cultural “entende-se a produção noticiosa e analítica referente a eventos de natureza artística e editorial pautados por seções, suplementes e revistas especializadas nessa área.” Música, literatura, cinema, teatro, artes plásticas e dança são os tradicionais.
No entanto, discussões acerca da produção de cultura nas redações têm emergido devido à crise na imprensa, com o enxugamento das redações; à racionalidade editorial dos veículos, que enxergam pouca densidade jornalística no meio cultural; e às chamadas agendas culturais, muita das vezes, atrelada às determinações da indústria cultural: os jornalistas saem pouco das redações e recebem releases em demasia.
Por isso, em determinados momentos, as pautas do jornalismo cultural encontram lógica, segundo Faro (2006), “nos fundamentos do que ele aparenta ser: um prestador de serviços de pouca qualidade que oculta uma operação de natureza basicamente econômica.” Dessa maneira, cadernos, seções e suplementos noticiam os eventos classificados como culturais.
Faro (2006) vai mais além e explicita uma questão importante: o jornalismo, nos moldes tradicionais, tem uma prática informativa e analítica dos fatos culturais, diferente do código com que os fatos são narrados. Contudo, diante das limitações impostas pelo pouco espaço destinado às resenhas e críticas, um dos materiais de um jornalista cultural, as análises acabam por escassas e rasas.
Para fazer uma boa crítica de uma peça, por exemplo, o crítico precisa estar atento a diversos elementos compositores de uma cena, contemplá-los com atenção e transcrever em forma de texto para os leitores tirarem, a partir dali, suas próprias conclusões.
Em uma obra coreográfica, temos os seguintes aspectos a serem observados: motivação, estrutura, desenho espacial, desenho no tempo, linguagem coreográfica, utilização do bailarino, comunicação com o público e itens complementares, como figurino, iluminação, cenário e som.
A fim de ilustrar a temática dos espetáculos de dança e a importância das críticas, este trabalho busca investigar a estrutura destas, mais especificamente duas: uma feita pelo portal de notícias G1, encontrada na editoria do Rio de Janeiro, e outra escrita pela jornalista Amanda Queirós, do jornal impresso Metro, de São Paulo. O objeto de estudo é o espetáculo de dança contemporânea “Nó”.
Coreografado pela bailarina Deborah Colker, assisti ao ballet no Teatro Carlos Gomes, no Centro do Rio, no dia 14 de junho de 2019, na sessão das 20h. O objetivo do trabalho é entender as nuances de cada texto, seus acertos e problemáticas, a partir dos aspectos aprendidos na aula de Semiologia de Jornalismo Cultural nas Artes Cênicas, da especialização em Jornalismo Cultural.
AS CRÍTICAS SOBRE “NÓ”
A primeira matéria a ser analisada será a do site de notícias G1. O autor abre o texto colocando as principais informações de serviço, datas, local e valores do ingresso. Em seguida, lembra que o espetáculo foi lançado em 2005 e é considerado um marco na trajetória da artista, pinçando o primeiro aspecto a ser observado em uma obra coreográfica: o conteúdo / temática, que, neste caso, é o desejo.
Em seguida, pula para as mudanças na cenografia e na trilha sonora, lembrando que esta atual versão recebeu mais temas compostos por Berna Ceppas. No entanto, não comenta mais profundamente sobre a trilha sonora, dirigida por Ceppas, em parceria com Kassin, que utiliza trechos de Ravel e Alice Coltrane no primeiro ato, embalando os bailarinos, que dançam com cordas.
Também não observa que, no segundo ato, são utilizadas as músicas “My one and only love”, de Chet Baker; “Coisa nº 9”, de Moacir Santos; e “Preciso aprender a ser só”, de Marcos Valle e Paulo Sergio Valle, na voz de Elizeth Cardoso. No elemento som / trilha sonora não é feita uma análise mais profunda, pois ao longo da crítica ele não é mais retomado.
A partir daí, o autor fala da temática, da estrutura e de como a obra se organiza. Dividido em dois atos, “o primeiro tem início com uma árvore no centro do palco, com 120 cordas que remetem aos laços afetivos das relações humanas.” Os bailarinos dançam com ela, em volta dela e, por vezes, pendurados. Depois, seguem-se as coreografias e “as cordas são soltas aos poucos, até o momento em que o cenário pareça uma floresta.”
No segundo ato, a companhia dança dentro e em torno de uma grande caixa transparente, criada por Gringo Cardia, mas a crítica não menciona que este é parceiro de longa data de Deborah. O autor também faz uma correlação e explica que, “enquanto as cordas apontam para a natureza humana, a caixa pensa o mundo urbano.”
Ao longo do texto, não são citados o desenho espacial criado pelos corpos dos intérpretes, realizados com muitos voos, saltos, movimentos circulares, acrobáticos e danças aéreas. Nelas, bailarinas penduradas por cordas dançam e desafiam a elasticidade, além do uso recorrente do chão, por ser tratar de um espetáculo mais contemporâneo.
A iluminação também não foi lembrada. Intimista, com uso de cores quentes, como o azul, o vermelho e o cobre, ajudavam a criar a ideia de desejo, poder e sedução, temáticas da obra. Além disso, não foram comentadas a linguagem coreográfica, de estilo contemporâneo, misturada com o ballet clássico, visto no segundo ato, onde bailarinas dançam com sapatilhas de ponta em um total virtuosismo; o moderno; e as artes circenses.
Por fim, a utilização do bailairino, com intepretações viscerais, com emoção no rosto, um trabalho de corpo fortíssimo, ora alternando duplas e conjuntos; o figurino criado pelo estilista Alexandre Herchcovitch, transmissor de delicadeza e erotismo, com recursos proporcionadores de elasticidade, para que os bailarinos conseguissem deslizar facilmente pelo chão ou serem pendurados pelas cordas, não foram elementos observados nesta crítica.
