Doutora para os Pobres

Nathan Xavier
Nathan Xavier
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6 min readJul 11, 2016

Irmã Annette Dumoulin passa quase duas horas em pé, ouvindo, aprendendo, cantando e puxando orações com quase 400 romeiros presentes no simples, mas grande, auditório anexo à Basílica de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte (CE). Não há ar condicionado, apenas ventiladores que não conseguem espantar o bafo quente da tarde, e a religiosa, de 80 anos, tem a testa cheia de suor e nem se importa com isso, esbanjando alegria e simpatia com seus vibrantes olhos azuis. Se não fosse pela pele branca e um ligeiro sotaque, você poderia jurar que é bem brasileira, tamanha familiaridade e integração dela com os romeiros e dos romeiros com ela. Mas Irmã Annette nasceu em Liège, na Bélgica, em 1935, país de temperaturas amenas; bem diferente do calor, também humano, que ela sente no interior do Nordeste.

Vocação — O pai de Annette era médico e não fazia distinção entre o paciente que pagava e o que não pagava, entregando-se totalmente à profissão. “Quando meu pai via uma senhora doente sozinha, por exemplo, ele mandava eu e meu irmão limpar o quarto, lavar a louça, algo que ajudasse essa pessoa. Então fomos habituados a fazer isso, o que despertou em mim a vontade de me doar. Acho que a origem da minha vocação é o exemplo do meu pai que, para mim, era um médico sacerdote.” Outro impulso para a vocação de freira veio com as Irmãs de seu colégio, da congregação de Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho, que chegavam do Brasil falando do trabalho missionário que faziam nas praias de Santos. Porém, a entrada nessa congregação só aconteceu quando ela tinha 21 anos. “Queria ter entrado antes, mas meus pais exigiram que eu estudasse. Então, escolhi Educação Física e cheguei a ser professora. No fim até me ajudou um pouco, porque é importante ter uma formação humana completa, mas fiz só para fazer o desejo de papai e mamãe.”

Já freira, Annette era professora da Faculdade de Teologia e Psicologia da Université Catholique de Louvain, fundada em 1425, a mais antiga e uma das mais importantes universidades da Bélgica, quando recebeu convite do respeitado professor Vergote para ser sua assistente e fazer o doutorado. “Fiquei muito preocupada. Temia que meus estudos me separassem cada vez mais do povo, que era meu objetivo quando entrei na congregação.” Ao expor o receio para sua Superiora da Ordem, madre São João, recebeu uma inspirada resposta:

“Faça seu doutorado, estude. Porque os pobres merecem que a gente se forme para servi-los. E se é a vontade de Deus, não será um doutorado que vai impedir você de trabalhar no meio dos pobres”

E assim fez. O tempo e os estudos começaram a fazer com que se distanciasse de sua vocação de sua opção inicial, mas, como sua superiora intuiu, Deus realmente tinha outros planos. Uma Irmã brasileira, Ana Teresa, ao saber da vontade de Annette disse que, se quisesse trabalhar com os pobres, ela estava no lugar errado. Annette teria um futuro acadêmico brilhante, mas, seguindo sua vocação, abandonou a posição confortável em que estava e pediu dois anos de pesquisa no Brasil para estudar as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s). Os dois anos se tornariam quarenta.

Em terras brasileiras — Na década de 1970, quando as Irmãs Annette e Ana Teresa chegaram, as CEB’s estavam no auge. Localizando-se em zonas rurais e nas periferias das cidades, em torno de paróquias, capelas, centros sociais ou associações comunitárias, as CEB’s tinham, na sua grande maioria, lideranças leigas. Para estudar de perto essa articulação vinda do povo que se baseava na Palavra de Deus e na própria fé católica para mudar a realidade em que viviam, Annette e Ana Teresa alugaram uma casa no bairro Linha do Tiro, na periferia do Recife (PE), considerado um dos mais perigosos da cidade, na época. “Na casa da nossa vizinha tinha um quadro de um padre. Eu mal falando português, lavando a roupa no quintal, perguntei quem era, e ela me disse que era o santo padre Cícero.” Irmã Ana Teresa alertou a amiga para que não ligasse, pois era apenas fanatismo popular. Longe de afastar, o aviso despertou o interesse de Annette. “Eu falei para ela que era justamente o que me interessava, pois, se era um movimento popular, valia a pena conhecer.” E, assim, foram passar o segundo ano de pesquisa na terra de padre Cícero. Quando chegou, sentiu na pele o que as esperava:

“Ficamos muito impressionadas porque, naquela época, a Igreja oficial rejeitava totalmente padre Cícero e as romarias. Considerava que fosse fanatismo e era para esquecer; quanto menos se falasse disso, melhor”.

