Botas de repórter

Daniel Muñoz
Nativo Estrangeiro
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7 min readApr 3, 2019

Não era meu sonho, definitivamente não era. Eu até sonhava em ser músico, ou até escritor, mas nunca naquela escolha que estava cravando em pedras no auge da ingenuidade dos meus dezoito anos. Afinal me foi oferecida a obrigação de fazer uma escolha, e não havia como esperar, ou pensar um pouco mais. A escolha me obrigava a uma decisão rápida.

Mas não por isso foi uma decisão impensada, nunca. O meu perfeccionismo já era uma das minhas doenças naquela época e eu jamais poderia tomar uma decisão como aquelas, como sem importância. Mas admito, eu não pensei de forma positiva, a decisão foi tomada partindo do princípio do que eu não queria para ela.

Então exclui rapidamente tudo que eu havia estudado e me preparado até então. Não foi fácil para mim, ainda mais difícil para meus pais, acredito. A dureza daquela decisão me obrigava a admitir que eu não queria uma relação tão próxima com os números, mesmo tendo feito um curso técnico que me preparou tão bem para ser um excelente engenheiro.

Além da dureza, o que motivou para esta ruptura deve ter sido o peso que é dado a este tipo de decisão. Se era verdade ou não, eu não sabia, mas todos me diziam que seria a decisão que definiria a minha vida, dali em diante. Então eu pensei naquilo que me deixava mais feliz, mas minhas respostas eram péssimas para a pergunta posta.

Afinal, eu sabia que não poderia me dedicar a estudar a música que eu tanto amava, não havia uma profissão a se criar naquilo. E a literatura e a escrita, que eu amava tão quanto as canções, também não formavam uma boa situação de sustento. E além de mim, eu tinha que cogitar as preocupações desesperadas de meus pais, que não saberiam lidar com um filho tão sem destino assim.

Então pensei em diferenciais, e um diferencial que eu já tinha, além dos números que eu abandonava, era a leitura. Escrever eu devo admitir que eu não tinha nenhum talento, comparando com o que posso fazer hoje. Foi um trabalho de desenvolvimento desta habilidade que supostamente hoje tenho. Deixo aos leitores que façam esta avaliação.

A ideia de desenvolver literatura me fascinava demais. Só que novamente, não havia profissão nesta ideia. Neste momento pensei que deveria com certeza ser um menino muito mimado, afinal tudo que eu desejava fazer não passavam de hobbies. Era como se no fundo eu não tivesse a menor vontade ou apreço por trabalhar.

Eis que apareceu uma solução estranha, este curso que supostamente é para quem tem talento na escrita, e me levaria para algo próximo do que escritores faziam para se sustentar, já que a literatura não lhes trazia pão à mesa. O jornalismo.

Feliz com a minha decisão, não por ela, mas pela conclusão da enorme indecisão. Fui falar para meus pais que enfim tinha um curso para prestar o vestibular. Para minha surpresa, que era fruto completo da minha ingenuidade, minha escolha não caiu bem a eles. Com tanta carreira, fui escolher justo uma tão ruim.

Mas além das caras feias, resolveram não intervir na minha escolha. Então eu me candidatei a estudar jornalismo, e na minha segunda tentativa, passei no curso.

No começo foi só animação, mas eu não sabia dizer se era pela escolha feita, ou pelo simples fato de estar vivenciando pela primeira vez uma vida universitária. O meu lado de bom aluno me fez ser aquele cara chato que queria comprar todos os livros da bibliografia, estudar todos os textos, acompanhar todas as referências, não perder absolutamente nada.

Afinal foi tanto martírio para entrar! Ali não era mais um colégio, era um lugar que eu estava por escolha, por decisão. Eu tinha obrigação de fazer bom proveito. As aulas foram maravilhosas, os assuntos das ciências humanas que eu aprendia eram tudo que eu queria para alimentar o meu lado questionador e chato, que eu tanto apreciava.

Mas as aulas específicas de jornalismo não eram as mais especiais, na realidade, eram as mais passáveis que eu tinha, no começo do curso. Então chegou a minha experiência com aquilo que minha universidade chamou de jornais laboratórios. E eles eram exatamente isso, jornais que os alunos produziam, como uma forma de aula prática laboratorial, para ensinar os traquejos da profissão.

Então nasceu em mim uma pequena faísca de uma animação diferente, que vinha de participar da produção de algo que teria tanta importância e durabilidade como um jornal impresso. Estão acompanhando o tamanho que tinha a minha ingenuidade, certo?

Cada página diagramada era um prazer enorme, ficar naquela sala de fechamento por horas era algo que não me fazia nenhum mal, muito pelo contrário, eu podia fazer aquilo todos os dias. Só que eu ainda estava evitando ao máximo escrever, afinal eu ainda via a minha escrita como bastante inferior à média, então me escondia em cargos nos quais podia diagramar e arrumar as histórias dos outros, para que o jornal saísse com todo o potencial que ele poderia ter.