Agora, analisaremos a matéria do jornal “Metro”, de São Paulo. Sob o título “Asas do Desejo”, a jornalista Amanda Queirós relembra, já no início, que ao estrear em 2005, o espetáculo “Nó” indicava uma mudança sensível no fazer coreográfico de Colker. Acostumada a “investigar” o movimento e o espaço em coreografias como “Velox” (1995), “Rota” (1997), “Casa” (1999) e “4 por 4” (2002), Colker pula para um outro lado: o desejo, o jogo de poder, o jogo de sedução, a tragédia e a complexidade dos impulsos humanos.
Em seguida, comenta a motivação da obra, com “as formas como o corpo reage ao desejo ou como se utiliza dele para se afirmar e se relacionar com o outro.” Ela vai mais além e fala de um aspecto importante: o cenário, comentando que Colker utiliza “o espaço cênico de forma pouco usual, obtendo impacto visual e possibilidades de movimento interessantes, pela inspiração nas técnicas de bondage.” Tais técnicas buscam proporcionar dor e prazer a partir de amarrações, vista nas coreografias executadas por bailarinos, que, em sintonia, dançam, enroscam-se e amarram-se com as cordas, criando um visual erótico e esteticamente bonito.
Queirós articula este recurso do conteúdo para linkar e desenvolver a estrutura da obra, explicando o posicionamento das 120 cordas dispostas no centro do palco, manipuladas pelos bailarinos, gerando movimentos aéreos. A partir daí, ela pula para o segundo ato, comentando da “imensa caixa transparente, no formato quadrado, disposta no centro do palco, onde os bailarinos dançam dentro e fora.” Aqui, Amanda alude à caixa e a dança dos bailarinos “ao clima de peep show, como são chamadas as cabines de shows eróticas.”
Por último, discorre sobre as mudanças propostas por Colker, tanto no cenário, com o aumento da caixa colocada no segundo ato, como na trilha sonora, dessa vez enriquecida com novos temas criados por Berna Ceppas, responsável por uma colagem que passeia por Chet Baker e Elizeth Cardoso. Porém, não comenta a relação da trilha com o espetáculo. Cada música contrasta com as coreografias, ora mais sensuais, ora mais eróticas, ora mais fortes, ora com mais “pegadas” ou danças mais lentas.
Para fechar a crítica, Amanda Queirós lembra a parceria de Colker com o diretor Gringo Cardia, realizada desde a primeira montagem, e encerra mostrando a importância do figurino para o contexto do espetáculo, ao dizer que são “capazes de evocar volúpia mesmo a partir do minimalismo, também seguem assinados por Alexandre Herchcovitch”. Os elementos utilização do bailarino, iluminação, desenho no tempo, linguagem coreográfica, comunicação com o público e desenho espacial não estavam presentes nesta crítica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a ascensão da internet, os jornais impressos reduziram drasticamente o seu volume, bem como seu quadro de funcionários. Os primeiros cadernos a sofrerem com esta redução foram os suplementos de cultura. Exíguos, com poucas páginas e praticamente em extinção, perderam espaço para os portais de notícias, com um espaço maior para textos e ao alcance de um clique.
Dessa maneira, o papel do crítico foi relegado, de certo modo, a segundo plano. Sem espaço, como fazer boas leituras de uma peça, por exemplo? É sabido que um bom texto crítico deve estimular a reflexão, o pensamento e levar o leitor ao campo das ideias. Sabe-se também que em virtude do pouco espaço, hoje prioriza-se o serviço, com uma pequena nota sobre o espetáculo, os valores dos ingressos, lugar de exibição etc.
Na primeira crítica analisada percebemos esta problemática, pois foram abordados poucos elementos a serem observados em uma obra coreográfica. Quase metade deles ficou de fora. Apesar de estar em um portal de notícias, o texto era conciso, objetivo, sem referências culturais. Apenas “contava” a história do espetáculo com as principais motivações, direção, trilha sonora, estrutura, abrindo o texto com as informações de serviço.
Em comparação à primeira, a segunda tem um formato mais longo. Mesmo estando em um jornal impresso, conseguiu, apesar de não incluir todos os elementos, unir referências, bom texto, reflexões e menções interessantes acerca do espetáculo para os leitores. Na do G1 não vemos, por exemplo, a referência aos peep shows, encontrada na do Metro. Apesar de também não ter mencionado todos os aspectos, o texto flui melhor, articula os principais elementos, faz referências, informa e desperta o interesse em quem lê.
Podemos identificar, assim, um gap na feitura das críticas, com poucas que, de fato, leem os aspectos a serem observados, realizam menções, criam links ou mostram um determinado discurso sobre a obra. Em sua maioria, as críticas, neste caso, as de dança, têm perdido espaço somente para a breve história, para o informar por informar e para o serviço, sem a busca do aprofundamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARO, J.S. Nem tudo que reluz é ouro: contribuição para uma reflexão teórica sobre o jornalismo cultural. Comunicação e Sociedade, v.28, n. 46, p.143–163, 2006.
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. A construção social das emoções: corpo e produção de sentidos na comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2015.
SIQUEIRA, Euler David; SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. A cultura no jornalismo cultural. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal de Juiz de Fora, v.1, n.1, p. 1–12, 2007.
MATERIAL JORNALÍSTICO
Espetáculo ‘Nó’ chega ao Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro. G1Rio de Janeiro, 06 jun.2019. Disponível em:> https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/o-que-fazer-no-rio-de-janeiro/noticia/2019/06/05/espetaculo-no-chega-ao-teatro-carlos-gomes-no-centro-do-rio.ghtml> Acesso em: 24 jun. 2019.