O Livro dos Livros

Nathan Xavier
Nathan Xavier
Published in
8 min readJul 28, 2016

José Tolentino Calaça de Mendonça (foto) é especialista em Estudos Bíblicos, aborda com rigor e criatividade os temas e os textos do cânone cristão, mantém um diálogo sensível com as interrogações do presente e a relação entre o Cristianismo e Cultura. Nesta entrevista à Revista Família Cristã, Tolentino, convida a um mergulho nos textos sagrados e ressalta a Bíblia como um processo.

Fotos Felipe Larozza

Além de poeta e ensaísta, o sacerdote português José Tolentino Mendonça é um dos maiores especialistas em Bíblia do mundo. Seu currículo não deixa dúvida: mestre em Ciências Bíblicas, doutor em Teologia Bíblica, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, no Vaticano. Mesmo acostumado a abordar com rigor os textos das Sagradas Escrituras, o pesquisador dedica seu tempo para escrever sobre seu tema de estudo com criatividade e simplicidade. A “Leitura Infinita — a Bíblia e a sua interpretação é o seu mais recente título lançado no Brasil. Publicada este ano por Paulinas Editora, a obra convida o leitor a descobrir particularidades ainda misteriosas, apesar de exaustivamente estudadas, do livro sagrado dos cristãos. Em sua passagem por São Paulo (SP), o autor conversou com a Família Cristã. O resultado está a seguir.

FC — Por que a Bíblia ainda é um mistério apesar de sua existência milenar?
Padre José Tolentino Mendonça — Sendo Palavra de Deus para o homem e a mulher de todos os tempos, suas palavras transmitem a inspiração de Deus e são capazes de inspirar infinitamente a história. Nesse sentido, a Bíblia nunca está completamente lida. Cada geração é chamada a aproximar-se do texto como se fosse a primeira vez, acolhendo dele os desafios de quem se deixa tocar e transformar por uma palavra que é a síntese do amor que Deus tem pela história.

FC — O senhor afirma que a Bíblia é um processo de comunicação. Por quê?
Padre José Tolentino
— Quer na sua formação, quer na sua seleção, a Bíblia é um processo. Ela não foi escrita de uma vez, mas precisou de gerações inteiras. É um longo processo de produção. Além disso, a Bíblia não tem apenas leitura literal. Precisamos de múltiplos graus de leitura e de uma aprendizagem de acolhimento da Bíblia que respeite a forma plural como o texto vai se abrindo a cada leitor, comunidade e geração.

FC — Esses múltiplos graus não favorecem o risco de uma “protestantização” da Igreja?
Padre José Tolentino
— A Igreja Católica não tem medo da diversidade ou da pluralidade de interpretações. Para nós, a grande chave de interpretação da Bíblia é Jesus Cristo. Ele é a chave hermenêutica que nos permite ler a Bíblia de forma fecunda. A diversidade de leituras é uma riqueza que converge para o núcleo essencial do depósito da fé a ser tutelada pelo critério da tradição. Como diz a carta de São Pedro, as Sagradas Escrituras não são de interpretação particular. Quando falamos de diversidade estamos falando de um texto inesgotável e rico, surpreendente sempre, que faz Igreja servidora e não senhora.

FC — E é por isso que ela é uma leitura infinita?
Padre José Tolentino
— Nesse sentido ela é uma leitura infinita, em aberto. Nós, cristãos, vivemos ainda na manhã de Páscoa, estamos em Pentecostes. E esses dias ainda não acabaram. Nesse sentido, a leitura da Bíblia está a começar em nós. Nós não recebemos uma Bíblia já lida, descodificada. Recebemos o grande código da Bíblia, que é Jesus Cristo, e agora temos a tarefa de, à luz do acontecimento pascal, revisitar a escritura.

FC — O senhor afirma que a Bíblia não tem linha muito definida. É por isso que tem tanta certeza de ser um caminho para Deus?
Padre José Tolentino
— Se olharmos para o modo como Deus nos criou, ele não fez duas pessoas iguais. Cada um é original, único. A forma como Deus criou a humanidade diz algo de fundamental sobre a comunicação de Deus, que é uma comunicação suficientemente rica e ampla para tocar a diversidade dos corações. Nesse sentido, Deus não podia falar de forma linear, mas nós falamos que Deus fala de uma forma poética, simbólica e que precisa de “tradução”, porque só assim essa linguagem chega a todos.

FC — Nós, hoje, entendemos a Bíblia melhor do que há séculos?
Padre José Tolentino
— Não classifico que a entendemos mais ou melhor. Somos chamados a entender de forma que acolha a contemporaneidade, a história que hoje vivemos. Porque a história e as perguntas humanas de cada tempo e cultura são chaves necessárias para abrir o texto bíblico. É por isso que, se nós precisamos visitar a terra dos primeiros poetas que escreveram a Bíblia, precisamos conhecer hoje o coração humano que tem a pergunta a ser respondida pela Bíblia.

FC — A Bíblia tem a resposta para tudo?
Padre José Tolentino —
A Bíblia é ao mesmo tempo um livro de perguntas e respostas, de caminhos e viagens, um mapa de navegação, porque nunca o trabalho está acabado. Quando chegamos num ponto, sentimos que Deus nos desafia a ir mais longe.

