resenha — manual de introdução à ginecologia natural

Nathália Rinaldi
Nathália Rinaldi

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O verdadeiro sentido de “ter o controle” origina-se de conhecer como funciona o nosso corpo, valorizando as mudanças mensais rítmicas como oportunidades de autodescobrimento e cuidado próprio, assim como de acesso às fontes profundas de poder que o ciclo nos revela. Isso é a verdadeira liberdade.

Alexandra Pope

Em 2019, conheci a iniciativa Ginecosofia Brasil. Comprei o Manual de introdução à ginecologia natural e, atenta, constatei: está mesmo tudo ali, vivo, natural, cheio de conhecimento. Interagi incessantemente com aquela voz que se dirigia a mim com tanta sabedoria, calma e paciência, com doçura.

Decidi, quando estava para acabar o sexto capítulo, que faria uma resenha. Não que eu não tivesse me impressionado antes — desde o começo — mas se tornava cada vez mais necessário falar do impacto causado tanto em mim quanto nas mulheres a minha volta que com ele faziam contato. Ainda passo muito tempo falando desse livro, recomendando aos quatro ventos. Ele é feito para ser lido e relido, consultado sempre. É verdadeiramente um sopro de vida, um acontecimento para as mulheres. É um livro que precisava existir pela memória e pela honra da ancestralidade nativa, que há anos sofre com as agressões do sistema patriarcal.

A primeira coisa a dizer é que esta obra só foi possível, aqui no Brasil, graças ao trabalho voluntário de um grupo de tradutoras que toparam traduzi-lo para o português. Sim, essa é uma publicação independente e muito valiosa! A autora, Pabla Pérez San Martín, é uma investigadora social, escritora e parteira tradicional que viaja pela América do Sul compilando tradições e saberes ancestrais de cura a partir do uso de ervas medicinais para a saúde sexual das mulheres. Eis a Ginecosofia, que já rendeu a publicação de outros livros além do Manual; este representando um grande passo no processo de legitimação de tais conhecimentos.

Logo nas primeiras epígrafes e na introdução, me senti ser abraçada e amparada, como se o livro fosse efetivamente um corpo e se relacionasse comigo dentro das possibilidades que um corpo carrega. Fiz a leitura em um tempo que foge ao cronológico, expandindo-o. Entenda: essa é uma leitura com alto potencial transformador: quando terminamos, não somos mais as mesmas. Daqui, aceito todas as marcas que o Manual de introdução à Ginecologia Natural me entrega, todos os movimentos que ele guia.

Na defesa de que o “natural é melhor”, um universo de cuidados se descortina. É no cuidado, com o cuidado que exercitamos boa parte da nossa humanidade, não podemos nos esquecer. Aqui, tal trajetória se inicia com uma reflexão sobre o corpo em si e as energias que o circundam, sobre o contexto social e cultural, a objetificação sofrida e a afirmação de que não, não é no corpo que moram todas as respostas. O que pode parecer uma informação inesperada dentro da proposta do manual, naquele momento, se revela uma verdadeira compreensão do todo, pautada, principalmente, no autoconhecimento.

Ao traçar um pequeno panorama histórico, Pabla nos mostra a realidade de corpos silenciados à força, a ignorância crescente acerca do ser mulher e as graves consequências que o patriarcado nos deixa como legado. Propondo uma descolonização do corpo, a autora aborda as nomenclaturas dos órgãos genitais das mulheres destacando a diferença entre vulva (“tudo o que podemos observar externamente dos nossos genitais, do monte de Vênus, o clitóris, os lábios, a entrada da vagina e o períneo até o ânus.”) e vagina (“é somente a cavidade fibromuscular interna que começa no vestíbulo vaginal e vai até o colo do útero”) e explicando que o clitóris é um “órgão que não pertence ao sistema reprodutivo nem ao sistema urinário; [é] um órgão que tem a única função de nos dar prazer”.

Com as definições organizadas e claras, e a ajuda das ilustrações, é possível praticar a autogestão da nossa saúde com mais facilidade e segurança. Não é à toa, inclusive, que o livro apresenta no título a palavra “manual”, pois ele efetivamente reúne instruções, receitas, conselhos e exercícios práticos para promover esse encontro entre nossas potências particulares e as potências das plantas medicinais, proporcionando conexão e cura.