Um único padre precisava atender os milhares de romeiros que vinham todos os anos a Juazeiro, e as Religiosas passaram a ajudá-lo. “Queríamos também abrir um centro de pesquisa de Psicologia da Religião e um centro de acolhida do romeiro. A ideia era que um centro alimentasse o outro.”

Por agir sozinho, padre Murilo realizava a maior parte das confissões de forma comunitária, confessando individualmente somente nos casos mais graves. Enquanto isso, as Irmãs, com cantos e orações, preparavam o povo para a confissão comunitária. Foi assim que Annette teve a ideia das reuniões com os romeiros. “O microfone é uma arma perigosa: você manda o povo se calar quando o tem, está com ele na mão. O meu desejo era dar aos romeiros direito de falar, para que eles continuassem a ser os protagonistas de sua romaria.” Irmã Annette ainda voltaria mais uma vez para a Bélgica, num período de dois anos, para encerrar suas atividades naquele país, pedir demissão da Universidade e morar em definitivo no Brasil, realizando a missão com o povo. E assim, desde 1976, ela realiza a “reunião das três horas”, como é conhecido o encontro dos romeiros.

Freira para os pobres — O carinho dos romeiros com a Irmã Annette é perceptível quando ela anda pela rua, onde é chamada pelo nome por muitos, que a cumprimentam, param para conversar, desabafar, contar um caso, ou só para abraçar mesmo. “Eu aprendo demais nessas reuniões e isso serve para a pesquisa em Psicologia da Religião, para que o trabalho da Pastoral da Romaria não seja manipuladora da fé romeira, julgando ser uma fé atrasada.” Segundo ela, ao contrário, é uma fé autêntica e profunda. “Eu sinto, nas expressões deles, algo puro na fé. Eles não vêm para se mostrar, é uma necessidade de agradecimento e testemunho. Não são perfeitos e ninguém é, mas sinto um carinho especial do Espírito de Deus que sopra onde quer.”

Quando a reunião com os romeiros termina Irmã Annette desaba de cansaço numa cadeira, mas está radiante. Ouviu histórias, rezou e cantou. Era o momento de dar esta entrevista. Comparo o esforço dela com o daquele povo sofrido. “A nossa cultura desvaloriza cada vez mais o esforço, o sofrimento, o suor”, ela comenta. “É isso que a romaria, nesse movimento popular de oração, lembra: que o esforço vale a pena. Claro, temos que aconselhar o romeiro para não subir o Horto (morro onde está a estátua de padre Cícero) com uma pedra de dez quilos na cabeça, como se fazia antes. Mas o que está faltando cada vez mais na sociedade é saber que a vida é uma luta. Uma criança vê uma cadeira e nem pensa, já senta. Ela não foi educada a olhar e ter uma atitude de um pequeno sacrifício de sentar no chão ou ficar em pé.”
Neste mês de junho, Annette completa 81 anos. O pique de hoje não é mais o mesmo de quando chegou, mas nem cogita a hipótese de parar. “Foi num dia de São João, lá no caminho do Horto, em 1974, que eu percebi que toda a minha formação tinha sido em preparação para este trabalho. Minha vocação é aqui, com os romeiros, com o povo”, reflete, numa pausa e com um sorriso. “Meu lugar é aqui. Lá na Universidade, na Bélgica, deve estar cheio de gente querendo meu lugar, mas aqui, junto dos romeiros, sendo freira, cantando para os romeiros…”, faz outra longa pausa, alargando ainda mais o sorriso. E assim fica, deixando a frase solta. Não era preciso completar.

Reportagem originalmente publicada na Revista Família Cristã de julho de 2016 — edição 967.

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