FC — Alguns críticos afirmam que a Bíblia não foi escrita pelos autores que se acredita e que a Igreja adulterou textos. Isso procede? É possível confiar em seus textos?
Padre José Tolentino
— É possível confiar completamente na Bíblia. É preciso compreender que os mecanismos que serviam para a produção da literatura antiga, na época em que esta foi produzida, são muito diferentes daqueles de hoje. Por exemplo, a literatura de Homero, toda a literatura clássica, tem procedimentos muito próximos da Bíblia. Quem escreveu a Odisseia? Quem era Homero? Nós sabemos dele muito menos do que de São Paulo ou São Lucas. O que quero dizer é que há muitas perguntas sem respostas em relação à origem e à autoria do texto bíblico. Mas ele é, de longe, o texto antigo sobre o qual temos mais informação credível.

FC — E sobre a adulteração?
Padre José Tolentino
— A forma como o cristianismo e a Igreja Católica sempre se abriram ao estudo da Bíblia como ciência nos leva a rejeitar teses que falam de manipulação. Agora, há algo importante a dizer: o cânon da Bíblia, aqueles textos escolhidos para integrá-la, é uma escolha da comunidade cristã. Existem outros textos, os apócrifos. Pelos textos escolhidos, a Igreja tomou a decisão de ver neles a regra oficial da sua fé. É uma decisão, porém, justificada historicamente.

FC — Existe algum texto apócrifo que poderia se tonar canônico?
Padre José Tolentino
— O Evangelho de Tomé é o texto apócrifo mais próximo dos evangelhos canônicos, uma fonte importante para perceber algumas questões em aberto desses evangelhos e que hoje é bastante revisitado. Ele é curioso, pois é feito de sentenças de Jesus, é um texto sapiencial e não tem a paixão de Cristo. Apresenta a figura de Cristo sobretudo como mestre rabínico. O fato de não ter contado a paixão e a páscoa de Jesus torna-o diferente dos quatro evangelhos canônicos, mas a parte sapiencial de Jesus como mestre tem afinidades surpreendentes com os demais evangelhos. Ficou de fora por não refletir a parte fundamental da fé cristã, que é a paixão.

FC — Nos evangelhos há passagens que não são iguais entre eles. Por quê?
Padre José Tolentino
— Essa diferença é a riqueza dos evangelhos. Eles não são um decalque uns dos outros. É a mesma história, a mesma personagem, a mesma vida, com os mesmos “atores”, mas a transmissão da fé não é mecânica. É uma transmissão onde a originalidade do olhar de cada um é uma riqueza inalienável para a transmissão da fé. Lucas, Mateus, Marcos e João são como quatro caminhos diferentes para descobrir o mistério de Cristo. Os ciclos da nossa vida são diferentes, a nossa caminhada cristã vai se diferenciando no tempo. Por exemplo, nós acreditamos que o Evangelho de João é escrito como um segundo anúncio, para uma segunda conversão de leitores que já eram cristãos, enquanto o Evangelho de Marcos é um primeiro anúncio, para aqueles que nunca haviam ouvido falar de Jesus. Então as diferenças entre as narrativas são instrumentos catequéticos para acompanhar os leitores em suas diferentes etapas.

FC — Há complementaridade entre o Antigo e Novo Testamento, mas também contradições. Dá para explicar?

Padre José Tolentino — Para a Igreja Católica há uma relação inseparável entre ambos. E uma relação de continuidade, promessa e cumprimento. O Antigo Testamento é o tempo da promessa, e a promessa, muitas vezes, é superada pelo cumprimento: Jesus cumpre, leva à plenitude e, de certa maneira, supera a etapa da revelação. O início da Carta aos Hebreus é elucidativo quando diz, logo no início, que “de muitas maneiras Deus falou a nossos pais pelos profetas, mas nesses tempos que são os últimos”. Ou seja, no tempo do cumprimento da promessa, “Deus nos falou por Jesus Cristo”. Cristo revela, dá uma nova chave, para relermos, com seus olhos e de sua páscoa, todo o Antigo Testamento. Há uma tensão entre os dois livros, mas uma tensão que só Jesus nos pode resolver.

FC — Como ler a Bíblia sem cair no fundamentalismo ou na instrumentalização?
Padre José Tolentino —
Precisamos de grande humildade. Perceber que nossa leitura, sempre parcial, precisa ser confrontada por outras leituras. Por isso a multiplicidade de leituras forma uma rede positiva e virtuosa para a leitura da Bíblia. As leituras isoladas, literalistas, correm perigo de se tornarem fundamentalistas. Só a leitura que se deixa criticar e se torna aberta pode respeitar o plural do próprio texto.

FC — Em seu livro A Leitura Infinita, o senhor destaca a importância que Jesus dá ao alimento. São diversas as passagens que envolvem peixe, pães, água e vinho, sem falar da última ceia. Por quê?
Padre José Tolentino
— A mesa é um lugar preferencial da comunicação humana. Os antropólogos dizem que quando se descobre de um grupo humano o que, quanto e com quem se come, sabe-se o principal. Nós não nos alimentamos somente da comida partilhada, mas uns dos outros. Nos alimentamos de Jesus material e espiritualmente: mesa eucarística e mesa da Palavra que se torna alimento e vida. Por isso a mesa é uma estrutura comunicativa de grande potencial. Não é por acaso que grandes episódios da vida de Jesus acontecem em volta da mesa, como o grande sacramento que ele nos deixou. A comunidade é verdadeira quando tem no centro a mesa, o altar, a eucaristia. A Igreja é consequência da eucaristia. A mesa é a coisa mais importante numa casa porque é uma máquina de fazer vida, comunhão e amor. Isso vale para as famílias e para as comunidades cristãs.

Entrevista publicada originalmente na Revista Família Cristã, edição de setembro de 2015.

--

--