No capítulo dedicado ao útero, lê-se “útera”. Este é apenas um dos recursos que compõe o discurso emancipador utilizado pela autora que, no caso, se reflete no vocabulário e expõe a limitação da nossa linguagem, sempre pautada no gênero masculino. Identifica-se, dessa forma, uma relação com a filósofa Simone de Beauvoir, que analisa a existência da mulher como sendo sempre “o outro” em relação ao homem dentro do sistema patriarcal instituído: “Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição de Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana.”. Com isso, identifica-se, no Manual, uma proposta de definição da realidade das mulheres por parte das próprias, estabelecendo suas identidades, nomeando suas experiências e assumindo a autoridade em suas histórias. Inclusive, no caso de “plenopausa”, ao invés de “menopausa”, também se reconhece uma adaptação vocabular no sentido de valorização de algo inerente ao ser mulher. Considerada a “segunda primavera” e representada pelo arquétipo da Mulher Sábia, caracteriza a fase da plenitude. É dentro dessas reflexões que podemos entender a experiência como um fenômeno que atravessa não só o corpo, mas também — e principalmente? — a linguagem.

Os ciclos menstruais, por sua vez, são trabalhados com uma riqueza de referências que incluem as fases da lua, as estações do ano, os arquétipos, as deusas, as plantas, os hormônios e as relações com alimentos e atividades físicas específicas. Além disso, encontramos formas de nos relacionar com nosso sangue menstrual — e com todo o ciclo — mais amorosamente, aceitando e entendendo suas manifestações como uma luz.

Nesse sentido, a leitura também reforçou conhecimentos que eu já tinha, como o entendimento de que tudo na natureza — e consequentemente nos seres e em mim mesma — é cíclico. Vem daí uma clareza maior quanto à percepção da fertilidade e as formas de lidar com ela com menos medo de engravidar e mais confiança no que ela traz, atuando como uma aliada. Afinal, “somos férteis apenas por vinte e quatro horas UMA vez por mês”!

Ademais, foi com o Manual de introdução à ginecologia natural que entendi os malefícios dos alteradores hormonais presentes em tantos cosméticos, desodorantes e alimentos. São muitas as substâncias que podem alterar o funcionamento do nosso corpo e fugir das mesmas requer mudanças de hábitos já muito enraizados. A internet, porém, nos possibilita acessar diversos conhecimentos que auxiliam nesses processos, como tutoriais para fazermos o nosso próprio desodorante de forma simples e em casa, por exemplo.

Há, ainda, um capítulo que aborda a gestação, o parto e a amamentação exaltando a força ancestral e natural da mulher; um capítulo dedicado ao câncer, que sugere um necessário olhar integrado sobre a doença; e um sobre o aborto, em que o cuidado como palavra-chave se intensifica uma vez mais. Nesses territórios tão delicados e sutis, as informações nos chegam vestidas de acolhimento, abraçando nossas mágoas, medos, dores e sentimentos conflituosos — não estamos sozinhas!

“A matriz ferida”, último capítulo, se apresenta como o coração do livro e encerra a obra coroando o percurso de emoções e descobertas. A ferida à qual a autora se refere envolve o medo, tão comum, de nos parecermos com nossas mães. “Destacamos seus erros, idealizamos um modelo de mãe que só nos mantêm em uma espiral de angústia perante a falta do que não foi como queríamos ou como ainda queremos que seja, agindo no nosso inconsciente como uma negação a nós mesmas, à nossa história, à nossa criação, mas principalmente à nossa primeira referência do que é para nós ‘ser mulher’.” Falta-nos lembrar que, antes de tudo, inclusive antes de ser mãe, estamos falando de uma mulher. Sem curar essa relação, sem buscar de coração a cura com a Matriz o processo não se desenvolve plenamente.

“Curar para entender, abandonar e aceitar. Para assim agradecer, honrar e equilibrar”. Que essa leitura, nas palavras de Pabla e de todas que se reuniram para realizar a tradução reivindicando maior autonomia para as mulheres, possa honrar a sua vida, a vida da sua mãe e a daquelas que estão a sua volta proporcionando (auto)cuidado e uma incrível transformação de quem somos hoje e de como agimos no mundo. Viva as mulheres!

Um abraço,

nathália rinaldi

publicada na revista empodere nº 7, 2021

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