Ver aqueles fardos sendo entregues no departamento no outro dia era uma sensação única de dever cumprido, que até aquele momento eu não tinha vivenciado na minha vida. Aquele jornal só existia porque eu ajudei. E as pessoas só poderiam se informar daquelas notícias porque empenhamos tanto esforço e correria no dia anterior, para que tudo aquilo desse certo.

Mais um momento chave aconteceu um pouco depois destes primeiros fechamentos, uma oportunidade única me foi oferecida quase que diretamente em minhas mãos, era o meu primeiro emprego como jornalista. Agarrei com toda a animação que eu podia e me aventurei a ir conhecer aquela agência de notícias que eu não conhecia, mas que se tornaria um marco tão grande para mim.

O escritório era realmente pequeno, e tinha um ar de redação que fazia com que os velhos filmes americanos parecessem ficções baratas. Logo eu aprendi que aquele lugar representava algo maior, na realidade a agência era uma das maiores do mundo, e a maior na sua língua nativa. O tamanho da responsabilidade ia muito além do que a minha arrogância juvenil e a minha ingenuidade poderiam acreditar.

E lá o meu trabalho como jornalista não poderia se esconder atrás de organizar algumas páginas, ou trabalhar em arrumar textos e histórias dos outros. Eu fui contratado para ser repórter, e para rua eu tinha que ir.

Não teve muito tempo para treinamentos, na realidade, se me lembro bem, não tive rigorosamente nenhum treinamento. Simplesmente fui ganhando pautas e tinha que sair para fazer as coberturas. Quando eu chegava de volta, tinha que enfrentar o meu maior medo daquela época, escrever as matérias.

Só que a parte boa foi me cativando mais rápido do que eu pude acompanhar, antes que eu notasse, aquela rotina insana e sem horários, que me obrigava a estar pela rua, em todo e qualquer canto da cidade, a todo momento, me estava dando um prazer que eu nunca tinha sentido.

Um grande, vamos assim dizer, talento que eu tinha para aquela profissão, era a minha habilidade de ser totalmente desbocado em falar com as pessoas. Aquele ritmo de estar eternamente movido a caçar histórias e encontrar pessoas que queriam me contar coisas, estava me dando uma nova vitalidade.

Sem querer eu tinha então acertado na minha escolha, eu não entendi naquele momento, mas em retrospectiva vejo isso com enorme clareza. Minha profissão era conversar com pessoas, e eu estava feliz demais, em qualquer condição, fazendo isso. Foi também quando aceitei essa realidade que comecei a melhorar o meu texto. Demorou, mas eu entendi finalmente, o trabalho de um jornalista é contar histórias, e eu amava demais fazer isso.

Com o tempo no trabalho, fui ganhando um pouco mais de espaço, até que em um momento, por um conjunto de circunstâncias, tive a chance de ser o principal apontado para fazer coberturas culturais na minha cidade. Então sim digo com toda a firmeza, vivi o melhor momento profissional de minha vida.

Era arte, música, vida e cultura que eu era obrigado a conviver, todo o santo dia. E no final da tarde, parava um minutinho na frente do computador e tecia o relato de tantas vivências para que as revistas, jornais e portais que compravam as nossas notícias, pudessem passar aquelas histórias adiante.

Infelizmente, ao final de um ano do começo desta jornada, ela acabou. Poderia fazer várias conjunturas sobre isso:

· talvez não teria acabado se eu tivesse social skills melhores, como hoje tenho;

· talvez não teria acabado se eu escrevesse melhor, como hoje escrevo;

· talvez não teria acabado se eu acumulasse mais conhecimento cultural, como hoje acumulo;

· talvez não teria acabado se eu dominasse melhor as minhas segundas e terceira língua, como hoje domino;

· se no geral eu tivesse sido uma pessoa e profissional melhor, talvez não teria acabado.

Mas eu tinha apenas vinte e um anos quando entrei nesta realidade, obviamente não tive a desenvoltura que esperaram de mim, para manter essa chama acesa naquela realidade colorida.

Hoje tenho saudades, saudades daquela profissão que me fez tanta diferença, mesmo sendo uma escolha um tanto quanto estranha na minha vida. Saudades de uma coisa que eu aprendi a amar, fazendo. Dor por não ter podido aproveitar mais tudo, por uma juventude que todos querem, e que talvez justamente por isso, eu repudie tanto.

Por isso eu olho sempre quando eu compro novos sapatos, e observando, penso: estes seriam bons sapatos para um velho repórter, que não quer nada além de conversar com as pessoas nestas ruas cinzas desta suja metrópole? A resposta geralmente é não, porque não cabe a mim manipulá-la, e honestamente duvido que um dia ela volte a ser sim.

Mas estou sempre aqui, com botas prontas para se gastar, porque o meu real talento nunca foi cantar ou escrever. Meu talento é falar com as pessoas, e este eu carrego, junto com a minha pose de repórter, ao meu lado por todos os meus caminhos.

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Daniel Muñoz
Nativo Estrangeiro

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan