Saúde na U.T.I.

Nathan Xavier
Nathan Xavier
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5 min readMar 23, 2016

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O acesso integral à saúde é um direito do cidadão e dever do Estado que reforça o sentido de cidadania que toda população brasileira usufrui.

Esmola ou direito? Dever ou regalia? Em grande parte dos países do mundo o serviço público de saúde é considerado um dever do governo. Há basicamente dois tipos de modelos: o sistema de saúde segmentado e o universal. O segmentado, caso dos Estados Unidos, apenas uma parcela da população é atendida gratuitamente. No modelo universal, caso de países como França, Canadá e Inglaterra, todos os cidadãos são atendidos. O Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, é inspirado nesse modelo e foi criado em 1988 pela Constituição Federal. José Antônio de Freitas Sestelo, pesquisador associado do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), confirma: “Do ponto de vista legal, sim, a saúde é um direito constitucional e dever do Estado, embora, na prática, esse direito não se faz sentir plenamente”. E atenta para o fato de que ele não é exatamente “gratuito”, mas financiado através dos impostos pagos pela população: “Nós já pagamos por esse serviço, e é muito bem pago”.

Apesar dos problemas, ele faz uma ressalva: “O SUS é uma conquista importante. Embora ele esteja muito aquém da sua potencialidade, de tudo o que poderia proporcionar em termos de benefícios para a população, é uma conquista inquestionável. O programa de vacinas, a melhoria nos indicadores de mortalidade infantil, o tratamento contra o câncer, enfim, uma série de conquistas que só foram possíveis devido a existência do Sistema Único de Saúde”.

Problemas — Mesmo com as conquistas, infelizmente, no dia a dia, a população ainda sofre com um serviço precário. Sestelo destaca que a questão é complexa porque não envolve apenas um fator ou apenas os governantes, mas uma série de pequenos e grandes problemas que, somados, causam um caos na saúde, como a crise no Rio de Janeiro. No caso do estado fluminense, a queda na arrecadação e o excesso de dependência do preço do petróleo (que vem batendo recordes de baixa) causou um prejuízo ao estado e um rombo bilionário, segundo o governo do Rio. Mas a falta de dinheiro é a principal causa dos problemas no SUS ou é a gestão desses recursos? O pesquisador do IESC não exclui os dois problemas, apesar de relativizar a administração: “até aí, qual organização não tem problemas de gestão? Esses itens não são excludentes, então acho que a gestão pode melhorar, mas também temos o problema do sub financiamento porque quando comparamos os gastos públicos de outros países, verá que o Brasil gasta menos até do que países vizinhos como a Argentina”.

Uma das inspirações para o sistema brasileiro veio do NHS (National Health Service — “Serviço Nacional de Saúde” em tradução livre) do Reino Unido. No país inglês há grande respeito e supervalorização dos general practitioners (GP), que são como uma mistura de clínicos gerais e médicos da família no Brasil. São eles que atendem as pessoas, em pequenos consultórios, geralmente no próprio bairro de residência do paciente, e, se necessário, encaminham para um especialista. Mônica Magri, médica pediatra de um hospital estadual de São Paulo, revela:

“As equipes de saúde da família são poucas e os postos básicos não conseguem atender a demanda. Então as pessoas vão para os hospitais, encarecendo o atendimento, além de ocupar as emergências para casos que poderiam ser resolvidos nos postos”.

Um levantamento realizado pela BBC Brasil mostrou que há apenas 4 mil médicos da família no Brasil, enquanto no Reino Unido os GP são pouco mais de 65 mil. “Essa é a importância do médico clínico, que é capaz de resolver cerca de 80% dos casos, reservando uma pequena parcela de casos para um especialista”, afirma Sestelo.

Mercantilização — Tanto a doutora Mônica quanto o pesquisador Sestelo concordam que as escolas de medicina no Brasil, durante muito tempo, incentivaram os alunos a serem especialistas. “Antigamente era status dos médicos ter uma especialidade e isso foi muito trabalhado nas escolas médicas. Agora é que está mudando”, pondera Mônica. Algumas pessoas defendem a ideia de privatizar a administração da saúde no Brasil como solução, mas Sestelo rebate: “Na prática o sistema de saúde está bastante privatizado”, utilizando a falta de médicos generalistas como exemplo:

“Os médicos, em geral, seguem a lógica de mercado: eles se formam nas especialidades que dão mais dinheiro e vão trabalhar em lugares que pagam bem. Somos um país capitalista e a economia do país funciona segundo essa lógica de mercado, mas tem aspectos da vida em sociedade que não podem ser submetidos totalmente a essa lógica de mercado. Um deles é a saúde. Se a pessoa não pode pagar, ela não terá acesso a assistência? Isso é justo?”

Falta médico? — O Conselho Federal de Medicina (CFM), alguns conselhos regionais e diversos médicos insistem na ideia de que há médicos suficientes no Brasil e que o problema é má distribuição. De fato, a diferença no número de médicos entre as regiões brasileiras é alarmante, porém, ao confrontar o número total de médicos no país, constata-se que a relação é de 17,6 médicos para cada 10 mil pessoas. Em países da Europa é de 33,3 a cada 10 mil, quase duas vezes mais médicos. O CFM defende-se dizendo que o Brasil está na média do que pede a Organização Mundial de Saúde (OMS), porém, a entidade nunca estipulou um número ideal de médicos e sim de profissionais de saúde, o que envolve também enfermeiros e parteiros. Nesse quesito o Brasil se sai um pouco melhor, mas ainda está abaixo do ideal.

Porém, ao estabelecer o número de profissionais de saúde e não apenas de médicos, surge outro problema: a supervalorização da profissão de medicina. “Em outros países a assistência em obstetrícia, por exemplo, não é prestada pelo médico”, revela Sestelo, “são outros profissionais de saúde que prestam atendimento e o médico fica na retaguarda em caso de problema. Aqui não, pra tudo você precisa de um médico e isso é uma distorção. Sobrecarrega o profissional, além do custo elevado que não faz sentido do ponto de vista organizacional”. E reforça:

“Parte da polêmica do programa Mais Médicos é que o próprio governo atribui ao médico um lugar central, e não necessariamente uma maior quantidade de médico vai resolver o problema. Ele é fundamental para o funcionamento de tudo, mas não é o único”.

Para Sestelo, é preciso voltar ao essencial que é a situação do paciente, para que não aconteça do mercado ditar as normas e processos em um sistema que deveria ser feito para toda população: “Seja o gestor público ou privado, a saúde precisa ser gerida tendo em mente que a saúde é um bem de relevância pública. E isso não tem acontecido”.

Texto publicado originalmente na Revista Família Cristã — fevereiro 2016.

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