Uma ilha como ponto de partida para o autoconhecimento
Misto de fábula e parábola, livro de Saramago altera a ideia sobre nós mesmos
Somos uns eternos desconhecidos por nós mesmos. Ultrapassar a estabelecida zona de conforto, sair da terra firme e partir para uma jornada de autodescobrimento, é tarefa pouco atrativa. Fruto do medo e da ausência de coragem, o ser humano prefere molhar os pés à beira mar, ao invés de navegar na imensidão dos oceanos. Mas quando decidimos singrar pelas águas do nosso próprio território, ancoramos em portos inesperados.
Parábola sobre a existência humana, o livro “O conto da ilha desconhecida” (1998), de José Saramago, em poucas páginas descreve metaforicamente o mundo, as ambições e as frustrações humanas. Sem tempo ou espaço determinados, um homem surge às portas do palácio do rei, decidido a pedir-lhe um barco, para levá-lo a uma ilha desconhecida. Ele quer descobri-la, encontrá-la além dos mapas.
O sonho esbarra nos obstáculos, como o egoísmo do monarca, mais interessado em receber obséquios, do que responder aos anseios do povo. Ou na burocracia, demonstrada na dinâmica das portas, crítica sutil feita pelo escritor português, conhecido pela língua afiada, criticidade das obras e escrita nem sempre compreendida, mas essencial para sua prosa.
Depois de esperar três dias, o homem consegue a embarcação. Alheio a que o rodeia, não enxerga o que o destino reservava: a lealdade da faxineira do palácio, personagem singela, dotada de força e sabedoria. Dona de si, decide que “tinha chegado a hora de mudar de ofício, que lavar a limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira.” A partir daí, a busca pelo inexplorado passa da euforia aos problemas concretos, novamente ficção e realidade se confundem: como achar a ilha? Como encontrar a tripulação?
Fazendo alusão às navegações portuguesas, Saramago revela o arquétipo do homem aventureiro em sua dualidade. Ao sair para recrutar os marinheiros, depara-se com pessoas desinteressadas, que diante de uma vida estabilizada, preferem não mergulhar no novo. E quantos de nós não somos esses marujos? Daí em diante, partimos para um desfecho — ou seria início? — de gratas descobertas. Com sua escrita característica, Saramago não faz uso da pontuação, os diálogos não têm aspas ou travessões, a história temporalmente longínqua, aproxima-se ainda mais. Após belos diálogos filosóficos entre os personagens sobre sonhos, escolhas e a auto-descoberta, o nó da fábula desata.
Como em um despertar do sono, a ilha desconhecida, almejada, procurada, aparece ao nosso lado, mais perto do que pensávamos. Foi preciso o homem sentir falta da mulher da limpeza, para perceber que a busca por algo que não existe, é também a busca da utopia da vida. Porém nesta procura passamos pelo outro — aqui representado pela mulher. Descobrimos o outro em nós. Um outro sem nome, como todos os protagonistas da fábula.
Em poucas páginas, o conto faz alusão às épocas medievais e o autor nos convida a poeticamente pensar a existência humana, a perseverança como luz no mundo. A humanidade pode ser bela? Sim! Basta ver luz onde tudo é cinza, e se olharmos minuciosamente, o novo é o que não esperamos e não estamos prontos.
Para nos conhecermos, precisamos pegar barcos, abrir portas que não queremos. Precisamos acordar abraçados, sem saber o motivo, como o homem e a mulher. E assim, desconcertados, percebermos as flores que desabrocham na amurada. Às vezes, precisamos sonhar, renascer e entender as nossas ilhas desconhecidas — são tantas — para enfim enxergar as possibilidades e o nascimento do novo.
“As ilhas são desconhecidas enquanto não embarcamos nelas.” Ao abrirmos as percepções que temos de nós, descobrimos que não há certezas e nem sempre saberemos quem, de fato, somos. O homem precisou ter um desejo desconhecido, neste caso, procurar uma ilha, para, no fim, encontrar a mulher como ferramenta propulsora de conhecimento e de reconhecimento.
Após esta experimentação, juntos, partem para enfim, encontrar o tal lugar sonhado — nossos sentimentos, nossa vida, nossos medos? Talvez o ser humano seja uma ilha mesmo e o coração, terra que ninguém anda.